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Processo n.º 648/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação deduzida tem o seguinte teor:
«(…)
O recurso de constituciona1idade de cuja decisão de não conhecimento do respetivo objeto ora se rec1ama, foi interposto, além do mais aí vertido, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constituciona1 (LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, razão pela qual o mesmo veio a ser admitido.
Não se encontrando o Venerando Tribuna1 Constitucional vinculado pe1a decisão que admitiu o recurso (atento o disposto no n.° 3, do artigo 76.°, da LTC), este entendeu ulteriormente — quanto a nós, e com o necessário respeito, incorretamente — na supra citada decisão sumária n.° 423/2013, não poder conhecer do objeto do mesmo, por, segundo aí plasmou o Insigne Juiz Conselheiro Relator, manifesta... “falta de caráter normativo de todas as questões enunciadas pelo Recorrente...'
Com a devida vénia e salvo melhor entendimento, o ora Rec1amante considera que, contrariamente ao aduzido pe1o Exmo. Senhor Dr. Juiz Conselheiro Relator, e conforme melhor resulta do vertido no seu requerimento de recurso, o Arguido/Reclamante aí suscitou, identificou e delimitou, de forma adequada e precisa, diversas questões de inconstitucionalidade normativa, sem deixar de indicar o seu correto enquadramento à luz das disposições constitucionais aplicáveis e até que as mesmas haviam já sido suscitadas nos prévios recurso e reclamação apresentados no Tribunal da Relação de Guimarães.
É certo que o aqui Reclamante, para sustentar o seu requerimento de recurso se refere à questão judicial que ao mesmo subjaz e ao correspetivo julgamento, mas sempre numa perspetiva de enquadramento da interpretação atribuída às normas cuja inconstitucionalidade se suscita e jamais ao ato de julgamento em si, pois não está, nem esteve, jamais, em causa, nem tal se pretendeu, um recurso de amparo.
Pretendeu então, e pretende ainda o Reclamante, que seja julgada inconstitucional a interpretação normativa das normas versadas no requerimento de recurso por si produzido sobre que ora se versa, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, com especial ênfase para a resultante da conjugação dos n.°s 1 e 4, do art. 411.°, do C.P.P. — expressa no âmbito da subsequente reclamação que deu causa à decisão de 17/06/2013 — no sentido de, até em face do recente devir legislativo, não se observar como, regra para interposição de recurso o prazo de 30 dias, mesmo quanto a despacho proferido concomitantemente com a leitura do acórdão, para mais quando a aplicação deste preceito resultar, em concreto, mais favorável para o Arguido, circunstância violadora dos comandos constitucionais ínsitos no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
Assim, sempre com o devido respeito por opinião divergente, o Reclamante sustenta que, contrariamente ao que foi entendido na decisão sumária ora em apreço, preencheu cabalmente todos os pressupostos processuais aplicáveis ao recurso requerido — entendimento que pretende ora ver sufragado — pelo que o sustentar da decisão de não conhecimento do mesmo configuraria uma restrição do direito de acesso à justiça, violadora dos preceitos constitucionais consagrados nos artigos 20º, nº 1, 202°, n° 2 e 268°, n° 4 da C.R.P.
(…)»
3. Notificado, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação apresentada (parecer de fls. 2558).
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«(…)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 22 de abril de 2013 e 17 de junho de 2013. Pretende ver apreciadas por este Tribunal as seguintes questões:
«(...)
1. No âmbito do recurso que deu causa ao acórdão de 22/04/2013:
O art. 358º do C.P.P, pelo exceder do seu âmbito de aplicação, quanto à aplicação, dita não substancial, dos factos constantes da acusação, e o art. 118º, também do C.P.P., pela falta de fundamentação do correspondente despacho de tal alteração, de 31 de julho de 2012, que ofende os princípios da legalidade, da acusação, do contraditório e do “in dubio pro reo”, decorrentes do disposto nos. artigos 29º, n.º 1, 20, n.º 4, e 32.º, n.º 1, 2, 5 e 10 da Constituição da República Portuguesa;
O disposto no art. 221º do C.P., face ao não preenchimento do tipo legal de crime em causa com violação do princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade, também decorrente do disposto no indicado artigo 29º, n.º 1 da CRP;
O preceituado nos arts. 327º, 335º e ss. e do art. 410, nºs 1 e 2, als. a) e c) do CPP., face à ausência de prova e da insuficiência da matéria de facto apurada para a integração do crime em causa nos autos, com prejuízo das garantias de defesa do arguido constitucionalmente tuteladas – art. 32.º, nºs 1, 2, 5 e 10 da CRP;
Os artigos 122.º, n.º 1, 126.º e 129.º do CPP e os artigos 18º, 26.º, nºs 1 e 2, e 32.º, n.º 8 da C.R.P., face à valoração e utilização de depoimento indireto e de prova ilegal para a condenação por burla informática, por ter sido obtida com violação do direito à reserva da intimidade da vida privada, traduzida no levantamento do sigilo bancário para a investigação do crime de branqueamento de capitais, que veio a cair na fase de instrução sem que a prova a este título colhida com ele soçobrasse.
2. No âmbito da subsequente reclamação que deu causa à decisão de 17/06/2013:
Os n.ºs 1 e 4, do art. 411.º, do C.P.P., ao não se observar como regra para a interposição de recurso o prazo de 30 dias, até pela aplicação deste preceito resultar, em concreto, mais favorável para o Arguido;
Os artigos 26º e 126º, nºs 1 e 3 do C.P.P., ao aí não se valorizarem meios de prova cuja legalidade não foi ainda estabelecida, bem como o 2º, 8º, n.º 1, 32º e 34º, todos da CRP;
Os termos conjugados do n.º 2 do art. 660.º do C.P.C., aplicável ao processo penal por remissão (art. 4.º do CPP), com a alínea c), nº 1, do artigo 379.º, ex vi do artigo 425.º, n.º 4, ambos do Cód. Proc. Penal, traduzidos em omissão de pronúncia – por não terem sido apreciadas as questões suscitadas em sede de recurso quanto ao despacho judicial proferido em 17/08/2012 – e excesso de pronúncia – por se ter conhecido de auto de busca e apreensão ao domicílio do Recorrente – sem que jamais tenha sido realizada qualquer busca no âmbito do processo ora em apreço.
Aquela interpretação e aplicação da lei ordinária, no sentido em que o foi, viola, não só a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, mas sobretudo, como se indicou supra, os comandos constitucionais ínsitos nos artigos 2º, 8º, n.º 1, 18.º, 20.º, n.º 4, 26.º, n.ºs 1 e 2, 29º, n.º 1, 32º e 34º da Constituição da República Portuguesa, da qual ressalta que o processo criminal deve, ao contrário do que o Arguido entende ter sucedido, assegurar todas as garantias de defesa.
(...)»
2. Nos presentes autos, foi o arguido (ora recorrente) condenado, pela Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da comarca de Braga, com intervenção do Tribunal Coletivo, pela prática de um crime de burla informática, na pena de seis anos de prisão, tendo ainda aquele tribunal julgado procedente o pedido cível deduzido pelo ora recorrido - Banco B., S.A. Inconformado, o arguido interpôs recurso junto do Tribunal da Relação de Guimarães, julgado improcedente em Acórdão com data de 22 de abril de 2013. Notificado deste acórdão, o recorrente veio arguir a respetiva nulidade, concluindo o seu requerimento do seguinte jeito:
«(...)
No douto acórdão em apreço e cuja nulidade se suscita, este Venerando Tribunal da Relação omitiu parcialmente, o dever que sobre ele recaia de se pronunciar sobre questão suscitada pelo Recorrente, conhecendo de outra de que não podia conhecer, incorrendo, simultaneamente, em omissão e excesso de pronúncia.
A omissão de pronúncia traduziu-se na circunstância de não terem sido apreciadas as questões suscitadas pelo Recorrente em sede de recurso quanto ao despacho judicial proferido em 17/08/2012, por se ter entendido que, quando este reagiu a tal despacho, em sede de recurso do acórdão final da 1.ª instância, isto é, em 28/09/2012, o mesmo já teria transitado em julgado.
Tal raciocínio assenta no pressuposto – quanto a nós, e com o devido respeito, errado – de o prazo de recurso ser de apenas vinte dias, pelo que o recurso do referido despacho deveria ter sido interposto até 20 de setembro de 2012, ou 25 desse mesmo mês mediante pagamento de multa por apresentação tardia.
Tal entendimento não pode proceder, sendo que a decisão ínsita em tal despacho não havia ainda transitado em julgado aquando da interposição do correspondente recurso.
O n.º 4, do artigo 411º, do C.P.C enuncia, de forma taxativa, que se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, como foi o caso, os prazos estabelecidos são elevados para 30 dias.
Do teor do próprio despacho ora em causa resulta que os factos comunicados no dia 31.07.2012, denominados alteração não substancial, resultam da prova produzida em audiência de julgamento, sendo, pois, imperativo que a apreciação da sua legalidade se fizesse também com base na apreciação do prazo regra para trinta dias, prazo esse que só terminaria em 01-10-2012.
Por efeito da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, já vigente na data em que foi proferido o douto acórdão em crise, o n.º 1, do artigo 411.º, do C.P.P., passa a observar como regra para interposição de recurso o prazo de 30 dias, pelo que também por aplicação deste preceito, em concreto mais favorável para o Arguido estaria sanada esta questão, impondo-se, por tempestivo, a apreciação do vertido em sede de recurso quanto ao despacho judicial proferido em 17/08/2012, e que, a acolher-se impunha decisão final diversa da que foi efetivamente proferida. Sem prescindir,
Ocorreu, ainda, excesso de pronúncia por este Venerando Tribunal da Relação ter conhecido de auto de busca e apreensão ao domicílio do Recorrente – cfr. pág. 61 do douto acórdão em análise – sem que jamais tenha sido realizada qualquer busca domiciliária no âmbito do processo ora em apreço.
A única diligência de busca e apreensão ao domicílio do Arguido foi realizada sob a égide do processo n.º 39/08.8PBBRG, que corre ainda termos pela Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga, sem que se tenha iniciado sequer o correspetivo julgamento, sendo a este auto de busca e apreensão que este Venerando Tribunal da Relação se refere quando, na pág. 61 do douto acórdão cuja nulidade se requer, refere: “A simples leitura do Auto de Busca e Apreensão ao então domicílio do Recorrente A., datado de 19.11.2009...”;
Ao fazer-se tal referência, fica claro que os Venerandos Desembargadores conheceram e se pronunciaram sobre matéria que não foi discutida em audiência de julgamento e não integra sequer o douto acórdão proferido em 1ª instância, valorizando e sancionando indevidamente pretensos meios de prova cuja legalidade ainda não foi sequer debatida e, logo, cabalmente estabelecida, ofendendo, pois, os artigos 26º e 126º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P., bem como o 2º, 8º/1, 32º e 34º, todos da Constituição da República Portuguesa.
Os invocados omissão e excesso traduzem-se na violação dos termos conjugados do n.º 2 do art. 660.º do C.P.C., aplicável ao processo penal por remissão (art. 4.º do C.P.P.), com a alínea c), n.º 1, do artigo 379.º, ex vi do artigo 425.º, n.º 4, ambos do Cód. Proc. Penal, e determina, inevitavelmente, a nulidade do acórdão em apreço e a emissão de nova decisão que conheça das sobreditas questões.
(...)»
Em Acórdão de 17 de junho de 2013, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente a reclamação apresentada, mantendo na íntegra o acórdão de 22 de abril de 2013.
3. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
4. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
Ora, não é isso que sucede no presente caso, pois é evidente que quer no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, quer ao longo da intervenção processual que o antecedeu, o recorrente não logra enunciar questões de constitucionalidade normativa de que este Tribunal possa conhecer. Como é sobejamente conhecido, o controlo efetuado pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização da constitucionalidade é um controlo normativo, incidente sobre normas jurídicas públicas, e que tem por objetivo apurar a sua eventual desconformidade com o parâmetro normativo-constitucional. Por conseguinte, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o objeto do recurso nunca poderá ser o ato de julgamento em si mesmo considerado, incumbindo ao recorrente a identificação da norma e/ou interpretação normativa cujo acerto com os princípios e normas constitucionais visa ver controlado.
Independentemente do aresto tido como decisão recorrida, é manifesta a falta de caráter normativo de todas as questões de constitucionalidade enunciadas pelo recorrente, circunstância que necessariamente inviabiliza o cabal preenchimento dos pressupostos processuais de que se acha dependente o conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
5. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(…)»
5. A reclamação apresentada pelo reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, concretamente, no facto de nenhuma das questões de constitucionalidade levantadas pelo recorrente assumir caráter normativo.
Argumenta o reclamante que “para sustentar o seu requerimento de recurso se refere à questão judicial que ao mesmo subjaz e ao correspetivo julgamento, mas sempre numa perspetiva de enquadramento da interpretação atribuída às normas cuja inconstitucionalidade se suscita e jamais ao ato de julgamento em si, pois não está, nem esteve, jamais, em causa, nem tal se pretendeu, um recurso de amparo”. Sem razão, uma vez mais.
É patente, com efeito, que as questões levantadas pelo então recorrente, no seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, não têm por objeto a situação de desconformidade entre, por um lado, uma dada dimensão normativa destacável dos preceitos invocados, e por outro, os princípios e normas constitucionais que enformam o parâmetro de controlo. Nelas está em causa - tão-só - o ato jurisdicional propriamente dito, cuja validade se contesta seja pela falta de fundamentação da decisão, seja pelo juízo de valoração da prova produzida, seja pelos meios de obtenção de prova mobilizados, seja pela omissão e excesso de pronúncia.
Igual juízo merece a questão de constitucionalidade relativa aos n.ºs 1 e 4 do artigo 411.º, do Código de Processo Penal. De facto, no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, questionou o então recorrente a constitucionalidade daquele normativo, “ao não se observar como regra para a interposição de recurso o prazo de 30 dias, até pela aplicação deste preceito resultar, em concreto, mais favorável para o Arguido”. Porém, como emerge dos autos, a controvérsia que a propósito daqueles normativos se levantou centrou-se no problema da recondução do objeto do recurso ao conceito de “reapreciação de prova gravada”, bem como no problema do início da vigência da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro (cfr. fls. 2501 e 2515). Nenhuma destas questões, contudo, reveste natureza normativa, razão pela qual a decisão sumária prolatada não merece, também quanto a este ponto, qualquer censura.
III. Decisão
6. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 19 de novembro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.