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Proc.º n.º 213/2001.
2.ª Secção (Plenário). Relator:- BRAVO SERRA.
1. O Representante do Ministério Público em funções junto do Tribunal Constitucional veio, com esteio no nº 3 do artigo 281º da Constituição e no artº 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, requerer que este órgão de administração de justiça apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que resulta das disposições conjugadas dos artigos 59º, nº 3, e 63º, nº 1, ambos do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, quando interpretada no sentido de, no processo contra- -ordenacional, a falta de conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação.
Segundo o requerente, uma tal norma foi explicitamente julgada desconforme à Lei Fundamental - por violação do artigo 32º, nº 10, em conjugação com o nº 1 do artigo 18º, um e outro da Constituição - pelos Acórdãos números
319/99, 509/2000 e 590/2000, deste Tribunal.
Notificado o Primeiro Ministro nos termos do artº 54º da Lei nº
28/82, veio o mesmo dizer que o vício de inconstitucionalidade detectado nos Acórdãos nos quais o solicitante estribou o seu pedido não resulta do '’texto da norma’ (on its face), mas da sua aplicação (as applied) aos casos particulares', pelo que, a final, se limitou a oferecer o merecimento dos autos.
Elaborado memorando e fixada a orientação do Tribunal, tudo ex vi do artº 62º da citada Lei nº 28/82, cumpre formar a decisão.
2. Surpreende-se no Acórdão nº 319/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 22 de Outubro de 1999) o seguinte juízo decisório:-
'Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição, a norma constante dos artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
433/82 [por lapso escreveu-se 433/83], de 29 de Outubro, quando interpretada no sentido de que o recurso apresentado em processo de contra-ordenação sem conclusões deve ser imediatamente rejeitado, sem que o recorrente seja previamente convidado a apresentar as conclusões em falta'.
De outra banda, os Acórdãos números 509/2000 e 590/2000 foram lavrados na sequência de reclamações interpostas de decisões sumárias prolatadas pelos respectivos Relatores, decisões essas nas quais se julgaram inconstitucionais as normas contidas nos artigos 59º, nº 3, e 63º, nº 1, ambos do Decreto-Lei nº 433/82, na interpretação segundo a qual a não formulação de conclusões na motivação do recurso da decisão aplicativa de coima leva à rejeição dessa forma de impugnação, sem que ao recorrente seja dirigido convite no sentido de proceder a essa formulação.
As decisões sumárias então em crise ancoraram-se na jurisprudência firmada por intermédio dos Acórdãos números 303/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 16 de Julho de 1999) e 319/99, já citado.
Significa o exposto que, in casu, está reunido o condicionalismo permissor do poder/dever prescrito no nº 3 do artigo 281º da Constituição e no artº 82º da Lei nº 28/82.
3. A norma que deflui da conjugação daqueloutras ínsitas no nº 3 do artº 59º e no nº 1 do artº 63º, um e outro do Decreto-Lei nº 433/82, e desde que interpretada numa dimensão de harmonia com a qual, não sendo formuladas conclusões na motivação do recurso interposto da decisão que aplicou a coima, essa circunstância leva, sem que ao recorrente seja previamente dirigido convite para proceder a uma tal formulação, à rejeição do recurso, foi, no Acórdão nº
319/99, considerada violadora do Diploma Básico mediante um discurso argumentativo que agora, por simplicidade, se transcreve.
Na verdade, foi dito naquele aresto:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
4. – Vem questionada nos autos a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, enquanto permite rejeitar de forma imediata a impugnação judicial que não contenha conclusões.
Efectivamente, a primeira daquelas normas estabelece que:
‘Artigo 59.º Forma e prazo
1 - A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.
2- O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor.
3 - O recurso é feito por escrito e apresentado á autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões’.
Pelo seu lado, o artigo 63º determina:
'Artigo 63.º Não aceitação de recurso
1- O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora de prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.
2 - [...]’
Violará a norma que impõe a rejeição imediata da impugnação judicial que não contiver as conclusões o direito de defesa do arguido, como pretende o recorrente?
5 – O artigo 32º da Constituição, no seu n.º8 (na versão de 1989) e agora (versão de 1997) no seu n.º10, estabelece que ‘nos processos por contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa’.
Por outro lado, é o próprio diploma regulador das contra-ordenações que expressamente determina, a nível infraconstitucional, serem os preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados, aplicáveis em processo contra- -ordenacional como direito subsidiário (artigo 41º, n.º1).
Portanto, não só se aplicam ao ilícito contra-ordenacional garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal (v.g., princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável), como também existe um evidente paralelismo entre o processo criminal e o processo contra-ordenacional, que é conformado por princípios básicos daquele, tendo em atenção os interesses subjacentes.
Aliás, no que se refere aos direito de audiência e de defesa é a própria Constituição que expressamente os assegura ao agente de qualquer contra-ordenação.
O direito ao recurso integra-se naturalmente no direito de defesa do arguido: porém, uma coisa é a garantia do direito ao recurso – que não está em causa nos presentes autos -, outra coisa é a exigência legal de respeitar certos formalismos no exercício do direito de recurso. Efectivamente, o legislador pode impor regras formais para exercer o direito ao recurso.
No caso em apreço, o recorrente exerceu o seu direito de defesa recorrendo da decisão condenatória da autoridade administrativa para o tribunal judicial competente, apresentando as sua alegações; porém, com as alegações não apresentou as necessárias conclusões.
Com base no preceito que determina que o recurso deve constar de alegações e conclusões, o juiz rejeitou o recurso por não respeitar ‘as exigências de forma’, decisão que foi confirmada pela Relação.
A questão a dilucidar consiste, assim, em apurar se a imediata rejeição do recurso interposto pelo arguido, sem que o mesmo fosse convidado para apresentar as conclusões em falta, não viola o direito de defesa, na medida em que tal omissão podia afectar – como afectou - substancialmente o próprio direito ao recurso.
Efectivamente, em regra, a rejeição do recurso apenas ocorre quando falta a motivação (artigo 412º, n.º1, do Código de Processo Penal - CPP). Deverá a mera falta de conclusões ter o mesmo efeito preclusivo do direito ao recurso, que a lei atribui á falta de motivação?
A formulação de conclusões integra-se, sem dúvida, no ónus de alegar e formular conclusões a que se refere o artigo 690º do Código de processo Civil
(CPC), enquanto conjunto complexo de actos que constitui a fase processual do recurso.
As conclusões devem constituir o complemento lógico e sintético do procedimento de recurso explanado ao longo das alegações.
Em processo civil, a falta ou a deficiência, obscuridade ou complexidade das alegações não levam á rejeição do recurso sem que o recorrente seja convidado para corrigir tais falhas.
Quanto à falta de concisão ou prolixidade das alegações, o Tribunal já decidiu que a rejeição do recurso pelo facto de as conclusões estarem afectadas daquelas deficiências, sem que o recorrente tenha sido previamente convidado para as corrigir, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), garantido pelo artigo 32º, n.º1, da Constituição (cf. Acórdãos n.º 193/97 e 43/99, ainda inéditos).
Não se vê razão para concluir diferentemente se a falta for das próprias conclusões. Com efeito, se a rejeição do recurso só ocorre faltando a motivação, a extensão desta ‘sanção’ à falta das conclusões consiste num alargamento do âmbito da norma, ou seja, na criação de um outro fundamento de rejeição. Por outro lado, o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso – as alegações ou a motivação – já se encontram nos autos, apenas faltando a fase conclusiva.
Tem, por isso de se concluir que, no caso de um recurso em processo de contra-ordenação – em que valem também as garantias constitucionais do direito de audiência e do direito de defesa – a rejeição do recurso que não contiver as respectivas alegações sem que o recorrente seja convidado a apresentá-las previamente a essa rejeição, afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º10 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, feita na decisão recorrida, é inconstitucional
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Também no já mencionado Acórdão nº 303/99 teve este Tribunal ocasião de discretear assim:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ A única norma questionada pela recorrente, impondo que o juiz, em processo contra-ordenacional, rejeite, por despacho, o recurso apresentado ‘fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma’ (citado nº 1 do artigo 63º), não pode deixar de ser lida e conjugada com o nº 3 do artigo 59º, do mesmo Decreto-Lei nº
433/82, com as actualizações introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 356/89, de 17 de Outubro e 244/95, de 14 de Setembro, que estabelece que aquele recurso seja
'feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões’.
É que a recorrente situa a controvérsia no ponto em que, negando-se ao arguido naquele tipo de processo ‘a possibilidade de apresentar (completar, esclarecer ou sintetizar) as conclusões da sua petição de recurso’, está a violar-se o seu direito de audiência e defesa. Para o acórdão recorrido, e retratando a situação dos autos, ‘se o recorrente apresenta em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática de contra-ordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada, equivale a ausência de conclusões, motivo de rejeição liminar do recurso, por carência de motivação, integrada, além do mais, por aqueles artºs 412º nº1 e
420º nº 1 do CPP’ (normas aplicáveis ao processo de contra-ordenação - artigo
41º, nº 1). E mais:
‘Houve, da parte do legislador, o propósito claro de regulamentar de forma global e autónoma do CPC, ao contrário do que sucedia no âmbito do CPP de
1929, o regime dos recursos, não se coadunando com aquela perspectiva da celeridade e eficiência o convite à correcção das conclusões ou à sua apresentação, se faltam.
A aplicação da norma do artº 690º nº 4, do CPC, com o sentido de quando faltem, sejam deficientes ou obscuras as conclusões, poder o juiz endereçar convite à sanação do vício não tem aplicação em processo penal e,
'ipso facto' no processamento das contra- -ordenações’. Ora, é exactamente este aspecto que vem posto em crise neste Tribunal Constitucional no citado acórdão 193/97 (inédito), pois aí, em contrário ao entendimento do acórdão recorrido, pode ler-se:
‘O argumento da celeridade conatural ao processo penal, como impossibilitando aqui a adopção de um sistema semelhante ao do processo civil
(onde à deficiência e/ou obscuridade das conclusões corresponde um convite para aperfeiçoamento - artigo 690 nº 3 do Código de Processo Civil), argumento decisivo na decisão recorrida, não colhe. A concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa é aqui possível (sendo aliás, exigida pelo artigo 18º nº 2 da Constituição) sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido’.
É certo que aquele acórdão nº 193/97 tratou de hipótese relacionada com a falta de concisão das conclusões de motivação de recurso - e isso determinar a rejeição do recurso interposto pelo arguido -, mas é bem verdade que aquela consideração do acórdão pode também levar aqui a um mesmo juízo de inconstitucionalidade material.
Com efeito, sendo dado adquirido que a recorrente apresentou ‘em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática da contra-ordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada’, a lógica da
‘concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa’ impõe, na óptica do artigo 18º, nº 2, da Constituição, que se faça apelo ao sistema processual civil, em que pode funcionar um convite para aperfeiçoar as conclusões (artigo 690º, 4, do Código de Processo Civil). Tanto mais que in casu há uma conclusão, embora seja única (aliás, antecedida por considerações acerca da matéria de facto e da aplicação do direito a essa matéria), e não era necessário ‘chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido’, na linguagem do acórdão nº 193/97.
Tanto basta para concluir que a interpretação e a aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos artigos 32º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição.
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4. Reitera-se agora, uma vez mais, a argumentação dos acórdãos de que parte se encontra transcrita e que consiste, essencialmente, nos seguintes tópicos:-
- no processo contra-ordenacional valem também as garantias de defesa constitucionais quanto aos direitos de audiência e defesa;
- conferir-se à falta de formulação de conclusões o mesmo e imediato efeito «sancionatório» da rejeição do recurso que é o resultante da não apresentação de motivação no recurso da decisão aplicativa da coima, representa uma afectação desproporcionada do direito de defesa do impugnante/arguido, na sua dimensão de direito ao recurso, garantido pelo nº 10 do artigo 32º da Lei Fundamental;
- as exigências decorrentes de um processo equitativo podem, e devem aliás, conduzir, ponderado o nº 2 do artigo 18º da Constituição, à efectivação de um juízo que, na prática, leve à concordância entre os valores da celeridade processual e do asseguramento das garantias de defesa quanto aos processos sancionatórios, e isso caso se adopte, em relação ao ordenamento jurídico regulador dos recursos das decisões aplicativas de coima, solução semelhante à consagrada no processo civil quanto à falta de indicação de conclusões.
5. Em face do exposto, o Tribunal declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do nº 10 do artigo 32º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, um e outro da Constituição, da norma que resulta das disposições conjugadas constantes do nº 3 do artº 59º e do nº 1 do artº 63º, ambos do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na dimensão interpretativa segundo a qual a falta de formulação de conclusões na motivação de recurso, por via do qual se intenta impugnar a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, implica a rejeição do recurso, sem que o recorrente seja previamente convidado a efectuar tal formulação Lisboa, 19 de Junho de 2001- Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Messias Bento Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa