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Proc. n.º 528/01 Acórdão nº 525/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 229 e seguintes, foi negado provimento ao recurso interposto para este Tribunal por A a fls. 215-216, por manifesta falta de fundamento, confirmando-se a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade. É a seguinte a fundamentação da decisão sumária:
'Permite o n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional que o relator profira decisão sumária, quando se lhe afigure que a questão a decidir é manifestamente infundada.
É o que sucede no presente recurso. Alega o recorrente que, na decisão recorrida, se perfilhou uma interpretação das normas dos artigos 180º, n.º 1 (em conjugação com o artigo 183º), da Organização Tutelar de Menores e 2004º, n.º 1, do Código Civil, que ofende o princípio da dignidade humana e as normas dos artigos 1º e 63º, n.º 3, da Constituição. Tal interpretação ofensiva da Constituição seria, em síntese, a de que o interesse do menor permitiria condenar o respectivo progenitor no pagamento a esse menor de uma pensão alimentar, apesar de tal progenitor não ter rendimentos, mediante o argumento de que o progenitor tem o dever de trabalhar, ainda que como trabalhador-estudante, para auferir quantia suficiente para cumprir minimamente os seus deveres. Ao questionar tal interpretação, o recorrente está, bem vistas as coisas, a sustentar que a Constituição veda a atribuição de uma prestação alimentar a um filho menor, nos casos em que o progenitor, não tendo embora rendimentos, os pode obter através do seu trabalho. Está, em suma, a sustentar que os deveres de educação e manutenção dos filhos que impendem sobre os pais (cfr. artigo 36º, n.º 5, da Constituição) só subsistem na estrita medida em que não afectem o direito dos pais de não trabalhar ou o direito dos pais ao repouso. Ora, nem a Constituição estabelece a prevalência desses direitos em relação a esses deveres (nem poderia, sob pena de a própria consagração destes carecer de sentido), nem a dignidade dos pais resulta afectada quando cumprem, trabalhando, os seus deveres em relação aos filhos (o trabalho é, pelo contrário, um meio para a realização da pessoa, como resulta do artigo 59º da Constituição), nem o estatuto de trabalhador-estudante é discriminatório (a própria Constituição, no artigo 59º, n.º 2, alínea f), prevê a figura). Logo, a dignidade do recorrente em nada sairia afectada se ele aderisse ao estatuto de trabalhador-estudante. Por outro lado, o direito à segurança social que o recorrente invoca (artigo 63º, n.º 3, da Constituição) não pode significar a assunção, pelo Estado, dos deveres que incumbem aos pais de educarem e manterem os filhos, nem a correlativa desoneração dos pais de tais deveres. Concluindo, o presente recurso é manifestamente infundado, pelo que não pode merecer provimento.'
2. Inconformado com a mencionada decisão sumária, A dela veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo que este Tribunal se pronunciasse sobre o objecto do recurso apresentado (fls. 240 e seguintes). Alega, em síntese, o seguinte: a. A questão que o ora reclamante colocou ao Tribunal Constitucional foi a de saber se era inconstitucional, por ofensa do princípio da dignidade humana e do disposto nos artigos 1º e 63º da Constituição, a interpretação das normas dos artigos 180º, n.º 1 (em conjugação com o artigo 183º) da Organização Tutelar de Menores e 2004º, n.º 1, do Código Civil, de acordo com a qual seria possível a condenação em alimentos para além e independentemente das possibilidades do obrigado a alimentos, e mesmo 'apesar de não ter rendimentos'; b. Na decisão sumária reclamada respondeu-se a uma questão diversa, não colocada pelo recorrente, e que foi a de saber se era inconstitucional a atribuição de uma prestação alimentar a um filho menor, nos casos em que o progenitor, não tendo embora rendimentos, os pode obter através do trabalho; c. Aquilo que cumpria analisar na decisão sumária reclamada, e não foi analisado, era se o artigo 1º da Constituição impõe um mínimo – a dignidade da pessoa humana do obrigado aos alimentos –, na fixação da medida dos alimentos a prestar ao necessitado dos alimentos, ainda que menor; d. Em abono da opinião do reclamante, pode consultar-se a doutrina dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, que se expõe; e. O ora reclamante não questionou, no presente recurso, a violação da dignidade dos pais que trabalham ou a dos trabalhadores-estudantes, mas a violação da dignidade daquele que é condenado a pagar o que não tem ou a pagar mais do que tem; f. No presente caso existem, ainda antes da Segurança Social, outros obrigados a alimentos com possibilidades que o ora reclamante não tem; g. O recurso interposto pelo ora reclamante para o Tribunal Constitucional não pode ser considerado manifestamente infundado, já que nele se coloca uma questão que se prende com o alcance do conceito de dignidade da pessoa humana no nosso ordenamento jurídico e com a sua aplicação pelos tribunais.
3. Na resposta de fls. 246-247, disse o representante do Ministério Público junto deste Tribunal o seguinte:
'1º A presente reclamação é manifestamente improcedente, não se revelando a argumentação sustentada pelo reclamante minimamente idónea para pôr em causa a douta decisão sumária proferida.
2º Cumprindo, naturalmente, ao relator, nos recursos de constitucionalidade, pôr termo, de forma liminar, a recursos sem qualquer fundamento sério ou razoável.
3º No caso dos autos, a questão de constitucionalidade normativa suscitada carece manifestamente de qualquer suporte razoável ou adequado – não cumprindo obviamente ao Tribunal Constitucional dirimir questões estranhas a tal tema, por situados no domínio da apreciação de matéria de facto ou da aplicação do direito infraconstitucional, «maxime» no que respeita à existência ou inexistência de outros possíveis obrigados a prestar alimentos.'
Cumpre apreciar.
II
4. O ora reclamante insurge-se contra a decisão sumária reclamada basicamente por considerar que nela se apreciou uma questão diversa daquela que fora por si submetida à apreciação do Tribunal Constitucional. Ao afirmar que, na decisão sumária reclamada, se apreciou questão diversa da por si colocada, está o reclamante a sustentar, por outras palavras, que nessa decisão sumária se apreciou a conformidade constitucional de uma interpretação normativa diversa daquela que fora por si indicada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
Na decisão sumária reclamada ter-se-ia analisado a conformidade constitucional da interpretação normativa segundo a qual seria possível a atribuição de uma prestação alimentar a um filho menor, nos casos em que o progenitor, não tendo embora rendimentos, os pode obter através do trabalho; o ora reclamante teria pedido que o Tribunal Constitucional apreciasse a interpretação normativa segundo a qual seria possível a condenação em alimentos para além e independentemente das possibilidades do obrigado a alimentos, e mesmo 'apesar de não ter rendimentos'.
5. Simplesmente, se é esta a interpretação normativa cuja conformidade constitucional o ora reclamante questiona e pretendeu questionar junto do Tribunal Constitucional, não se compreende o motivo da referência, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, à afirmação do tribunal recorrido segundo a qual se impunha que o ora reclamante 'trabalhasse, ainda que como trabalhador estudante, para auferir quantia suficiente para satisfazer minimamente os seus deveres de pai' (fls. 216). Na verdade, se o ora reclamante apenas pretendeu e pretende questionar a possibilidade de condenação em alimentos para além e independentemente das possibilidades do obrigado a alimentos, abstraindo da circunstância de esse obrigado a alimentos poder trabalhar, revela-se absolutamente supérflua a referência, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, a tal trecho do acórdão recorrido.
Por outro lado, se a interpretação normativa cuja conformidade constitucional o ora reclamante pretendeu e pretende questionar é a de que seria possível a condenação em alimentos para além e independentemente das possibilidades do obrigado a alimentos, e mesmo 'apesar de não ter rendimentos'
– abstraindo, portanto, da circunstância de o obrigado a alimentos poder trabalhar –, sempre se dirá que tal interpretação normativa não foi perfilhada na decisão recorrida e, como tal, em relação a ela não seria possível conhecer-se do objecto do presente recurso, por falta de um dos seus pressupostos processuais: justamente, o pressuposto da aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se questiona (cfr. artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional).
Com efeito, a circunstância de o ora reclamante poder trabalhar constituiu um pressuposto essencial da sua condenação no pagamento de 10.000$00 mensais à sua filha menor, a título de alimentos. Diz-se na decisão recorrida:
'[...] O facto de o requerido andar a estudar, e saliente-se que anda em Veterinária pelo menos desde 1991 sem ter acabado o curso à data da decisão recorrida, não o impede de trabalhar umas horas de modo a poder satisfazer aquele montante insignificante de alimentos. Pelo contrário pensamos, tal como o Mº Juiz, que ele tem a obrigação de contribuir para a alimentação da sua filha e que para tal bem pode e deve trabalhar se não tiver outros meios de obter a referida quantia mensal.'
Constituindo a circunstância de o ora reclamante poder trabalhar um pressuposto essencial da sua condenação pelo tribunal recorrido, é óbvio que a interpretação normativa cuja conformidade constitucional este Tribunal poderia apreciar sempre teria de integrar tal elemento, sob pena de, no recurso, se estar a apreciar uma questão de constitucionalidade diversa da apreciada pelo tribunal recorrido.
6. Conclui-se, assim, que o ora reclamante, ao impugnar a decisão sumária reclamada, se limita a aduzir argumentos cuja procedência apenas poderia levar ao não conhecimento do objecto do recurso, por falta de um dos seus pressupostos processuais.
Não existem, como tal, motivos para se proceder à revogação da decisão sumária reclamada.
7. Finalmente, e no que respeita ao alegado acerca da existência, no caso dos autos, de outros obrigados a prestar alimentos à filha menor do reclamante, sempre se dirá que tal circunstância é totalmente irrelevante para a apreciação da presente reclamação, além de que diz respeito a matéria de que ao Tribunal Constitucional não compete conhecer (cfr. também a resposta do Ministério Público de fls. 246-247).
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2001 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida