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Processo n.º 509/01
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1.Em 15 de Dezembro de 2000, A ... e I... foram condenados, no tribunal judicial de Tavira, nas penas de, respectivamente, 16 dias de multa à taxa diária de
900$00 e de 5 anos de prisão, pela prática de crime de tráfico e consumo de heroína e cocaína. Anteriormente, no decurso da audiência, em 16 de Novembro do mesmo ano, a Exm.ª Procuradora requerera “a documentação das declarações a prestar na presente audiência mediante gravação audio, de que o Tribunal dispõe os meios nos termos do artigo 363º do C.P.P., e não sendo a mesma determinada, desde já se invoca tal irregularidade nos termos do artigo 123º do C.P.P.” Nada foi oposto ao requerido pelos defensores dos arguido. Tendo o Escrivão do tribunal sido interrogado pelo Mm.º Juiz Presidente acerca das condições do mesmo para proceder ao que fora requerido pelo Ministério Público, replicou que “o Tribunal dispõe de meios para proceder à gravação audio das declarações produzidas em audiência, mas que não dispõe de meios para proceder à transcrição integral das mesmas.” O Juiz presidente do colectivo proferiu então o despacho seguinte:
“Resultando da Lei processual penal que as gravações da audiência se destinam a permitir a transcrição fiel das declarações orais produzidas em audiência no domínio probatório, sendo estas, forçosamente transcritas em acta, convida-se o MºPº a garantir os meios necessários para proceder à transcrição integral das cassetes, no prazo máximo de 30 dias a contar da gravação, porquanto o Tribunal não dispõe dos meios materiais e humanos para assegurar tal transcrição.” Tendo a Magistrada do Ministério Público declarado nada ter a dizer ou requerer, foi indeferida a gravação requerida, pelo seguinte despacho proferido pelo M.mº Juiz Presidente ainda na audiência de julgamento de 16 de Novembro:
“O arguido I... encontra-se preso preventivamente. A deferir-se o requerido, a gravação tornar-se-ia legalmente inconsequente e ineficaz, porquanto o Tribunal colectivo não carece dos mesmos para decidir a matéria de facto, atenta a simplicidade do objecto do do processo, e a sua transcrição resultaria obrigatória, no contexto da documentação da prova oral. Pelo exposto – tendo ainda em atenção que pelos Exmºs Defensores dos arguidos não foi requerida a documentação em questão – indefere-se o requerido, de modo a assegurar os direitos processuais e constitucionais dos arguidos ‘maxime’ o seu direito constitucional à defesa e a um proceso equitativo e célere.” Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, “a subir nos próprios autos, diferidamente, com o que vier a ser interposto da decisão final”, tendo este sido admitido, nos termos dos artigos 411º, n.º 1, 399º, 401º, n.º 1, alínea a), 406º, n.º 1, e 407º, a contrario, do Código de Processo Penal.
2.Após prolação do acórdão condenatório, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público e o arguido I.... Na parte que ora interessa – relativa ao despacho citado – este Tribunal, depois de recordar que
“no despacho preliminar do relator foi suscitada a questão prévia da falta de interesse em agir do Ministério Público quanto aos recursos por si interpostos, mas sustentou-se que o processo deveria seguir logo para julgamento em conferência, onde seria tal questão objecto de adequado conhecimento”, e de dissertar sobre a razão de ser e o alcance da gravação das declarações prestadas perante o tribunal colectivo, pronunciou-se da seguinte forma:
“Vem tudo isto a propósito da falada questão prévia, consistente, como ficou dito, no entendimento de que ao M.P. falece interesse em agir para os dois recursos por si interpostos.
É que se a gravação tem como objectivo primário o de facultar a reapreciação integral da matéria de facto pelo tribunal superior, quem invocar a irregularidade da não gravação, tem, naturalmente, de manifestar desacordo relativamente ao modo como aquela matéria de facto foi julgada. Isto é, tal irregularidade tem de ter tradução no fundo da causa, de cujo julgamento houver recurso e onde, naturalmente se fará ressaltar a discordância do recorrente quanto aos pontos de facto que entenda mal julgados. De outro modo, torna-se definitivamente adquirida. Na verdade, porque é que o recurso interposto contra a falada irregularidade tem, por força da lei, subida diferida? É porque, no fim de contas, pode acontecer, que, apesar de tudo, o julgamento final da causa venha a satisfazer o recorrente, que, em tal caso, dele não venha a recorrer, deixando cair assim o recurso interlocutório referido. Tal como nos agravos em processo civil, os recursos com subida diferida em processo penal ‘deixam de ter função útil’ se o respectivo recorrente se conforma com a decisão de mérito: no que àqueles respeita...
É o que resulta, nomeadamente, do disposto no artigo 412º, n.º 5, do Código de Processo Penal, que obriga o recorrente a especificar os recursos retidos que, depois da decisão final, ainda mantêm interesse. Pois, se não fosse como ficou dito supra, esta exigência tornar-se-ia uma inutilidade, já que todos eles deveriam então ser sempre conhecidos. Ora, por um lado, como se vê das conclusões da motivação, em ambos os recursos, o M.P. recorrente não impugna a matéria de facto apurada. O recurso, nomeadamente do acórdão final, versa apenas matéria de direito, reeditando o tema do anterior, de resto como é permitido pelo princípio da cindibilidade, consagrado no artigo 403º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Mas ao não impugnar a matéria de facto, mostra-se, afinal, conformado com o acórdão recorrido quanto à apreciação que nesse aspecto essencial da causa, ali operada. Isto é, para que o recurso interlocutório pudesse seguir e ser objecto de conhecimento pelo tribunal de recurso, a matéria de facto deveria ter sido alvo de impugnação pelo recorrente no recurso interposto do acórdão em causa. Não o tendo sido, a discussão objecto dos apontados recursos volveu-se em mera questão académica cujo conhecimento cai fora da alçada dos tribunais. Por outro lado, aquela mesma conclusão - acatamento dos factos apurados pelo tribunal recorrido - se pode inferir da ‘resposta’ a que supra se fez já referência [resposta ao recurso do arguido I...], apresentada pela mesma entidade, onde, como se disse , o respondente afirma que o tribunal a quo ‘fez correcta subsunção dos factos ao direito’ e em lado algum da peça em causa, ousa, sequer, sugerir, que o apuramento dos factos efectuado é passível de qualquer tipo de censura. Aliás, só assim se compreende que, já neste Supremo, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu ‘visto’ inicial se tenha pronunciado quanto ao recurso de fls.
237 e segs. - o do arguido I...s - no sentido de que ‘nada obsta a que, oportunamente, se designe data para realização de audiência - artº 423º do C.P.P. - fls. 301’. O próprio arguido recorrente, aceitando os factos que o incriminam, limita o seu recurso, à discussão da matéria de direito. Ora, se a matéria de facto em causa fosse alvo de discordância, decerto que haveria obstáculo de vulto à realização da audiência, pois tal questão - integrada que estaria no objecto do recurso do MP - seria, no mínimo,
‘prejudicial’ ao julgamento que, assim, ficaria... prejudicado. Como assim, porque relativamente à matéria de facto a decisão final do colectivo, porque inatacada, transitou em julgado, ‘perderam função útil’ os dois recursos interpostos pelo MP, que não atacaram. Pelo que, sendo embora caso raro, aquela entidade perdeu, no caso, interesse em agir, ou seja, a ‘necessidade de usar do recurso para sustentar o seu direito’. Assim, por falta daquele pressuposto processual, não se conhece dos aludidos dois recursos - art. 401º, n.º 2, do C.P.P.”
3.Desta decisão foi interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação da constitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal a quo do artigo 401º do Código de Processo Penal, segundo a qual “ainda que o Tribunal não tivesse facultado as condições razoáveis para que pudesse seriamente ser impugnada matéria de facto e que, por via disso, o Ministério Público estivesse impedido de cumprir as exigências legais decorrentes do art. 412º, n.º 3, do CPP, o Ministério Público deveria ter impugnado matéria de facto, sob pena de perder o interesse em agir’” – interpretação, esta, que se considerava, no requerimento de recurso violadora, do direito ao recurso consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição e limitadora da competência do Ministério Público, assegurada pelo artigo 210º
[deveria querer dizer 219º] da Lei Fundamental. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho no sentido de poderem
“porventura, suscitar-se dúvidas quanto à qualificação, por um lado, da questão levantada no recurso como verdadeira questão de constitucionalidade normativa, devidamente identificada, e, por outro lado, da decisão recorrida como
‘decisão-surpresa’, para o efeito de tornar desnecessária a suscitação da questão de constitucionalidade ‘durante o processo’ ”, ordenando que o processo prosseguisse para alegações. Nas alegações produzidas no Tribunal Constitucional, o Ministério Público – após considerar que a referida “questão de constitucionalidade normativa podia legitimamente ser suscitada apenas aquando da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, já que não era previsível que o Supremo viesse a adoptar o entendimento ora questionado ‘sub specie constitutionis’ – impondo ao recorrente (que manifesta expressamente interesse na subida do recurso retido) o
ónus de deduzir efectiva e imediata impugnação da matéria de facto apurada em audiência, apesar de – por violação das disposições da lei de processo – inexistir qualquer registo ou gravação da prova produzida, em pura oralidade, na audiência final que decorreu perante o colectivo” – concluiu assim:
“1 – É inconstitucional, por envolver desproporcionada violação do direito ao recurso, ínsito no artigo 32º, n.º 1, bem como do dirieto de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 401º do Código de Processo Penal que se traduz em denegar interesse em agir ao recorrente que – tendo impugnado o despacho interlocutório que ilegalmente indeferiu a gravação da audiência – impugnou também o acórdão proferido pelo colectivo, manifestando expressamente interesse na apreciação do recurso retido, sem, todavia, proceder a uma especificada e fundamentada impugnação da livre apreciação da prova feita pelo colectivo.
2 – Sendo certo que – por força da ilegalidade cometida – o recorrente se viu privado da possibilidade de aceder ao registo da prova, que lhe possibilitaria o adequado cumprimento dos ónus impostos pelo artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
3 – E carecendo, aliás, de qualquer utilidade prática a dedução da dita impugnação circunstanciada da decisão proferida sobre a matéria de facto, já que o tribunal de recurso nunca poderia sindicar dos respectivos fundamentos, por não haver nos autos qualquer registo da prova oralmente produzida e livremente apreciada pelo colectivo.” O recorrido não produziu alegações dentro do prazo legal. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Questões prévias
4.O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que o seu conhecimento requer, designadamente, que a inconstitucionalidade da norma impugnada tenha sido suscitada durante o processo, que esta tenha sido aplicada na decisão recorrida, e que tenham sido esgotados os recursos ordinários. Sendo evidente o preenchimento deste último requisito, importa, porém, averiguar se o recurso visa a apreciação de uma questão de constitucionalidade normativa, determinar o sentido da norma aplicada na decisão recorrida, e averiguar se a sua inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, ou se o não tinha de ser.
5.Retira-se do requerimento de recurso que se pretende ver apreciada a conformidade constitucional da norma do artigo 401º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que “ainda que o Tribunal não tivesse facultado as condições razoáveis para que pudesse seriamente ser impugnada matéria de facto e que, por via disso, o Ministério Público estivesse impedido de cumprir as exigências legais decorrentes do art. 412º, n.º 3, do CPP, o Ministério Público deveria ter impugnado matéria de facto, sob pena de perder o interesse em agir’”. Ou mais precisamente (pois está em questão apenas o interesse em agir), da interpretação do artigo 401º, n.º 2, daquele Código (segundo o qual “Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”) que, num recurso interposto pelo Ministério Público, “se traduz em impor ao recorrente – que questiona a legalidade do despacho interlocutório que indeferiu a gravação da audiência – o
ónus de, sob pena de preclusão de tal recurso por invocada ‘falta de interesse em agir’, questionar, no recurso interposto da decisão final condenatória, a matéria de facto apurada pelo tribunal, em livre valoração da prova (como se pode ler nas alegações produzidas por este no Tribunal Constitucional). Ora, pesem embora as dúvidas inicialmente suscitadas, em face do requerimento de recurso, admite-se que se está perante uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa – de uma certa dimensão normativa correspondente a uma interpretação do preceito que requer interesse em agir para recorrer –, e é claro que tal norma foi aplicada no acórdão recorrido. Foi por se ter entendido que faltava este pressuposto processual “interesse em agir”, em resultado de não se ter impugnado a decisão final quanto à matéria de facto – e de, por conseguinte, esta ter transitado em julgado –, que a decisão recorrida não tomou conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público do despacho que indeferiu a gravação da prova.
6.A norma em questão foi, portanto, aplicada na decisão recorrida. A sua constitucionalidade não foi, porém, impugnada “durante o processo”, entendido este requisito no sentido (não formal, mas funcional) com que a jurisprudência deste Tribunal o determinou. Todavia, como este Tribunal também tem salientado (assim, por exemplo, do citado Acórdão n.º 352/94), tal situação sofre restrições “em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final”. Apesar, mais uma vez, das dúvidas inicialmente manifestadas – até no intuito de que recorrente e recorrido se pronunciassem sobre o ponto –, entende-se que é esta também a situação no caso presente. Na verdade, com o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho que indeferiu a gravação da prova visava-se justamente obter os meios que permitissem a fixação da matéria de facto, permitindo, entre outras razões, a sua impugnação. O recorrente defendia com tal recurso, aliás, que, tendo a gravação da prova sido ilegalmente indeferida, a audiência e a decisão em matéria de facto eram nulas, por isso não impugnando a matéria de facto. Ora, a imposição a um tal recorrente do ónus de impugnar a matéria de facto decidida traduz-se em obrigá-lo a contrariar o seu entendimento quanto à decisão da matéria de facto e em impor-lhe, como condição de apreciação do recurso, uma impugnação da matéria de facto cujas condições e meios aquele recurso visava justamente possibilitar. Entende-se que não era exigível que o Ministério Público antecipasse tal interpretação, suscitando a sua inconstitucionalidade. Fê-lo no requerimento de recurso, quando já estava esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido – mas não lhe era exigível que previsse a interpretação da norma em questão para o efeito de, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, suscitar a sua inconstitucionalidade. Toma-se, pois, conhecimento do presente recurso, tendo como objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 401, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o Ministério Público, num recurso em que questiona a legalidade do despacho interlocutório que indeferiu a gravação da audiência e que sobe a final, tem, sob pena de preclusão de tal recurso por falta de interesse em agir, o ónus de impugnar, no recurso interposto da decisão final condenatória, a matéria de facto apurada pelo tribunal, em livre valoração de prova que não ficou gravada. B) Questões de constitucionalidade
7.Importa começar por relembrar que não está em causa no presente recurso (nem directa, nem indirectamente), a apreciação da conformidade à lei do despacho de
16 de Novembro de 2000 pelo qual foi indeferida a gravação das declarações na audiência. Tal apreciação não compete a este Tribunal, limitadas como estão as suas competências neste tipo de recurso de constitucionalidade à apreciação da constitucionalidade de normas. O presente recurso, que é o meio que o nosso sistema conhece para fiscalização concentrada, em via de recurso, da conformidade constitucional das normas aplicadas pelos tribunais, é restrito à questão de constitucionalidade. Significa isto que não cumpre nesta sede decidir, com independência da questão de constitucionalidade, sobre a interpretação mais adequada – mais próxima da letra da lei, mais conveniente, etc. – do artigo 363º do Código de Processo Penal, ou seja, dos termos da documentação de declarações orais em audiência. Nem pode tal invocada ilegalidade, por outro lado, considerar-se integrante da dimensão normativa em apreço, desde logo (e, portanto, independentemente de outras considerações de ordem lógica), por não ter sido reconhecida por decisão no processo. Por outro lado, a este Tribunal também não compete sancionar determinada interpretação normativa, aplicada na decisão recorrida (no caso, do artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal), apenas porque ela se lhe afigura errada – ou mesmo anómala, insólita ou imprevisível – se em tal dimensão normativa não reconhecer uma violação dos preceitos constitucionais. Está, pois, apenas em causa a constitucionalidade da aludida dimensão normativa do artigo 401º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Ora se, no requerimento de recurso, o recorrente impugnou a conformidade constitucional dessa norma por confronto com o disposto nos artigos 32º, n.º 1, e 219º da Constituição – violação do direito ao recurso e autonomia e competência do Ministério Público –, o Ex.mº representante do Ministério Público neste Tribunal sediou também o problema de constitucionalidade na violação do direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República. Afigura-se que é, na verdade, com tais parâmetros que há que confrontar a norma em questão, começando por averiguar se o artigo 32º, n.º 1 da Constituição pode ser invocado pelo Ministério Público num caso como o presente.
8. Preceitua o artigo 32º, n.º 1 da Constituição que o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso. E, como se sabe, a concretização legal de tais garantias constitucionais está submetida ao regime previsto, para os direitos, liberdades e garantias, no artigo 18º da Constituição, incluindo, designadamente, o respeito pela proporcionalidade da suas limitações. Ora, no presente caso, o recurso que foi rejeitado havia sido interposto, não pelo arguido em processo penal, mas pelo Ministério Público, visando a obtenção da gravação das declarações produzidas em audiência. Não está, pois, em questão um recurso que tenha sido interposto pelo Ministério Público no interesse exclusivo do arguido (cfr. o artigo 40º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Entende-se, porém, que tal seria de exigir para que o Ministério Público, enquanto recorrente, pudesse invocar as garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º1, da Constituição – para um caso em que a invocação das garantias de defesa do arguido, em particular o direito ao recurso, foi aceite por este Tribunal em recurso interposto pelo Ministério Público em benefício do arguido, v., por exemplo, o citado acórdão n.º 284/2000. Tratava-se, no presente caso, de um recurso interlocutório, do indeferimento da gravação da prova, do qual, em abstracto – isto é, independentemente da valoração da prova que o Tribunal veio efectivamente a realizar e do teor das declarações a gravar –, não se pode dizer que vise beneficiar ou prejudicar o interesse do arguido. A decisão de tal recurso interlocutório (embora subindo a final), anterior à decisão final. pode até vir concretamente a beneficiar o arguido – pense-se no caso de a gravação das declarações apontar num sentido que lhe é mais favorável. Mas pode também não ser assim, não podendo esquecer-se, não só que o próprio arguido não requereu a gravação da prova – e podia tê-lo feito, se entendesse que isso o podia beneficiar – como que do provimento do recurso interposto pelo Ministério Público pode vir a resultar, a final, uma decisão menos favorável ao arguido – ou seja, uma autêntica reformatio in pejus, a qual, como se sabe, não é proibida pelo artigo 409º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando o recurso do Ministério Público não foi interposto no interesse exclusivo do arguido. Ora, não pode considerar-se que a previsão e o regime do recurso em questão – interlocutório interposto apenas pelo Ministério Público, e cuja decisão pode vir a prejudicar o arguido – integram ainda o “âmbito de protecção” da norma do artigo 32º, n.º1, da Constituição, que se refere apenas às garantias de defesa do arguido, incluindo nelas o direito ao recurso – tal como, evidentemente, também não seria invocável pelo Ministério Público artigo 32º, n.º 1 da Constituição, se o recurso tivesse sido interposto simplesmente no exercício do ius puniendi estatal, por não estar em causa o direito ao recurso enquanto garantia de defesa do arguido. A invocação pelo Ministério Público das “garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso”, consagradas no artigo 32º, n.º 1 , da Constituição, como parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma em causa, quando do recurso pode vir a resultar uma decisão menos favorável ao arguido, não pode, pois, ser considerada procedente.
9. Afastado, como parâmetro da conformidade constitucional da norma em questão, o artigo 32º, n.º 1 da Constituição, resta a invocação dos artigos 20º e 219º da Constituição, efectuada nas alegações do Ministério Público e no requerimento de recurso. Este Tribunal já aplicou, efectivamente, o direito de acesso à justiça e aos tribunais, consignado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, para apreciar a conformidade constitucional de norma da qual resultava o não conhecimento de recurso. Assim, por exemplo, no Acórdão 275/99 (DR, II série, de 13 de Julho de 1999), a norma do artigo 690º, n.º 3, do Código de Processo Civil – na redacção anterior à resultante dos Decretos-Leis n.ºs 329/A-95 e 180/96, subsidiariamente aplicável a processo penal ainda regido pelo Código de 1929 – interpretada no sentido de que a consequência aí prevista do não conhecimento do recurso se não restringe à parte das conclusões que se mostra efectivamente afectada, foi julgada inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição. Também neste caso, porém, estava em questão recurso interposto pelo arguido, que havia sido rejeitado por falta de conclusões (pois não eram concisas), tendo-se entendido, quanto à consequência jurídica, que “seria efectivamente desproporcionado que o “excesso” de argumentação ou fundamentação, ou a desnecessária extensão material de certa peça processual, pudesse, sem mais, conduzir a uma total e irremediável preclusão de todas as questões de direito suscitadas no recurso, incluindo aquelas em que a intelegibilidade e concludência das pretensões e fundamentos da impugnação deduzida em nada fosse inquinada pela desmesurada extensão de outras parcelas ou segmentos da mesma peça processual.” A situação é diversa no presente caso, em que o recorrente é o Ministério Público. Na verdade, entende-se que não se pode invocar o direito fundamental que é o
“direito de acesso à justiça e aos tribunais” para defender a admissão de recursos interpostos pelo Ministério Público no exercício da acção penal, ou, pelo menos, dos quais pode vir a resultar uma decisão menos favorável ao arguido. Pode, desde logo, questionar-se se o direito de acesso à justiça e aos tribunais, como direito fundamental dirigido contra o Estado, não deverá ser considerado um direito que apenas sujeitos privados, e não o próprio Estado – designadamente, entidades nas quais se encabeça o ius puniendi estatal( como é o caso do Ministério Público) – , podem invocar. Seja, porém, como for quanto a esta questão em geral, deve entender-se que o exercício da acção penal pelo Estado (através do Ministério Público)não é protegido pelo direito fundamental de acesso aos tribunais, previsto no artigo
20º da Constituição. É o que, se não logo de outros argumentos – como a previsão do Ministério Público dentro do título V da parte III da Constituição, dedicado aos “Tribunais”, a consagração da competência para exercício da acção nesse mesmo contexto, ou o próprio sentido histórico e a função primordial dos direitos fundamentais como “direitos de protecção” contra o Estado, e não direitos reconhecidos a este ou aos seus órgãos –, resulta da própria letra do artigo 20º, n.º 1, da Constituição, no qual se assegura o “acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses e interesses legalmente protegidos”, e não para o exercício da acção penal.
É certo que, por outro lado, que o artigo 219º comete ao Ministério Público determinadas funções: “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.” E não pode excluir-se que soluções normativas das quais resulte uma limitação no acesso aos tribunais – eventualmente apenas por preverem critérios restritivos para admissão de recursos interpostos pelo Ministério Público – configurem ou impliquem uma compressão inadmissível dessas funções constitucionalmente previstas, devendo, portanto, tais soluções devam ser consideradas inconstitucionais por violação de disposições da Lei Fundamental relativas às funções e competência do Ministério Público enquanto instituição, revistas na respectiva divisão (parte III, título V, capítulo IV). Não se tratará, ainda nesse caso, porém, de inconstitucionalidade por lesão de um alegado direito fundamental do Ministério Público. E, seja como for, entende-se que não é isso o que acontece com a norma em crise no presente recurso .
10. Na verdade, poderá admitir-se que a dimensão normativa em causa não corresponde, porventura, ao melhor direito. E pode, mesmo, deixar-se em aberto a questão de saber se, caso o recurso fosse interposto pelo arguido, tal norma não seria de considerar inconstitucional, por violação das garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso, reconhecidas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição – isto, por impor ao arguido que pratique um acto (a impugnação da matéria de facto) que não só é inútil da sua perspectiva (por considerar a audiência de julgamento e a decisão em matéria de facto nulas), como objectivamente contraditório com o sentido do recurso que interpôs, o qual visava facultar-lhe elementos que lhe permitissem analisar a prova e, se fosse o caso impugnar a decisão sobre os factos. Já não se afigura, porém, defensável, que a dimensão normativa em questão, ao impor ao Ministério Público, para ver apreciado o seu recurso (e obter a gravação da prova), o ónus de impugnar a matéria de facto (mesmo sem que esta tenha ficado documentada e com base apenas no que ocorreu durante a audiência), importe – não uma violação das garantias de defesa ou do direito fundamental de acesso aos tribunais, mas – uma compressão inadmissível das funções constitucionalmente reconhecidas ao Ministério Público. Sem a referência àquelas disposições de direitos fundamentais (cujo âmbito de protecção, como se viu, não inclui o recurso em questão no presente caso), entende-se que as garantias relativas às funções do Ministério Público enquanto instituição não são, só por si, susceptíveis de fundar um juízo de inconstitucionalidade da dimensão normativa em questão. Na verdade, independentemente da questão de saber se o exercício de tais funções, constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público, pressupõe também o reconhecimento de um direito ao recurso, o que é certo é que a possibilidade de recorrer não é precludida pela norma em causa, tendo bastado, para que o recurso seja apreciado, que o Ministério Público se não houvesse limitado a deduzir o recurso, mas tivesse cumprido o ónus de, os pontos da matéria de facto apurada pelo tribunal recorrido(mesmo que em livre valoração da prova que não ficou gravada) que considerava incorrectamente julgados. Há, por conseguinte, que negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 401, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de impor ao Ministério Público, em recurso em que questiona a legalidade do despacho interlocutório que indeferiu a gravação da audiência e que sobe a final, e sob pena de preclusão de tal recurso por falta de interesse em agir, que impugne, no recurso interposto da decisão final condenatória, a matéria de facto apurada pelo tribunal, ainda que a prova não tenha ficado gravada. b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de
Dezembro de 2001 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Cons. Maria Fernanda Palma). Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
Votei vencida pelas razões que enunciarei muito brevemente: a) Condição lógica da possibilidade de recorrer, motivadamente, pode ser a análise detalhada da prova produzida em audiência que terá fundamentado a decisão. E isto é sobretudo patente se o recorrente pretender que a decisão em matéria de facto é nula ou pelo menos se o sentido do seu recurso for o da obtenção de elementos que lhe permitam analisar a prova produzida em audiência para posteriormente impugnar a decisão sobre os factos; b) não me parece que ao Ministério Público tenha sido garantida, no caso, a efectivação do poder correspondente ao direito de recurso consagrado explicitamente como garantia de defesa na nossa ordem jurídico-constitucional. Com efeito, o Ministério Público, no exercício das suas funções de titular do exercício da acção penal e de defensor da legalidade democrática (artigo 219º da Constituição) tem o poder e o dever de recorrer sempre que, em face dos critérios legais, o considerar necessário. O recurso é essencial ao controlo das decisões judiciais num estado de direito e quaisquer restrições injustificadas afectam essa importantíssima função de controlo da correcta fundamentação das sentenças bem como a inerente preservação da legalidade democrática; c) não pode deixar de ser considerada restritiva do poder de recorrer a imposição da impugnação de factos concretos quando se pretende obter, pelo recurso, o conhecimento exacto dos factos provados. Assim, a presente interpretação normativa do artigo 401º, nº 2, do Código de Processo Penal viola, seguramente, o artigo 219º da Constituição; d) está a referida dimensão normativa ainda em conflito com o artigo 20º, nº
1, da Constituição. Na verdade, este preceito, para além de reconhecer um direito fundamental, formula valores ou princípios gerais cuja protecção não depende apenas de uma manifestação de interesse subjectivo, mas tem um carácter mais objectivo e abrangente. Há, assim, não só um direito de acesso à justiça, mas protege-se o valor do acesso à justiça independentemente da sua subjectivação numa posição jurídica individual. Isto é, tal valor vive como muitos outros independentemente da subjectivação, merecendo a tutela numa medida mais alargada. A inserção sistemática na Constituição do artigo 20º não deve ser obstáculo a esta conclusão. Assim, por exemplo, também é claro que a protecção do segredo de justiça não é apenas derivada de uma pretensão pessoal (aliás, a protecção do segredo de justiça não se confunde necessariamente com um direito ao segredo). No acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, há, para além de um direito fundamental, um princípio e um valor que são assegurados, mesmo para além de um interesse subjectivo. E não me parece sequer necessário considerar para obter esta conclusão conceitos metodologicamente instáveis como o de direitos fundamentais dos entes públicos; e) por outro lado, com o exercício da acção penal pelo Ministério Público revela-se sempre uma dimensão colectiva de defesa de direitos que torna as restrições a um controlo jurisdicional efectivo pela via do recurso uma afectação dos interesses que justificam o valor geral do acesso ao direito; f) finalmente, não me parece aceitável que restrições da possibilidade de recorrer desta ordem (em que são as condições lógicas da fundamentação do recurso que são postas em causa) não sejam toleráveis na perspectiva das garantias de defesa - que aqui não estarão em causa - e já o sejam para um sentido colectivo de realização da justiça que cabe ao Ministério Público prosseguir.
Maria Fernanda Palma