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Processo n.º 478/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. instaurou acção declarativa contra B., S.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 9.645,99, acrescida de juros de mora vencidos, respeitante a diferenças salariais por trabalho prestado nas funções de motorista de serviço público em regime de agente único, a quantias correspondentes a descansos compensatórios devidos por trabalho suplementar prestado em dias úteis, a retribuições por dias feriados em que o autor não foi requisitado para o exercício de funções de dirigente sindical, e ao valor correspondente ao desconto que o seu cônjuge tinha direito ao viajar nos veículos da ré em serviços regulares.
A acção foi julgada parcialmente procedente por sentença do 3º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, de fls. 731 a 757 (rectificada por despacho de fls. 784 a 786).
Discordando da sentença na parte em que resulta a absolvição da ré do pagamento das diferenças de subsídio de agente único (considerando que devia ser paga uma importância correspondente a 25% da retribuição normal) e do pagamento das importâncias correspondentes aos descansos compensatórios não gozados e devidos por trabalho suplementar prestado em dias úteis, interpôs o autor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
2. Por acórdão de fls. 804 a 827, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar procedente o recurso interposto pelo autor e revogou a sentença recorrida, condenando a ré a pagar ao autor, além do mais, a quantia de € 2.155,72, a título de retribuição por descanso compensatório não gozado.
No que respeita à questão do direito ao pagamento dos descansos compensatórios não gozados referentes a trabalho suplementar prestado em dias úteis o acórdão recorrido adoptou a seguinte fundamentação:
«(…)
a) Sobre a aplicação do DL n.º 421/83 de 2 de Dezembro de 1983.
Como se referiu, na sentença recorrida foi decidido que o regime legal sobre o trabalho suplementar previsto no DL n.º 421/83, não tem aplicação às empresas públicas, isto porque, de acordo com o seu art.º 12, o legislador quis “que a sua aplicação ficasse dependente de publicação de portaria que estabelecesse as necessárias adaptações, face às características das empresas em causa”, com este entendimento vide o acórdão do STJ de 31.3.2004 (Internet. www.dgsi.pt).
Defende este acórdão que o DL n.º 421/83, não é aplicável às empresas concessionárias de serviços públicos, em virtude de nos termos do art.º 12 do mesmo diploma, a sua extensão a tais entidades ter ficado dependente da publicação de Portaria que estabeleceria as necessárias adaptações; mas como aquela não foi publicada, verifica-se uma ilegalidade da norma por omissão.
No entanto, como já temos vindo a defender, designadamente no acórdão de 15.12.05, n.º 2287/05, (Internet. www.dgsi.pt), não pode uma Portaria vir definir o regime jurídico laboral no que diz respeito à remuneração do trabalho suplementar, sob pena de violação o princípio constitucional do primado da lei e o princípio constitucional da primariedade ou precedência da lei sobre a actividade regulamentar, ou seja, a lei considerada imperativa ou com força constitucional prevalece sempre sobre qualquer regulamento que a minimize, derrogue, interprete deficientemente, etc.
Todas as normas respeitantes ao salário “gozam de garantias especiais”, nos termos do art. 59, n.º 3 da CRP, e a garantia dos salários decorre da lei geral, pelo que as leis sobre salários têm sempre aplicação, salvo se for estabelecido regime mais favorável para o trabalhador, pelos meios constitucionalmente admitidos.
Em consequência, não se pode defender que o DL n.º 421/83, não tem aplicação e que existe um vazio legal, porque tal seria uma violação da garantia constitucional das normas relativas ao salário.
Todavia, é, de facto, estranho que o legislador nunca tenha publicado tal Portaria, passados que foram 20 anos sobre a publicação da lei, provavelmente houve razões para nunca tenha sido publicada, designadamente a de se ter admitido que tal norma era inconstitucional.
Vejamos então:
A Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, aditou o n.°5 do 115° da Constituição, que proibiu “a criação de actos legislativos através da Lei”, a corresponde actualmente ao n.º 6 do art. 112, da Constituição.
O DL n.º 421/83 foi publicado em 2 de Dezembro, ou seja pouco mais de 1 ano após a revisão constitucional de 1982. O seu art. 12, n.º l, concede autorização para se criar por Portaria um regime jurídico para as empresas públicas. Afigura-se assim que esta “deslegalização” de matérias jurídicas, com a criação de regimes especiais ou regulamentos através de actos que não assumem a forma de lei é inconstitucional, porque violadora do citado n.º 6 art.°112, da CRP.
Com decidiu o Tribunal Constitucional, no Acórdão de 29/10/1985, publicado no Diário da República em 31/12/1985 (em www. dgsi.pt), “Até à revisão constitucional de 1982 poderia entender-se que o Parlamento ou o Executivo legislador, pudessem deslegalizar certas matérias que não devessem assumir, necessariamente, a forma de lei, por meio de regulamentos ‘praeter” ou até “contra legem”. O art. 115º, n.5 da Constituição, aditado pela Lei Constitucional n.º 1/82 de 30 de Setembro, eliminou, porém, a legitimidade de tais Regulamentos.”
Neste acórdão foi declarada a inconstitucionalidade de um artigo, vertido num Decreto-lei, que permitia a vários ministérios, por Portaria, suspenderem por três meses a execução da própria lei.
Nos presentes autos está em causa a suspensão da lei até à publicação de uma portaria, que por sua vez criará um regime jurídico diferente do previsto na própria lei, o que configura uma situação idêntica à tratada no citado acórdão do Tribunal Constitucional.
Assim sendo, torna-se compreensível que regime jurídico em causa “dependente de portaria” nunca tenha sido publicado já que a norma que o previa, art.º 12 do DL n.º 421/83, é inconstitucional.
Mas, acresce que, a norma do n.º 2 do art.º 1 do DL n.º 409/71, para a qual remete o art.º 12 do DL n.º 421/83, já foi considerada como revogada. Na verdade, com a entrada em vigor do DL n.º 260/76, de 8/4, que define ou consagra o Estatuto das Empresas Públicas (actualmente revogado pelo DL 558/99, de 17/12), tem de se considerar que foi revogado o n.º 2 do art.º 1, da LDT. Este é o entendimento de Liberal Fernandes que refere: “Assim, dado o princípio da lex posteriori derogat legís priori e o facto de o regime do contrato individual de trabalho não poder ser modelado por via unilateral ou administrativa, mas apenas através de um acto legislativo, deve o disposto no n.° 2 do art. 2, da LDT considerar-se revogado na parte em que permite que o decreto regulamentar fixe a disciplina do trabalho”. In Comentário às leis de Duração do Trabalho e do Trabalho suplementar, Coimbra editora, 1995, pág. 28. Afigura-se-nos, assim, concluir que o art.º 12, do DL n.º 421/83, é inconstitucional, por violação do n.º 6 do art. 112, e dos artigos 59º n.º 3 e 1.º n°1 da Constituição.
Assim, tendo resultado provado que o recorrente prestou trabalho suplementar em dias úteis, no período de 1 de Janeiro de 1996, a 31 de Maio de 2002, cf. pontos 21 a 33 da matéria de facto, tendo direito a descanso compensatório que nunca gozou ou lhe foi pago.
Deverá, assim, a recorrida ser condenada a pagar ao recorrente a importância de 432.182$41 (€ 2.155,72) a título de descanso compensatório não gozado, nos termos do disposto no n.° 6 do art. 9º do Dec. Lei no 421/83, de 2 de Dezembro.
(…)»
3. Deste aresto interpôs a B., S.A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, considerando ter sido desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro.
Prosseguindo o recurso, apenas alegou a recorrente, tendo concluído a sua argumentação nos seguintes termos [segue transcrição das conclusões]:
A) O artigo 112°/5 da Constituição é uma norma relativa ao conteúdo dos actos legislativos, proibindo que um diploma legislativo autorize a interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação de qualquer dos seus preceitos, por acto não legislativo com eficácia externa, ou seja, por acto diverso dos que vêm enumerados no n. ° 1 do mesmo artigo (lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional);
B) O teor verbal deste artigo 12°/1 permite uma interpretação segundo a qual a portaria a editar poderia introduzir adaptações que acabassem por consubstanciar um regime especial, ou mesmo, um regime excepcional, modificativo ou até derrogatório do regime geral instituído pelo decreto-lei;
C) Mas, o elemento literal do preceito consente, igualmente, uma interpretação segundo a qual o regulamento (a portaria) só poderia ser «secundum legem», ou seja meramente executivo do regime geral do decreto-lei quando aplicado aos trabalhadores das empresas concessionárias de serviços públicos;
D) Quando o sentido da lei não seja unívoco e consinta, portanto, uma interpretação mais extensiva ou uma interpretação mais restritiva, deve ela ser interpretada com aquele sentido que a torne compatível com a Constituição – é a chamada interpretação conforme à Constituição;
E) Atenta a proibição do artigo 112°/5 da Constituição, a conformidade constitucional da norma do artigo 12°/1 do Dec. Lei n.° 421/83, de 02 de Dezembro (norma habilitante), só é salvaguardada se interpretada como não autorizando a emissão de uma portaria (regulamento) interpretativa, modificativa ou derrogatória do regime geral;
F) O reenvio normativo não terá por efeito permitir que certos critérios legais constantes do regime geral, em princípio aplicáveis a todas as situações, sejam substituídos por outros, inovadores, constantes da portaria, mas apenas o de permitir a execução e a concretização desse regime quando se trate de aplicá-lo ao trabalho prestado a empresas concessionárias de serviços públicos
G) O artigo 112°/5° da Constituição não proíbe os regulamentos meramente executivos, isto é, os regulamentos que se limitam a dispor sobre as providências necessárias para assegurar a conformidade à vontade do legislador e que apenas repetem os preceitos ou regras de fundo que o legislador editou, não se substituindo à lei, nem criando preceitos novos ou originários;
H) Para o caso é absolutamente irrelevante que a norma do n.° 2 do art° 1° do DL 409/71, de 27 de Setembro, para a qual remete o artº 12 do DL n.º 421 /83, tenha sido revogada no que respeita às empresas públicas pela entrada em vigor do DL n.° 260/76, de 8/4, pois a recorrente é uma empresa concessionária de serviços públicos, mas não é uma empresa pública;
l) A norma do artigo 12°/1 do Dec. Lei n.° 421/83, de 02 de Dezembro, não é inconstitucional;
Termos em que, julgando-se o recurso procedente, deverá ordenar-se a reformulação do Acórdão recorrido em conformidade com o juízo de constitucionalidade.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
4. O presente recurso tem, pois, por objecto a norma do n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro, que a decisão recorrida recusou aplicar com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 112.º, n.º 5, [refere-se ali o n.º 6], e dos artigos 59.º, n.º 3, e 1.º, da Constituição.
Não obsta ao conhecimento do objecto do recurso o facto de no acórdão recorrido se ter referido que a norma do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 409/71, para a qual remete o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83, “já foi considerada revogada”, devido à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, pois, deste entendimento, que ao nível da aplicação do direito ordinário não importa aqui questionar, não extraiu o acórdão um fundamento decisório alternativo à decisão de inconstitucionalidade, entendendo-se a convocação de tal argumento como uma justificação adicional para o facto de nunca terem sido publicadas as portarias previstas na norma impugnada.
5. A norma impugnada está inserida no Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro que estabeleceu o novo regime jurídico da prestação do trabalho suplementar, no âmbito das relações de trabalho subordinado, revogando o que constava do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro [capítulo IV e artigos 41º e 42º, deste diploma, referentes ao trabalho extraordinário e ao trabalho prestado em dias de descanso semanal e de feriados obrigatórios], e que vigorou até à entrada em vigor do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
O Decreto-Lei n.º 421/83 foi editado ao abrigo da Lei n.º 13/83, de 25 de Agosto que, em matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República, nos termos dos artigos 164.º, alínea e), 168.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, e 169.º, n.º 2, da Constituição [a que actualmente correspondem os artigos 161.º, alínea d), 165.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, e 166.º, n.º3], concedeu ao Governo “autorização para rever o regime jurídico da duração do trabalho, no sentido de limitar o recurso ao trabalho extraordinário à realização de tarefas de carácter excepcional” (cf. artigo 1.º).
Em prossecução destes objectivos, invocando o intuito de proceder a uma melhor distribuição do trabalho existente pelo maior número possível de trabalhadores e de disciplinar o recurso ao trabalho suplementar, pondo cobro a situações de recurso indevido e excessivo a este tipo de trabalho, o Decreto-Lei n.º 421/83, entre outras medidas, restringiu a prestação de trabalho fora do horário normal aos casos em que o mesmo se mostrasse necessário para fazer face a acréscimos de trabalho, que, pela sua natureza, não justificassem a admissão de novos trabalhadores, ou, além disso, quando fosse indispensável para prevenir ou reparar prejuízos graves para a empresa ou para assegurar a sua viabilidade.
Porém, disse-se no preâmbulo:
«Presentemente, não vigoram em diversos sectores de actividade, por força do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, as limitações estabelecidas neste diploma para a prestação de trabalho extraordinário, em dia de descanso e em dia de feriado, facto que, como a experiência tem demonstrado, conduziu ao recurso indevido e excessivo a este tipo de trabalho. É, pois, necessário que sejam dados passos urgentes no sentido da normalização da situação existente, embora se compreenda que a plena prossecução deste objectivo passa pela revisão do regime jurídico da organização temporal do trabalho em vigor naqueles sectores de actividade.
Por tal facto, e com a preocupação de não se criarem dificuldades insuperáveis em áreas relevantes da nossa economia, optou-se pela adaptação da nova disciplina às características de tais sectores, o que será feito por portarias, que, no entanto, vigorarão apenas pelo tempo indispensável para que se criem as condições que permitam a plena aplicação do regime agora instituído».
Este objectivo do legislador foi materializado no artigo 12.º do diploma, do seguinte teor [a itálico a norma impugnada]:
Artigo 12º
(Regimes especiais)
1- A aplicação do disposto no presente diploma aos sectores de actividade em que vigoram os regimes especiais de prestação de trabalho previstos nos n.º 2 e 3 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, bem como ao trabalho prestado para assegurar o funcionamento dos turnos de serviço das farmácias de venda ao público, fica dependente de portaria que estabelecerá as necessárias adaptações e cuja publicação deve ter lugar até 31 de Março de 1984.
2- O prazo de vigência da portaria a que se refere o número anterior não pode ser superior a 1 ano.
Por sua vez, os n.ºs 2 e 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro (diploma que regulamentava a duração do trabalho), para os quais remetia a norma impugnada tinha o seguinte teor [a itálico e com destaque a norma do n.º 2, por se a relevante para a presente decisão]:
Artigo 1º
(Duração do trabalho para efeito do contrato de trabalho)
1- (…)
2- O regime definido no presente diploma é aplicável ao trabalho prestado às empresas concessionárias de serviço público e às empresas públicas, com as adaptações que nele vierem a ser introduzidas por decretos regulamentares, referendados pelo Ministro das Corporações e Previdência Social e pelos Ministros competentes, mas não abrange as empresas públicas cujo pessoal, nos termos do respectivo estatuto legal, estiver sujeito a regime jurídico próprio.
3- A aplicação aos contratos de trabalho portuário do regime jurídico contido no presente diploma deverá sofrer a adaptação exigida pelas características desses contratos que estiver em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
6. A questão da aplicação às empresas concessionárias do serviço público do regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 421/83, quanto ao direito dos trabalhadores a receber as quantias correspondentes aos descansos compensatórios não gozados, por trabalho suplementar prestado em dias úteis, foi decidida de modo divergente pelas instâncias. Enquanto a 1ª instância entendeu que aquele regime não era aplicável – por não ter sido publicada a portaria prevista no n.º 1 do artigo 12.º do referido diploma, que fazia depender a aplicação do regime instituído pelo diploma legal aos sectores de actividade em que vigoravam os regimes especiais de prestação de trabalho previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, onde a ré, como concessionária de serviço público, se incluía –, a Relação, concluiu pela aplicação do referido regime de regulamentação do trabalho suplementar. Não por entender que a falta de publicação da portaria no prazo previsto naqueles preceitos tinha como consequência a imediata aplicação do regime do Decreto-Lei n.º 421/83 aos sectores de actividade referidos no artigo 12.º deste diploma, como defendia alguma jurisprudência, mas por considerar que a norma do n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83, era inconstitucional, recusando a sua aplicação.
A decisão da 1ª instância adoptou a jurisprudência, reiteradamente assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual o regime regulado no Decreto-Lei n.º 421/83, por força do artigo 12.º do mesmo diploma, não era aplicável aos sectores de actividade em que vigoravam os regimes especiais de prestação de trabalho previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, bem como ao trabalho prestado para assegurar o funcionamento dos turnos de serviço das farmácias de venda ao público, porque a sua aplicação ficou dependente de portaria que iria estabelecer as necessárias adaptações, a publicar até 31 de Março de 1984, mas que nunca foi publicada [cf., entre outros, acórdãos de 17 de Outubro de 2000 (proc. n.º 1816/00), de 4 de Junho de 2003 (proc. n.º 4545/02), de 31 de Março de 2004 (proc. nº 4062/03), de 7 de Abril de 2005 (proc. n.º 4333/04) e de 26 de Março de 2008 (proc. n.º 9/08), o segundo dos quais tirado em revista alargada].
Esta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de que nos dá conta o acórdão de 26 de Março de 2008 [disponível em http://www.dgsi.pt], que cita o acórdão de 31 de Março de 2004 [disponível no mesmo local], assenta nos seguintes argumentos:
«O Decreto-Lei nº 421/83 estabelece o regime jurídico do trabalho suplementar, regulando, em especial, os acréscimos mínimos remuneratórios que são devidos pela prestação de trabalho para além do horário normal.
O seu artigo 1º define como âmbito de aplicação desse regime jurídico as relações de trabalho prestado por efeito de contrato de trabalho, das quais excepciona apenas o trabalho rural, a bordo e de serviço doméstico. No entanto, o diploma estabelece igualmente um regime específico para certos sectores de actividade, conforme decorre do seu artigo 12º […]
E entre as situações que ficam abrangidas por esse regime especial contam-se, por força da remissão para o n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 409/71, as empresas concessionárias de serviço público.
Resulta com evidência desse artigo 12º que a extensão do regime definido no diploma às empresas concessionárias de serviço público deveria ser efectuado com adaptações nos termos a estabelecer por portaria, a qual vigoraria apenas pelo período de um ano, que era considerado “o tempo indispensável para que se criassem condições que permitam a plena aplicação do regime instituído” pelo Decreto-Lei nº 421/83 a todos sectores de actividade (do respectivo preâmbulo).
O legislador assume, portanto, que as empresas concessionárias ficariam sujeitas, pelo menos num período transitório, a um regime especial.
Ora, a verdade é que a portaria que deveria estabelecer esse regime de transição não chegou a ser publicada, embora tenha já decorrido uma década sobre o prazo limite para a sua emissão, que foi fixado em 31 de Março de 1984.
Daqui não decorre, porém, que deva ser o intérprete ou o juiz a fixar o regime especial que deve ser aplicado às empresas concessionárias. Esse regime é, por expressa determinação legal, o que vier a ser definido regulamentarmente, constituindo a emissão do respectivo regulamento uma competência administrativa do Governo (artigo 199º, alínea c), da Constituição da República). O juiz não pode, sob pena de flagrante violação do princípio de separação de poderes, suprir a inércia regulamentar indicando quais as adaptações que deverão ser observadas na aplicação do regime do Decreto-Lei n.º 421/83 às empresas concessionárias ou tornando esse regime extensivo, sem mais, a tais entidades.
Além do mais, a aplicação directa do regime do Decreto-Lei nº 421/83 implicava que o diploma, no seu todo ou em alguns dos seus preceitos, fosse imediatamente exequível no tocante às ditas empresas concessionárias. Isto é, era necessário que constituísse um complexo de normas imediatamente aplicável e vinculante independentemente de regulamentação (cfr. parecer da PGR n.º 35/2001, de 22 de Maio de 2002 e a doutrina aí citada).
Ora, é o próprio legislador que reconhece, no falado artigo 12º, a necessidade de posterior concretização da lei no que respeita à regulamentação complementar do regime de prestação de trabalho suplementar às empresas concessionárias. A extensão da disciplina do artigo 7.º do Decreto-Lei nº 421/83, nos termos considerados pelo acórdão recorrido, representa, portanto, a aplicação de norma que, em si, é inexequível, no tocante às empresas concessionárias, e, em especial à empresa que figura na acção como ré.
O que sucede, no caso vertente, é que existe uma situação de ilegalidade por omissão de regulamentação que é imputável ao Governo. Essa situação de inércia ou demora na emissão do regulamento, na medida em que é susceptível de afectar os trabalhadores das empresas concessionárias, que se encontram numa situação de discriminação relativamente aos trabalhadores em geral, no que respeita à remuneração do trabalho suplementar, legitima esses trabalhadores ou as suas associações representativas a interpor perante o tribunal administrativo um pedido de declaração de ilegalidade de norma por omissão, que em caso de procedência, acarreta que o tribunal fixe um prazo à entidade competente para suprir a omissão (artigo 77º, nº 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos). Noutra perspectiva, a inércia regulamentar poderá desencadear uma responsabilidade civil do Estado, por forma a que os cidadãos lesados possam obter uma indemnização, com base num sacrifício especial e grave resultante do acto omissivo da Administração (GOMES CANOTILHO, O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, 1974, Coimbra, págs. 198-201).»
Não foi este, porém, o entendimento adoptado pelo acórdão recorrido, que, como se disse, decidiu a questão do pagamento dos descansos compensatórios não gozados por aplicação do regime regulado no Decreto-Lei n.º 421/83, concretamente o resultante do n.º 6 do artigo 9.º, afastando, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, a aplicação da norma do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83.
8. O n.º 5 do artigo 112.º da Constituição [na red. da LC n.º 1/2004; na numeração anterior correspondia-lhe o n.º 6 do mesmo artigo) dispõe que “[n]enhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
O preceito afirma o princípio da tipicidade dos actos legislativos, com a consequente “proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor da lei” e consagra a ideia de que as leis não podem autorizar que as suas próprias interpretações, integração, modificação, suspensão ou revogação sejam levadas a efeito por outro acto que não seja uma outra lei (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., pág. 70).
Trata-se, antes de mais, de um limite material do próprio poder legislativo. Uma lei não pode autorizar, relativamente ao seu próprio conteúdo, regulamentos revogatórios, derrogatórios, modificativos ou suspensivos (os chamados “regulamentos delegados”).
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado sobre a norma constitucional em causa, como nos dá conta o acórdão n.º 586/2001 (disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/). Assim, os acórdãos nºs. 203/86, 354/86, 19/87, 1/92 e 262/97, respeitantes a regulamentos interpretativos (publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Agosto de 1986, 11 de Abril de 1987, 31 de Março de 1987, I Série-A, de 20 de Fevereiro de 1992 e 1 de Julho de 1997, respectivamente); os acórdãos nºs. 303/85, 34/86, 389/89 e 869/96, sobre regulamentos modificativos, publicados no Diário citado, II Série, de 10 de Abril de 1986, 13 de Maio de 1986, 13 de Setembro de 1989, e I Série-A, de 3 de Setembro de 1996, respectivamente; o acórdão nº 189/85, sobre regulamentos suspensivos, no mesmo Diário, I Série, de 31 de Dezembro de 1985; os acórdãos nºs. 458/93 e 743/96 (Diário da República, I Série-A, de 17 de Setembro de 1993 e de 18 de Julho de 1996, respectivamente), que se referem a actos de natureza não regulamentar, como sejam os actos regimentais e os actos jurisdicionais (“assentos”); os acórdãos nºs. 308/94, 224/95 e 194/99, incidentes sobre a não aplicação do nº 5 do artigo 115º e do novo nº 6 [actual n.º 5] do artigo 112º às relações entre actos regulamentares (publicados no mesmo jornal oficial, II Série, de 29 de Agosto de 1994, 28 de Junho de 1995 e 6 de Agosto de 1999, respectivamente).
Da leitura destes lugares jurisdicionais – que, de entre outros, se citam – retira-se uma constante doutrinária, a que interdita a uma lei que permita a sua própria alteração por acto sem natureza legislativa. Por conseguinte, a norma constitucional, dirige-se ao conteúdo do acto legislativo e não à competência e forma dos actos normativos, ou seja, proíbe os diplomas legislativos de autorizarem a sua revogação, modificação, interpretação, integração ou de suspenderem a sua eficácia através de acto sem força e valor de lei, designadamente por via de regulamento (como se frisou no acórdão n.º 389/89).
9. No caso dos autos, está em causa uma norma que, condicionava a aplicação do novo regime jurídico da prestação do trabalho suplementar, no âmbito das relações de trabalho subordinado nos sectores de actividade em que vigoravam os regimes especiais de prestação de trabalho previstos nos n.ºs 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 409/71 (que são os que agora nos interessam), à edição, no prazo de 3 meses, contado desde a entrada em vigor deste regime [o diploma entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1984 e as portarias deviam ter sido editadas até 31 de Março de 1984 – cf. artigos 15.º e 12.º, n.º 1] de portarias que viessem estabelecer as necessárias adaptações à aplicação do regime ora instituído e que vigorariam pelo prazo máximo de 1 ano. Resulta a clara intenção do legislador de não aplicar o novo regime aos sectores referidos na norma impugnada até à publicação das portarias que estabelecerão as necessárias adaptações e que durante a vigência das mesmas vigorará o regime nelas previsto, estipulando-se prazos para sua edição e vigência.
Face a isso, entendeu-se no acórdão recorrido que o legislador quis, não só a suspensão da lei até à publicação da portaria, como permitir que essa portaria criasse um regime jurídico diferente do previsto na própria lei e, por isso, se considerou violada a proibição inscrita no n.º 5 do art.º 112.º da Constituição.
Porém, esta conclusão não é exacta.
Não estamos perante a permissão de que um acto de natureza regulamentar suspenda o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 421/83. A norma não confere à portaria o poder de suspender o regime legal no âmbito dos sectores de actividade previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 409/71. O que faz é excluir esses sectores ou empresas do âmbito de aplicação do regime até à publicação da portaria de adequação. Com isso a lei não delega no regulamento o poder de suspender a sua eficácia. É a própria lei que não chega a disciplinar as relações de trabalho nesse âmbito, condicionada que ficou à edição de um regulamento executivo que não chegou a ser publicado. Trata-se de um condicionamento legal do âmbito de aplicação e de uma norma de habilitação regulamentar, não da permissão de um regulamento delegado de efeito suspensivo ou modificativo.
Consequentemente, a norma do n.º 1 do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83, não viola o n.º 5 do art.º 112.º da Constituição. Saber se passado o prazo máximo previsto para a vigência da hipotética portaria de adaptação (n.º 2 do cit. art.º 12.º) se considera ou não aplicável o regime legal em causa à relação de trabalho subordinado considerada é matéria que não compete ao Tribunal apreciar.
10. É manifestamente destituída de fundamento a referência da norma em causa ao n.º 3 do art.º 59.º da Constituição, a que o acórdão procede. A imposição constitucional de garantias especiais dos salários implica a instituição de medidas de discriminação positiva dos créditos salariais face aos demais créditos sobre os empregadores. Nomeadamente, privilégios creditórios, Fundo de Garantia Salarial, limites à penhora, proibição de compensações e descontos e medidas semelhantes, matéria com que a norma que é objecto de apreciação não interfere.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 421/83, interpretada no sentido de que a extensão do regime definido no diploma às empresas concessionárias de serviço público ficou dependente de publicação de adaptações a estabelecer por portaria, que não chegou a ser publicada;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade;
c) Sem custas.
Lx. 12/6/2013. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.