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Proc. nº 42/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que figura como recorrente o Ministério Público e como recorridos C..., P..., M... e A ..., o Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre proferiu a seguinte decisão: Face ao carácter diminuto da culpa e dado que não se provou que os arguidos tivessem abatido qualquer espécie cinegética após termo da jornada normal de caça ao tordo e ao estorninho-malhado não se decreta a interdição do direito de caçar. Todavia, sem embargo da nítida melhoria qualitativa da lei, não foram expurgados todos resquícios de inconstitucionalidade presentes na lei anterior, pois a carta de caçador tem validade temporal e caduca sempre que os respectivos titulares sejam condenados por crime de caça (artº 21°, nº 5, da Lei n° 173/99, de 21/9). Isto é, não obstante o Tribunal ter entendido que não se verificavam os pressupostos para a aplicação da sanção acessória da inibição da faculdade de caçar, a carta de caçador acaba por ser cassada por via administrativa e os arguidos ficam na prática inibidos do direito à caça. Os titulares de carta de caçador caducada por força da prática de um crime de caça só podem obter novo título idêntico após aprovação em novo exame e os requisitos temporais relacionados com a realização do novo teste de aptidão estabelecidos para o efeito implicam directa, necessária e implacavelmente um período forçado de inibição do direito a caçar (cfr. arts. 62° a 68° do DL n°
227-B/00, de 15/99). E, consabidamente, no que respeita aos princípios constitucionais da política criminal, deverão ser observados os princípios da culpa, da necessidade da pena e das medidas de segurança, da legalidade e da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, da humanidade e da igualdade (ver, por todos, Sousa Brito: A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, 1978, págs. 199 e segs)
. No presente caso, a caducidade da carta de caçador é aplicada independentemente de uma relação de proporcionalidade entre a gravidade do evento e a exigência de actuação do jus punitivo do Estado e, além disso, a cassação automática é estranha a qualquer consideração sobre a culpa do agente. O problema que se coloca é o de saber se a imposição de sanção penal fixa, determinada ne varietur pela lei, está em conformidade com o princípio da igualdade e da proporcionalidade. No direito moderno é lícito entender que a existência de penas ou sanções de natureza penal que estejam desligadas de qualquer relação de adequação ou de individualização proporcional constitui uma violação dos princípios quadro enformadores do direito constitucional penal. Acresce que, face ao modo como está erigida a norma, não é possível reconhecer ao julgador uma intervenção concreta, em termos substantivos, na adequação da sanção ao agente, designadamente através da admissão da possibilidade de isenção ou dispensa da cassação automática da carta de caçador. Em nosso entender, de forma a salvaguardar o princípio da igualdade e da proporcionalidade, tendo como pano de fundo a gravidade da culpa e as exigências de prevenção geral e especial, a validade da norma está dependente da introdução do seguinte segmento normativo condicionador, «a carta de caçador tem validade temporal e caduca sempre que os respectivos titulares sejam condenados por crime de caça, salvo nos casos de diminuta importância, nomeadamente na situação de não aplicação da sanção acessória de inibição do direito de caçar, quando o juiz decida que a mesma não se adequa à qravidade do facto praticado». E não se esgrima com a natureza meramente administrativa da caducidade da carta de condução [sic], pois esta não configurando uma pena em sentido estrito, representa um agravamento punitivo de natureza penal, que se encaixa na previsão do artº 29°, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. A caducidade da carta de caçador é uma medida de aplicação automática abstractamente fixada de forma invariável e com aplicação independente de qualquer referência à perigosidade do agente ou à proporcionalidade do delito, que desjurisdicionaliza a acção do Tribunal e fomenta clivagens ao nível do tratamento da igualdade. Assim, declaro a inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da culpa, da proporcionalidade e da necessidade de intervenção de um magistrado na aplicação de sanções de natureza criminal, da norma constante do artº 21°, nº 5, da Lei nº 173/99, de 21/9, na parte em que não defere ao julgador a possibilidade de isentar ou dispensar a caducidade da carta de caçador nos casos de diminuta importância, nomeadamente na situação de não aplicação da sanção acessória de inibição do direito de caçar, quando se entenda que a sanção não é adequada e proporcional à gravidade da infracção. Ao retirar esta possibilidade ao juiz, a legislação editada impõe administrativamente e de forma automática uma sanção acessória (ou medida de segurança, se assim se preferir) com efeitos equivalentes à inibição do direito de caçar por um período não legalmente determinado.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 21º, nº 5, da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro.
Junto do Tribunal Constitucional o Ministério Público apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: Não constituindo fundamento da decisão a recusa de aplicação da norma constante do artigo 21º, nº 5 da Lei nº 173/99, não deve conhecer-se do objecto do recurso, por irrecorribilidade dessa decisão.
Os recorridos não contra-alegaram.
2. Cumpre decidir.
II Fundamentação A Questão prévia
3. O Ministério Público considera que na decisão recorrida não foi retirada qualquer consequência da recusa de aplicação do artigo 21º, nº 5, da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro. Nessa medida, o recorrente sustenta que a afirmação da recusa formal de aplicação da norma contida no preceito mencionado constitui mero 'obiter dictum' ou 'argumento ad ostentationem', pelo que não deverá o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Ora, é verdade que na decisão recorrida apenas se recusa a aplicação do artigo 21º, nº 5, da Lei nº 173/99, 'na parte em que não defere ao julgador a possibilidade de isentar ou dispensar a caducidade da carta de caçador nos casos de diminuta importância', não se declarando expressamente a isenção da caducidade da carta de caçador de cada arguido.
Porém, em face do teor da decisão, é legítimo concluir que a intenção da sentença foi a de determinar a não caducidade das cartas, por força da recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma que determina essa caducidade. Caso contrário, a afirmação do Juiz seria, no contexto da decisão da decisão recorrida, absolutamente inútil.
Esta é a interpretação mais adequada da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre em face da natureza do juízo de inconstitucionalidade . Torna-se, por isso, necessário tomar conhecimento do objecto da recusa.
Tomar-se-á, portanto, conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade normativa.
B Apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 21º, nº 5, da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro
4. O preceito impugnado tem a seguinte redacção: Artigo 21º Carta de caçador
(...)
5 - A carta de caçador tem validade temporal e caduca sempre que os respectivos titulares sejam condenados por crime de caça.
Na decisão recorrida considera-se tal norma inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade, da culpa, da proporcionalidade e da necessidade de intervenção de um magistrado na aplicação de sanções de natureza criminal, na parte em que não defere ao julgador a possibilidade de isentar ou dispensar a caducidade da carta de caçador nos casos de diminuta importância, nomeadamente na situação de não aplicação da sanção acessória da inibição do direito de caçar, quando se entenda que a sanção não é adequada e proporcional à gravidade da infracção.
5. O artigo 21º da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro, regula as condições de obtenção da carta de caçador. O nº 5 consagra, por um lado, a regra da validade temporal da carta e, por outro, uma circunstância que determina a caducidade da carta: a condenação dos titulares da carta pela prática do crime de caça.
Por seu turno, o artigo 35º da mesma lei, sob a epígrafe 'sanções acessórias', estabelece que a condenação por qualquer crime ou contra-ordenação de caça pode implicar a interdição do direito de caçar entre três a cinco anos.
Deste quadro legal resulta o seguinte: ao condenado pelo crime de caça pode ser aplicada a sanção acessória de interdição do direito de caçar; em qualquer caso, porém, aplique-se ou não a referida sanção acessória, a condenação por crime de caça determina a caducidade da carta de caçador. Assim, o caçador que for condenado pelo crime de caça poderá de imediato requerer a obtenção de nova carta, se não for condenado concomitantemente na sanção acessória (se o for, não poderá obter a carta pelo período de duração da interdição).
Na decisão recorrida considerou-se que 'a caducidade da carta de caçador é aplicada independentemente de uma relação de proporcionalidade entre a gravidade do evento e a exigência de actuação do jus punitivo do Estado e, além disso, a cassação automática é estranha a qualquer consideração sobre a culpa do agente'.
Ora, tais considerações teriam toda a pertinência se fossem expendidas a propósito da sanção acessória de interdição do direito de caçar
(que, in casu, o tribunal decidiu não aplicar). Porém, já não têm sentido útil em face de um dos requisitos negativos da validade da carta de caçador.
Com efeito, a argumentação da decisão recorrida assenta no entendimento, segundo o qual a caducidade da carta consubstancia uma sanção acessória do crime de caça. Porém, assim não acontece, como se explicitará.
6. A carta de caçador só pode ser emitida a favor de pessoas que tenham sido aprovadas em exame teórico e teórico-prático destinado a apurar a aptidão e o conhecimento necessário ao exercício da caça [cf. artigos 62º, nº 1, alínea d), e 63º, nº 1, do Decreto-Lei nº 227-B/2000, de 15 de Setembro].
Tal exigência, a par de outras, como a idade superior a 16 anos ou não ser portador de anomalia psíquica ou de deficiência orgânica ou fisiológica que torne perigoso o exercício da caça, explica-se pela natureza da actividade em questão: trata-se de uma actividade perigosa que pressupõe a não lesão de quaisquer bens jurídicos pessoais ou patrimoniais bem como a não perturbação do equilíbrio ambiental e a protecção dos recursos cinegéticos.
A prática de um crime de caça, independentemente da sua gravidade para efeito de determinação da respectiva pena, ilide, por si só, a presunção de que se mantêm as condições de passagem da carta, ou seja de que o agente detém os conhecimentos, a aptidão e a adequação comportamental necessárias ao exercício da caça.
Num caso desses, tanto as razões de segurança associadas à utilização de armas de fogo, como as relevantes necessidades inerentes a um racional ordenamento cinegético, como expressão da tutela do ambiente e da qualidade de vida (valores com assento constitucional no artigo 66º da Constituição), justificam que o agente seja submetido a novo exame (a novo processo de obtenção de carta), uma vez que, através das suas acções, demonstrou a sua deficiente formação para o exercício da actividade de caçador.
A norma em apreciação integra-se, pois, na regulamentação dos pressupostos da titularidade da carta de caçador; da sua verificação durante o respectivo prazo de validade (que é limitado no tempo, e sujeito a renovação, precisamente para averiguação da manutenção das condições de obtenção - cf. artigos 67º e 68º do Decreto-Lei nº 227-B/2000, de 15 de Setembro).
O agente que vê a sua carta caducar é recolocado na situação em que qualquer cidadão não titular de carta se encontra, podendo, por essa via, requerer a obtenção de uma nova carta. Esta medida não se configura, fundamentalmente, como sanção penal não tendo de ser articulada com a culpa do agente ou com a gravidade do evento. Com efeito, ela descreve apenas a alteração das circunstâncias em que foi decidida a concessão da licença. A circunstância de se tratar de uma infracção criminal é suficientemente grave para justificar, na perspectiva do legislador, a reapreciação da situação do agente enquanto titular da carta de caçador, uma vez que tal actividade só deve ser exercida por sujeitos que demonstrem uma específica formação e aptidão, por estar em causa a protecção de valores ambientais com dignidade constitucional. Assim, a condenação pelo crime de caça constitui uma verdadeira condição resolutiva da validade da carta; não, como se disse, por obediência a uma ideia de retribuição da culpa do infractor, mas sim por exigência de uma racional articulação entre os valores de segurança de pessoas e bens e ambientais em questão e a actividade de caça.
7. A questão agora colocada não coincide com a que foi versada nos Acórdãos nº 202/2000 (D.R., II Série, de 11 de Outubro de 2000) e nº 203/2000
(inédito), ambos de 4 de Abril. Aí, o Tribunal debruçou-se sobre a interdição do direito de caçar, durante um certo período de tempo fixo, o que correspondia a uma sanção penal acessória violadora do princípio da igualdade e da proporcionalidade. Já no Acórdão nº 461/2000, de 25 de Outubro, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional as normas dos artigos 122º, nºs 4 e 5, e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, que determinam a caducidade da licença provisória de condução, no caso de condenação na pena de proibição de conduzir. Nesse aresto, o Tribunal considerou que a condenação na referida pena consubstancia um requisito negativo da extinção de carácter provisório da licença de condução, com base na argumentação de que não há um direito a conduzir fora de certos pressupostos de licenciamento.
Nos presentes autos, em que não está em causa o direito de conduzir
(actividade necessária nas sociedades hodiernas) mas sim o direito de caçar
(actividade fundamentalmente lúdica que tem de ser articulada com valores de segurança de pessoas e bens e ambientais), é razoável que se considere, mutatis mutandis, que não existe qualquer amplíssimo direito a caçar, podendo entender-se que a condenação por crime de caça condiciona negativamente a validade da carta de caçador, na medida em que põe em causa os pressupostos de licenciamento daquela actividade.
8. Não se verifica, pois, qualquer violação dos princípios constitucionais invocados na decisão recorrida.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 21º, nº 5, da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro, revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 3 de Outubro de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa