Imprimir acórdão
Processo n.º 456/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 330/2013:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 28 de abril de 2013 (fls. 479 a 482), do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 16 de abril de 2013 (fls. 433 a 470). Do requerimento apresentado pode concluir-se que o recorrente pretende que sejam apreciadas – entre outras questões sem qualquer relevo processual para os presentes autos, que permanecem circunscritos ao plano da constitucionalidade normativa – as seguintes questões:
«1 – A manutenção da Ficha Biográfica nos autos inculca pré juízo de convicção de culpabilidade do arguido e traduz violação dos arts. 1º, 13º, 32, 202 e 205 da Lei Fundamental e art. 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(…)
3 – O depoimento de uma única pessoa, in casu a Ofendida, é prova frágil… porque estava e está contra o arguido, prova NULA que não convence nem vale para a condenação.
(…)
5 – O art. 127 do CPP na interpretação expendida na Douta Decisão viola os arts- 32 e 205 da Lei Fundamental. (…)» (fls. 480).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 28 de maio de 2013 (fls. 486), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, a questão que se reporta à contrariedade entre a manutenção nos autos de uma “ficha biográfica” do recorrente e os artigos 1º, 13º, 32º, 202º e 205º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não se reveste de qualquer natureza normativa. Com efeito, o recorrente imputa ao próprio ato processual de inclusão do referido documento nos autos essa antinomia constitucional, não identificando uma específica norma jurídica que pudesse ser acusada de violação do parâmetro de normatividade constitucional aplicável. Sucede que o n.º 1 do artigo 277º da CRP só admite a fiscalização da constitucionalidade de “normas jurídicas”, razão pela qual o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objeto, quanto a esta parte, em função de o mesmo se encontrar desprovido de qualquer dimensão normativa.
Em segundo lugar, apesar de remeter para a “interpretação normativa expendida na Douta Decisão” (§ 5, a fls. 480), o recorrente vem depois complementar essa afirmação, explicitando que o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigo 127º do CPP) teria sido interpretado no sentido de permitir a condenação, pela prática de um crime, com base exclusiva no “depoimento de uma única pessoa, in casu a Ofendida” (§ 3, a fls. 480).
Ora, a leitura da decisão recorrida permite verificar que tal não foi o entendimento acolhido pela mesma. Pelo contrário, ali se esclareceu que:
«Com relevância nesta sede mostrou-se, igualmente, o depoimento testemunhal de B., sobrinha da assistente, que confirmou ter acompanhado a sua tia ao banco, tê-la auxiliado, em momento subsequente, já em casa, na contagem dos € 120.000,00 (cento e vinte mil euros), bem como ter acompanhado a assistente na deslocação ao Centro Comercial Fonte Nova, tendo presenciado a conversa que esta aí manteve com o arguido, bem como a entrega a este da aludida quantia monetária, justificando, desta forma, a testemunha, nesta parte, a razão do seu conhecimento direto dos factos. (…)
A testemunha C., empregada de escritório da D., S.A., adiantou já ter visto o ora arguido, em uma ou duas ocasiões, na sociedade …, tendo assistido à conversa que, no bar da filarmónica, o arguido e a assistente tiveram, relativamente à aquisição de barras de ouro, recordando-se de que era um negócio no valor de ê 240. 000, 00, mas que seria dividido pelos dois, e que se tratava de um negócio que daria 30% de lucro sobre o valor que ia ser investido. Na ocasião comentou, com arguido e assistente, ter muita pena de não ter esse dinheiro para poder participar.» (fls. 443)
Ou ainda que:
«A testemunha E., prima da assistente, referiu que, por vezes, acompanhava esta à sociedade Alunos …, tendo, nesse local, travado conhecimento com o ora arguido, com quem chegou a dançar. Adiantou ter ouvido o arguido, em algumas ocasiões, afirmar que se dedicava a negócios de venda de ouro, tendo, numa ocasião, referido que ia vender barras de ouro no Banco de Portugal. Confirmou que o arguido telefonava muitas vezes à assistente.
A testemunha F., filha da assistente, responsável pela parte financeira da D., S.A., adiantou não ter conhecimento direto a respeito dos factos que constituem o objeto dos presentes autos, e saber pouco sobre o negócio. Referiu que a assistente precisou de dinheiro, de um dia para o outro, dando- lhe conta de que se tratava de um negócio com o ora arguido e de que ia ter um retorno de cerca de 30% e que passados dois ou três dias o dinheiro seria reposto. Neste contexto, e a pedido da sua progenitora, passou um cheque, no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), de uma conta bancária da titularidade da D., S.A., a cujo levantamento a assistente procedeu.» (fls. 444)
E, a finalizar:
Resulta, pois, do que antecede, que a assistente G. e as testemunhas B., C., E. e F. prestaram depoimentos coerentes entre si, e sem divergências fundamentais, aliás, com o relato feito pelo arguido, no que à entrega pela assistente a este, do montante de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) em numerário, no dia 15 de dezembro de 2009, no Centro Comercial Fonte Nova, diz respeito, bem como quanto ao motivo que esteve na génese de tal entrega, a saber, um negócio de compra e venda de barras de ouro.» (fls. 445)
Assim sendo, não corresponde à verdade processual expressa nos autos que a decisão recorrida apenas tenha tido em consideração o depoimento da ofendida. Bem pelo contrário, a decisão recorrida fundou a sua decisão no confronto crítico entre várias testemunhas da acusação (B., C., E. e F.), que considerou credíveis, e os depoimentos do recorrente e da testemunha por si apresentada (H.), cujas afirmações considerou contraditórias e pouco fiáveis. Tanto basta para concluir que a decisão recorrida nunca aplicou o artigo 127º do CPP, interpretado no sentido de ser bastante um depoimento único da ofendida, para concluir pelo cometimento do crime e pela subsequente condenação do recorrente.
Por força do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de normas jurídicas ou de interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelo tribunal recorrido. Não tendo a decisão recorrida aplicado a interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso, mais não resta do que concluir pela impossibilidade de conhecimento acerca do mesmo.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, sem prejuízo do benefício de apoio de judiciário, na modalidade, de dispensa de pagamento da taxa justiça, de que o recorrente beneficia.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir a seguinte reclamação:
«A., recorrente nos autos supra id tendo sido notificado em 29-6-2013 do teor da Decisão Sumária de 25-6-2013 e não se conformando com a mesma, vem reclamar para a Conferência dando como reproduzidos in totum os argumentos já aduzidos nas alegações de recurso.» (fls. 500)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos, que ora se resumem:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 330/2013, não se conheceu do objeto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A. porque numa parte não vinha enunciada uma questão de constitucionalidade de natureza normativa e na outra porque a decisão recorrida – o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Abril de 2013 – não aplicara o artigo 127.º do Código Penal na interpretação que vinha questionada pelo recorrente.
2º
Parece-nos evidente a não verificação daqueles requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
3º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente não impugna os fundamentos da decisão reclamada, limitando-se a dizer que dá por “reproduzidos in totum os argumentos já aduzidos nas alegações de recurso”.
4º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A decisão reclamada não conheceu sobre o mérito do recurso, tendo-se limitado a verificar a sua impossibilidade, em função da falta de preenchimento de pressupostos processuais indispensáveis ao conhecimento do objeto. Ora, por via da remissão para as suas alegações de recurso – apresentadas perante a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa –, o reclamante limita-se a reiterar alegações formuladas acerca do mérito do recurso. Por força dessa remissão, não invoca nenhum fundamento relativo à falta de preenchimento de pressupostos processuais que pudesse conduzir à alteração da decisão reclamada.
Por conseguinte, mantém-se integralmente o teor da mesma.
III - DECISÃO
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa justiça, de que o recorrente beneficia.
Lisboa, 10 de outubro de 2013. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.