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Proc. nº 777/00
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A representante do Ministério Publico no Tribunal Judicial da Comarca de Nelas veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional da sentença, de fls. 220, proferida por aquele tribunal nos autos de Processo Comum Singular nº 41/99, nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. O recurso interposto baseia-se na circunstância de tal decisão ter recusado “a aplicação da parte final da norma constante do artigo 24º, nº 1 do R.G.I.F.N.A.
– ao caso sub judice – interpretada no sentido de que impondo que o limite mínimo da pena de multa a aplicar ao arguido seja equivalente ao montante da prestação em dívida, poderá conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido, exceda os limites impostos pela sua culpa concreta e se desconsidere a sua situação económica, com fundamento na sua inconstitucionalidade”.
2. Notificado para o efeito, o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou as suas alegações. Afirmou, em síntese, que “muito embora a decisão recorrida tenha recusado (...) a aplicação da parte final da norma contida no artigo 24º, nº 1 do RJIFNA, a verdade é que não retirou daí qualquer consequência”. E acrescentou:
“Ora, como a jurisprudência constitucional tem reiteradamente afirmado, só cabe recurso das decisões que desapliquem normas por inconstitucionalidade se essa desaplicação constituir fundamento da decisão.
Efectivamente – escreveu-se no acórdão nº 48/85 – cabendo recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na Constituição e na lei, das decisões dos tribunais que hajam recusado a aplicação de qualquer norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, forçoso é concluir que não cabe recurso daquelas decisões em que se haja considerado determinada norma como inconstitucional, mas apenas como obter dictum ou em argumento ad ostentationem, sem que tal consideração tenha tido que ver com a decisão da causa ou tenha constituído, propriamente, fundamento dessa decisão. É que, em boa verdade, em tais casos não houve uma verdadeira recusa de aplicação da norma.
Assim, não constituindo fundamento da decisão a recusa de aplicação da parte final do artigo 24º, nº 1 do RJIFNA, não deve conhecer-se do objecto do recurso, por irrecorribilidade dessa decisão”.
Os recorridos não contra-alegaram.
3. Importa começar por conhecer da questão do não conhecimento do objecto do recurso, suscitada pelo Ministério Público, o que exige a análise da decisão recorrida.
Os arguidos R... e A ... foram condenados, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Nelas, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 24º do Regime das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro
(na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24/11). É o seguinte o texto do artigo 24º:
Artigo 24º Abuso de confiança fiscal
1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4. Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250 000$, o agente será punido com multa até 120 dias.
5. Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$, o agente será punido com prisão de um até cinco anos.
6. Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
Cumpre analisar o percurso seguido pela decisão recorrida para alcançar a medida concreta da pena.
Após ter concluído no sentido de se ter provado a prática do crime de abuso de confiança fiscal (nº 1 do artigo 24º do RJIFNA) pelos dois arguidos, o Tribunal procedeu à determinação do valor da prestação em falta, entendendo que tal valor é de 2.021.824$00. Decidiu então optar pela pena de multa, fundamentando detidamente tal opção. De seguida, traçou abstractamente os critérios a seguir na fixação da pena, analisando doutrina sobre a matéria, e enumerou as circunstâncias que depunham a favor e contra os arguidos. Concluiu nos seguintes termos:
“A pena de multa a aplicar é fixada em dias, de 10 a 360 dias para as pessoas singulares e de 20 até 1000 dias para as pessoas colectivas. A cada dia de multa corresponde uma quantia entre 2.000$00 e 100.000$00, para as pessoas singulares e 5.000$ e 500.000$00 para as pessoas colectivas (art. 11º do RJIFNA). Tudo ponderado, no caso concreto, o Tribunal crê que uma pena situada perto de um terço da moldura abstracta será suficiente e adequada para a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Não se olvida que são fortes as exigências da prevenção geral que se fazem sentir neste domínio, dado o alargamento de devedores de imposto, no entanto, não se poderão esquecer, por outro lado, as condições do caso concreto
– o arguido é o gerente de uma sociedade que já não labora e que como tal não tem rendimentos, com um passado que não revela crime algum, tendo ainda, posteriormente, iniciado o pagamento em prestações da quantia em dívida.
Em sede de medida concreta da pena de multa deparámo-nos com a dificuldade decorrente da necessidade de conjugar dois elementos pressupostos no RJIFNA que são, em nosso entender, inconciliáveis. Por um lado, prevê-se no seu art. 11º, nº 2, uma moldura penal abstracta para a pena de multa (10 a 360 dias), sendo que, por outro, no seu art. 24º se prevê que o limite mínimo a aplicar seja equivalente ao montante da prestação em dívida.
Considerando que a moldura penal abstracta se destina a permitir que o julgador, no acto da decisão, adeque a pena a aplicar à situação concreta do arguido e dos factos praticados, atendendo às finalidades da pena previstas no art. 40º do C. Penal, aplicável ex vi art. 4º do RJIFNA, não se vislumbra como possa aceitar-se que o limite mínimo da pena de multa é a quantia equivalente à prestação em dívida.
Aceitando que ao julgador competiria fixar a pena concreta dentro da moldura penal da multa de acordo com os critérios acima referidos e depois fazer tábua rasa das condições sócio-económicas do arguido para lhe aplicar, pelo menos o montante da prestação em dívida.
Decorre do exposto que, por exemplo, se entendêssemos adequado aplicar ao arguido a pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 7.000$, de acordo com a situação sócio-económica do arguido, num total de 1.050.000$00, ainda assim teríamos que o condenar na pena de multa de 2.021.824$00, por força do nº 1 do art. 24º do RJIFNA.
Esta previsão normativa, desconsiderando na pena os princípios elementares que regem a sua determinação concreta – e que estão plasmados no art. 40º do C. Penal – e a situação financeira de cada arguido, viola princípios fundamentais do Estado de Direito como sejam o princípio da culpa, corolário do princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, e o princípio da igualdade, reconhecidos constitucionalmente (cfr. art. 13º da CRP).
Assim sendo, decide-se no caso em apreço recusar a aplicação da parte final da norma constante do art. 24º, nº 1, do RJIFNA, interpretada no sentido de que impondo que o limite mínimo da pena de multa a aplicar ao arguido seja equivalente ao montante da prestação em dívida, poderá conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido exceda os limites impostos pela sua culpa concreta e se desconsidere a sua situação sócio-económica, uma vez que esta interpretação é inconstitucional porque violadora dos princípios fundamentais do Estado de Direito como sejam o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade (arts. 13º e 18º da CRP)”.
Deste modo, a pena concretamente aplicada à arguida R..., LDA foi de
130 dias de multa à taxa diária de 7.500$00, num total de 975.000$00, enquanto o arguido A ... foi condenado na pena de 130 dias de multa à taxa diária de
4.000$00, num total de 520.000$00, ou em alternativa, para a hipótese de a multa não ser paga, na pena de 86 dias de prisão.
4. Do exposto resulta que a decisão recorrida recusou tomar a quantia de 2.021.824$00 – que considerou ser o valor da prestação em falta –, como limite mínimo da pena de multa a aplicar, tendo fixado, relativamente a ambos os arguidos, penas de multa de montante inferior ao que necessariamente decorreria da aplicação daquele limite (975.000$00 e 520.000$00, respectivamente). O não acatamento do disposto no nº 1 do artigo 24º do diploma legal citado, na parte em que determina que a multa a aplicar será “não inferior ao valor da prestação em falta”, assentou claramente no julgamento de inconstitucionalidade desse trecho normativo. Deste modo, não tem razão o magistrado do Ministério Público em funções neste Tribunal, quando defende que o tribunal recorrido não retirou qualquer consequência da recusa de aplicação da norma em causa e, consequentemente, que tal recusa não constituiu efectivo fundamento da decisão. Na verdade, se não tivesse havido a referida recusa de aplicação, a multa a aplicar a cada um dos arguidos seria igual ou superior a 2.021.824$00. Impõe-se, assim, conhecer do objecto do recurso, apreciando a questão da constitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 24º do Regime das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro), que estabelece a pena aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, na parte em que dispõe que a pena de multa a aplicar será “não inferior ao valor da prestação em falta”.
É de referir que o do Regime das Infracções Fiscais Não Aduaneiras foi entretanto revogado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o
Regime Geral das Infracções Tributárias, e que comina, para o crime base de abuso de confiança fiscal (no nº 1 do artigo 105º), a pena de prisão até três anos ou de multa até 360 dias.
5. O julgamento de inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 24º do RJIFNA, na parte em que determina que a multa a aplicar será “não inferior ao valor da prestação em falta”, assentou, em síntese, na ideia de que tal estatuição levaria a desconsiderar “na pena os princípios elementares que regem a sua determinação concreta” e a “situação financeira de cada arguido”, desta forma violando “princípios fundamentais do Estado de Direito como sejam o princípio da culpa, corolário do princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, e o princípio da igualdade, reconhecidos constitucionalmente”.
Vejamos sucessivamente as invocadas violações do princípio da culpa e do princípio da igualdade.
6. O princípio da culpa “significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo ” (JOSÉ DE SOUSA E BRITO, “A lei penal na Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, págs. 199-200). Implica tal princípio que “não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa”
(aut. e ob. cit., pág. 200).
O princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana (art. 1º) e do direito à liberdade (nº 1 art. 27º), como tem reconhecido a doutrina (neste sentido, JOSÉ DE SOUSA E BRITO, ob. cit., pág. 199 e MARIA FERNANDA PALMA, “Constituição e Direito Penal – As questões inevitáveis”, in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de
1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 234; no sentido de que o princípio da culpa é
“consequência da exigência incondicional de defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos arts. 1º, 13º-1 e 25º-1 da CRP”, v. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, Lisboa,
1993, pág. 84; cf. também GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, III, Lisboa, 1999, pág. 25, para quem este princípio se funda “no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, que a Constituição consagra logo no artigo
1º”) e a jurisprudência constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 426/91, in Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º, pág. 423 e segs., nº
524/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional , 40º, pág. 623 e segs., nº
663/98, in Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999, nº 89/2000, in Diário da República, II Série, de 4 de Outubro de 2000, nº 202/2000, in Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 10/2000 e nº 95/2001, não publicado.
São consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa; a proibição das penas absoluta ou tendencialmente fixas (cf. os acórdãos nº 202/2000 e nº 95/2001).
Segundo a decisão recorrida, a norma que constitui objecto do presente recurso é violadora do princípio da culpa, na medida em que “poderá conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido exceda os limites impostos pela sua culpa concreta”.
O nº 1 do artigo 24º em análise dispõe, como já se deixou registado, que “Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido”.
A eventual procedência do julgamento de inconstitucionalidade por violação da proposição segundo a qual a pena não pode exceder a medida da culpa depende da averiguação do exacto alcance da disposição transcrita. Ora, esse exacto alcance parece não ter sido devidamente tido em consideração pela decisão recorrida, como se vai ver.
7. Antes de mais, importa sublinhar que o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na
“Constituição da República Portuguesa anotada”, 3a edição, Coimbra, 1993, pág.
197, para quem “resta um amplo campo à discricionariedade legislativa em matéria de definição das penas”) embora respeitando os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade. Dentro do âmbito dessa liberdade do legislador cabe – sempre no respeito pelos princípios constitucionais – a escolha da pena ou penas aplicáveis aos diferentes crimes, quer na sua identidade e regime, quer na sua medida abstracta (penalidade, pena aplicável ou “moldura penal”).
Optou o legislador por cominar, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, em alternativa, a pena de prisão até três anos ou a pena de
“multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido”. Assim, os limites da pena de multa são estabelecidos tendo por referência o valor da prestação em falta: o limite mínimo corresponde a tal valor, enquanto o limite máximo corresponde ao dobro desse valor (salvo se o limite máximo legalmente estabelecido for inferior, caso em que este será o limite máximo da multa prevista para o crime de abuso de confiança).
Deste modo, e sem prejuízo da intervenção, nos termos gerais, de institutos que permitam atenuar a responsabilidade (atenuação especial, dispensa de pena), é dentro da margem fornecida pelos referidos limites mínimo e máximo
(e não fora deles) que o grau de culpa do agente é objecto da devida ponderação.
A decisão recorrida apenas pôde considerar que o limite mínimo previsto na parte final do nº 1 do artigo 24º era violador do princípio da culpa porque optou por um diferente enquadramento dogmático. Em vez de apurar os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável em função do montante da prestação tributária em dívida e do dobro desse montante, preferiu aplicar, sem reservas, o artigo 11º, como se esta última disposição não fosse afastada, em grande medida, pela norma especial do artigo 24º. É verdade que o Tribunal a quo se deu conta do carácter “inconciliável” da aplicação simultânea dos artigos 11º e 24º. Todavia, em lugar de, nos termos gerais, fazer prevalecer a regra especial do artigo 24º sobre a regra geral do artigo 11º, insistiu na aplicação integral desta, recusando, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do limite mínimo previsto naquela.
Do exposto se conclui que a adopção de um limite mínimo da pena de multa do crime de abuso de confiança fiscal correspondente ao montante da prestação em dívida, acompanhada pela fixação de um montante máximo correspondente ao dobro daquela soma, não viola o princípio da culpa.
8. Pode, no entanto, suscitar-se a dúvida sobre se o modo de fixação dos limites da pena de multa, atendendo à necessidade de respeitar o limite máximo legalmente estabelecido para a pena de multa, pode provocar a cominação de uma pena de multa fixa. Tal sucederia se o montante de prestação tributária em dívida, que determina o limite mínimo da pena de multa, pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido.
A esta dúvida deve responder-se negativamente. Com efeito, a cominação da pena de prisão até 3 anos ou de multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro (sem que possa exceder o máximo abstractamente estabelecido), nos termos do nº 1 do artigo 24º, não vale para infracções em que a quantia em dívida é inferior a 250 000$00 (caso em que o nº 4 prevê uma multa até 120 dias), ou superior a 5 000 000$00 (hipótese em que o nº 5 comina uma pena de prisão de 1 a 5 anos). Relativamente às quantias que se encontrem entre 250 000$00 e 5 000 000$00, não
é possível ultrapassar o máximo abstractamente estabelecido, já que tal máximo corresponde, por força dos nºs 2 e 3 do artigo 11º, respectivamente, a 36 000
000$00 ou a 500 000 000$00, respectivamente no caso de pessoas singulares ou de pessoas colectivas. Esta conclusão poderia ser posta em causa, se se entendesse que “o limite máximo abstractamente estabelecido”, a que se refere o nº 1 do artigo 24º, pressupõe, para cada arguido, a fixação do montante correspondente a cada dia de multa, nos termos do artigo 11º, o que levaria a que o limite mínimo da pena de multa pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. Neste sentido deporia a falta de sentido útil de tal limite – já que ele nunca limitaria o montante decorrente do nº 1 do artigo 24º –, se assim não fosse entendido. Apesar deste argumento, porém, não pode deixar de se entender o “limite máximo abstractamente estabelecido” no sentido de verdadeiro limite abstracto, isto é, independente do caso concreto, e, por isso, a implicar a multiplicação do montante máximo previsto para cada dia de multa (cf. nº 3 do artigo 11º) pelo número máximo de dias de multa previstos (nº 2 do mesmo artigo). É que seria valorativamente contraditório estabelecer um sistema de limites da pena de multa no nº 1 do artigo 24º a partir de quantias fixadas por referência à quantia em dívida, e ao mesmo tempo pressupor a necessidade de fixação do montante correspondente a cada dia de multa, para o efeito da determinação do limite máximo abstractamente estabelecido. Tanto mais que tal entendimento conduziria, justamente, à solução absurda de o limite máximo legalmente estabelecido poder ser igual ou inferior ao limite mínimo previsto no nº 1 do artigo 24º.
9. Pelo que toca à alegada violação do princípio da igualdade (art.
13º da Constituição), por impossibilidade de ponderação da situação económica e financeira do arguido, valem, em síntese, mutatis mutandis, as considerações formuladas sobre a não violação do princípio da culpa. Na verdade, nada obsta a que a situação económica e financeira do arguido seja tida em conta dentro dos limites mínimo e máximo estabelecidos no nº 1 do artigo 24º, assim se conseguindo tratar igualmente o que é igual, e desigualmente o que é desigual.
Não se diga, por outro lado, que viola o princípio da igualdade a possibilidade de arguidos de situação económica e financeira semelhante virem a ser punidos de modo diferente, em função da existência de diferentes limites mínimo e máximo, determinados pelos montantes em dívida. A diferente penalidade corresponde justamente à diferente gravidade que o legislador fundou na diversa quantia em dívida. Trata-se de uma solução que tem paralelo, por exemplo, na diferenciação de penalidade para crimes contra o património em função do valor em causa [cf. as alíneas a) a c) do artigo 202º e os artigo 203º e seguintes do Código Penal].
9. Deste modo, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 24º do Regime das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, na parte em que estabelece um limite mínimo da pena de multa aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal “não inferior ao valor da prestação em falta”; b) Determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida