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Processo n.º 257/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam em conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. e B. foram condenados pela prática de um crime de resistência e coação a funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, do Código Penal, na pena de 12 meses de prisão e ao pagamento de indemnizações.
Os arguidos recorreram desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em 3 de dezembro de 2012, julgou improcedente o recurso.
Os arguidos requereram a aclaração e arguiram a nulidade desta decisão, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 4 de fevereiro de 2012.
Os arguidos recorreram então para o Tribunal Constitucional do primeiro dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos, após correção do primeiro requerimento apresentado:
“Os Recorrentes suscitaram a questão de constitucionalidade no requerimento de aclaração e arguição de nulidade do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães em 3 de dezembro de 2012.
O presente Recurso funda-se na interpretação normativa operada pelo Venerando Tribunal da Relação em duas situações.
O entendimento perfilhado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de ser suficiente, para cumprimento do disposto no Art.º 358 do Código de Processo Penal, a mera leitura dos factos novos considerados desde logo como provados, antes da organização da defesa ou de ser dada essa oportunidade à defesa, desacompanhada também de qualquer indicação dos meios de prova e apenas sendo concedida a palavra à defesa para esta se pronunciar, que é manifestamente inconstitucional por violação do disposto no Art.º 32 n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
E o entendimento perfilhado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de ser possível, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 380º, a correção de erro sobre a valoração da prova que importa a modificação essencial da decisão, como se de mero lapso de escrita se tratasse, que é inconstitucional por violação do disposto no Art.º 32 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Recorrido ao perfilhar e aplicar tal entendimento, conforme resulta do douto Acórdão, faz uma efetiva aplicação inconstitucional das normas supra referidas.
O presente recurso funda-se no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82 de 15/11 com a redação que lhe foi dada pela Retificação n.º 10/98 de 23/05, sendo certo que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal Recorrido (Requerimento de aclaração e arguição de nulidade) em termos de estar obrigado a dela conhecer - cfr. artigo 72º n.º 2 da mesma Lei orgânica supra citada.
Cremos assim que todos os requisitos de admissibilidade do Recurso de Constitucionalidade estão respeitados, impondo-se o conhecimento e apreciação do objeto do Recurso.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitada previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Os arguidos pretendem a fiscalização de constitucionalidade:
- do artigo 385.º, do Código de Processo Penal, interpretado com o sentido de ser suficiente, para o seu cumprimento, a mera leitura dos factos novos considerados desde logo como provados, antes da organização da defesa ou de ser dada essa oportunidade à defesa, desacompanhada também de qualquer indicação dos meios de prova e apenas sendo concedida a palavra à defesa para esta se pronunciar.
- e do artigo 380.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal no sentido de ser possível a correção de erro sobre a valoração da prova que importe a modificação essencial da decisão, como se de mero lapso de escrita se tratasse.
Ora, conforme resulta inequivocamente da leitura da decisão recorrida esta não assumiu nenhum destes critérios normativos como seu fundamento, correspondendo os mesmos à perspetiva crítica que os recorrentes têm do acórdão da Relação de Guimarães.
Não integrando as normas impugnadas a ratio decidendi da decisão recorrida não pode o recurso ser conhecido, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos permitidos pelo artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.
Os Recorrentes reclamaram desta decisão, alegando o seguinte:
“Os arguidos interpuseram recurso para o Venerando TRIBUNAL CONSTITUCIONAL nos termos do artigo 70º n.º 1 al. b) da Lei 28/82 de 15/11, com a redação que lhe foi dada pela Retificação n.º 10/98, de 23/05, para o que está em tempo e tem legitimidade – cfr. artigos 70º, n.º 1, alínea b), 72º e 75º da citada Lei 28/82 com aquela alteração.
O presente recurso fundava-se – e funda-se – no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º acima invocado, sendo certo que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido em termos de estar obrigado a dela conhecer – cfr. artigo 72º, n.º 2 da mesma Lei Orgânica.
Na verdade os recorrentes invocaram nos termos e pelos fundamentos infra invocados, e que aqui por brevidade se dão por integrados e reproduzidos para todos os efeitos legais, que o entendimento perfilhado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de ser suficiente, para cumprimento do disposto no Art.º 358 do Código de Processo Penal, a mera leitura dos factos novos considerados desde logo como provados, antes da organização da defesa ou de ser dada oportunidade à defesa desacompanhada também de qualquer indicação dos meios de prova e apenas sendo concedida a palavra à defesa para esta se pronunciar, é manifestamente inconstitucional por violação do disposto no Art.º 32 n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
E ainda o entendimento perfilhado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de ser possível, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 380º, a correção de erro sobre a valoração da prova que importa a modificação essencial da decisão, como se de mero lapso de escrita se tratasse, que é inconstitucional por violação do disposto no Art.º 32 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Parafraseando J. J. Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 1º volume, págs. 214 e 215 “A fórmula do n.º 1 - referindo-se ao n.º 1 do artigo 32º da CRP – é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, neste preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. «Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (…) este preceito pode ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a «orientação para a defesa» do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível.”
As normas foram efetivamente aplicadas pelo Tribunal Recorrido (Tribunal da Relação de Guimarães) que ao prolatar o douto Acórdão, opera na sua decisão e aplicação do direito uma interpretação inconstitucional das mesmas nos termos supra descritos. Os recorrentes cumpriram todos os formalismos legais para que o recurso pudesse e devesse ser recebido, suscitando a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado, perante o Tribunal Recorrido e tempestivamente, fundamentando ainda suficientemente.
A decisão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães em fazer uma interpretação e aplicação das normas nos termos supra referidos, constitui uma “decisão surpresa” e viola não só a lei mas ainda a jurisprudência unânime.
Por não ter, quanto a nós, o entendimento seguido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, suporte na lei, relativamente às disposições dos artigos 380º e 358º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal, e cuja interpretação se verifica e ocorre naquela supra identificada decisão, esta tem que ser considerada “decisão surpresa”.
Considerando a decisão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães como' decisão surpresa' também e por este motivo deve ser considerada oportuna a invocação da questão de constitucionalidade no requerimento de aclaração e arguição de nulidade apresentado pelos Recorrentes após serem notificados do conteúdo do douto Acórdão proferido por esse mesmo Tribunal.
Pelo exposto, deverá ser conhecido o objeto do recurso por esta conferência, sendo a final o recurso procedente e declarando-se inconstitucional a interpretação inconstitucional operada pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, uma vez que, como referido supra, viola os imperativos constitucionais plasmados no artigo 32 n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
As normas foram efetivamente aplicadas pelo Tribunal Recorrido, os recorrentes cumpriram todos os formalismos legais para que o recurso pudesse e devesse ser recebido e fundamentou suficientemente.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
A decisão reclamada não admitiu o recurso interposto por ter constatado que as normas cuja fiscalização de constitucionalidade havia sido requerida não integravam a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Os Recorrentes discordam deste juízo.
Os Recorrentes pediram a fiscalização da constitucionalidade do artigo 385.º, do Código de Processo Penal, interpretado com o sentido de ser suficiente, para o seu cumprimento, a mera leitura dos factos novos considerados desde logo como provados, antes da organização da defesa ou de ser dada essa oportunidade à defesa, desacompanhada também de qualquer indicação dos meios de prova e apenas sendo concedida a palavra à defesa para esta se pronunciar.
O acórdão recorrido, a esse respeito, disse o seguinte:
“…Tem-se assim que após ter dado a palavra para defesa ao Mandatário dos recorrentes nos termos do art. 358º nº 1 do CPP, ante a alegação logo ali feita por aquele, de que a comunicação não estava feita, também o Juiz a quo logo ali consignou dar como desmentida, a convicção que antes tivera, assente num juízo de normalidade, de que os arguidos conheciam a anterior sentença e, nessa decorrência, passar a proceder à leitura integral dos factos dados por provados na sentença, o que fez, e logo após, concedeu de novo, a palavra para defesa.
Ora, é patente que no referido elenco total dos factos se contêm os factos novos em causa. Lidos todos os factos (que obviamente, nesta fase dos autos, não são lidos a título de factos provados, mas de factos alterados a comunicar) ficou claro que aos factos constantes da acusação nos autos se aditaram outros factos.
E são, afinal, factos já por demais conhecidos dos recorrentes, pois além de serem factos que já constaram da anterior sentença publicada desde 29/7/08, foram factos apontados pelos próprios recorrentes em sede do anterior recurso daquela sentença nesta Relação e tais factos foram mesmo nesta Relação especificados nos termos supra já referidos.
O escopo do legislador do art. 358 do CPP é salvaguardar que no decurso da audiência o arguido seja colocado perante a possibilidade do Tribunal levar avante uma alteração dos factos descritos na acusação, com o evidente objetivo de lhes assegurar todos os direitos de defesa também quanto à alteração comunicada em plenitude.
O Tribunal a quo foi, inclusive, logo sensível à referida alegação da defesa, fazendo a leitura integral dos factos na anterior sentença e afinal, já desde há muito, se mostravam criadas e garantidas as devidas e legais condições para a defesa contraditar os factos, não tendo os factos novos constituído qualquer surpresa que exigisse reconhecimento de uma ainda maior latitude de defesa, sendo aqui de realçar que no caso se está perante uma alteração não-substancial, que não traz qualquer novidade quanto aos elementos materialmente relevantes de construção e identificação da factualidade, da sua dimensão normativa, tendo mera virtualidade para relevar na decisão da causa na fase da medida das penas aplicadas.
O importante é que estando já feita a produção da prova nos autos, foi desencadeado o mecanismo do art. 358º nº 1 do CPP, dando-se nova oportunidade aos arguidos para organizarem a sua defesa em plenitude.
Este é que, feita a comunicação dos factos e questionados sobre se pretendiam requerer prazo para defesa e/ou apresentar defesa, optaram e declararam nada requerer (cf. ata em causa).
Acresce que ainda que se configurasse uma irregularidade por não ser expressamente dada a palavra à Defensora Oficiosa (C.) do coarguido D.. após a comunicação dos factos, sempre a mesma se mostraria já ultrapassada, pois nunca foi arguida pelo referido interessado (que também nem recorreu do acórdão final), sendo certo que aos ora arguidos-recorrentes não se reconhece «interesse em agir» para tanto.
Atento o exposto, configura-se que nos autos, desta vez, foi cumprido o dispositivo no art. 358 nº 1 do CPP, sem violação de qualquer princípio de garantia de defesa dos arguidos…”
Da leitura deste excerto resulta, com evidência, que a decisão recorrida recusou que os novos factos tivessem, após a sua mera leitura, sido considerados logo provados, sem que tivesse sido dada oportunidade aos arguidos de apresentarem a sua defesa, antes tendo-se considerado que foi dada essa oportunidade, a qual não foi aproveitada, não sendo possível, pois, encontrar a norma impugnada na fundamentação da decisão recorrida.
Os Recorrentes também pediram a fiscalização de constitucionalidade do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, no sentido de ser possível a correção de erro sobre a valoração da prova que importe a modificação essencial da decisão, como se de mero lapso de escrita se tratasse.
Sobre esse aspeto o acórdão recorrido limitou-se a dizer:
“Importa a este propósito, ao abrigo do art. 380 b) do CPP, aqui corrigir um lapso constante da sentença, pois configura-se manifesto que quando nela o Tribunal a quo escreveu (a fls. 1509 § último): o «arguido A. pretendeu inculcar que estava a dormir e foram os agentes que o acordaram de madrugada», queria ter escrito que se tratava do arguido B., sendo certo que na ata de audiência e julgamento o mesmo Tribunal fez consignar que aquele outro arguido (A.) não quis nem prestou declarações.”
Em parte alguma o acórdão recorrido assumiu que estava a corrigir um erro sobre a valoração da prova efetuada pela 1.ª instância, com modificação essencial da decisão, pelo que também aqui a norma impugnada não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Perante a falta de coincidência entre o objeto do recurso e a fundamentação da decisão recorrida, revela-se correta a decisão de não conhecer do mérito do recurso, devendo ser indeferida a reclamação.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A. e B..
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Lisboa, 17 de junho de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.