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Processo n.º 523/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 10 de abril de 2013, foi negado provimento ao recurso interposto, entre outros, pelos arguidos A. e B., e confirmada a respetiva condenação, pela prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 2, al. e) e 26.º,do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
2. Os referidos arguidos interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei 28/82, de 15 de novembro (doravante LTC).
3. Pela decisão sumária n.º 391/2013, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(...)
4. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e, entendendo-se que, no caso em apreço, o recurso não é admissível, cumpre proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
5. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do recurso de amparo ou da queixa constitucional dirigidos a atos concretos de aplicação do Direito.
Para tanto, e nas palavras do Acórdão n.º 138/2006, a “distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.”
6. Verifica-se, em primeiro lugar, que uma das vias de recurso invocadas pelos recorrente não encontra aqui aplicação.
Com efeito, o recurso previsto na alínea c) [do n.º 1] do artigo 70.º da LTC contempla a impugnação de decisões que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.
Ora, nem a decisão recorrida recusou a aplicação de qualquer norma, nem se encontra colocada no requerimento qualquer questão normativa de legalidade, por infração de lei com valor reforçado, nos termos decorrentes do artigo 112.º, n.º 3 da Constituição. Nenhum ato legislativo com valor paramétrico encontra lugar na questão colocada, cingida à interpretação dos preceitos relativos à suspensão de execução da pena de prisão.
Consequentemente, o recurso, pelo seu objeto, não pode ser conhecido ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
7. Mas, tomando agora a via de recurso prevista na alínea b) do mesmo n.º 1 do artigo 70.º da LTC, impõe-se concluir do mesmo modo.
Na verdade, o recorrente não coloca questão normativa, nomeadamente por referência a interpretação normativa cujo enunciado não coincida com a literalidade do preceituado no ordenamento penal, circunscrevendo o recurso à apreciação da verificação dos pressupostos da aplicação da pena de substituição prevista no artigo 50.º do Código Penal.
Encontramo-nos, pois, perante questão inteiramente contida no plano aplicativo do direito infraconstitucional, aliás, a única dimensão colocada ao Tribunal a quo, o que a remove do campo de fiscalização concreta da constitucionalidade cometida ao Tribunal Constitucional, necessariamente confinada à apreciação de questões normativas, sem lugar à reapreciação da operação subsuntiva desenvolvida pelo Tribunal recorrido que fundamenta o concreto resultado aplicativo, de inverificação dos pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena de prisão.
Sendo esse, e apenas esse, o alcance da questão previamente suscitada pelo recorrente e colocada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, cumpre concluir que, também quanto a essa via, o recurso não pode ser conhecido, por inidoneidade do seu objeto.»
3. Inconformados, os recorrentes vieram reclamar da decisão sumária para a Conferência, nos seguintes termos:
«1º. Os recorrentes não se conformam com a Decisão Sumária nº 391/13, proferida nos presentes autos, que não conheceu do recurso interposto para este Tribunal Constitucional, pelo que vêm Reclamar da mesma, para a conferência, com fundamento no nº 3 do artº 78º -A da LTC (na redação da lei nº 13-A/98, de 26/02).
2º. Na verdade, o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Relator considerou que, nos presentes autos, o recurso não é admissível, por entender que, “no sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelos recorrentes às decisões judiciais…”.
3º. Refere a citada Decisão Sumária que “…o recurso previsto na alínea c) do artigo 70º da LTC contempla a impugnação de decisões que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Ora, nem a decisão recorrida recusou a aplicação de qualquer norma, nem se encontra colocada no requerimento qualquer questão normativa de legalidade, por infração de lei com valor reforçado, nos termos decorrentes do artigo 112º, nº 3 da Constituição.”
4º. Ora, somos forçados a discordar do texto acima transcrito, desde logo na parte em que refere que a decisão decorrida não recusou a aplicação de qualquer norma. Com efeito, os recorrentes vêm pugnando, desde a interposição do recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que não foi aplicada nos presentes autos a norma que consagra a suspensão da execução da pena de prisão, constante do artigo 50º do Código Penal. Por outro lado, ao não ser aplicada esta norma, está em causa o artigo 32º da Constituição, relativo às garantias do Processo Penal, e ainda o artigo 18º da Lei Fundamental, já que está em causa o direito mais fundamental de toda a Constituição, que é o Direito à Liberdade.
5º. Acresce que, analisando o presente recurso ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da LTC, também aqui temos que discordar frontalmente das conclusões retiradas da Decisão Sumária ora em crise. Efetivamente, o que está em causa no presente recurso vai muito além da “questão contida no plano aplicativo do direito infraconstitucional”, já que se trata verdadeiramente da não aplicação, no caso concreto de norma consagradora do Direito à Liberdade, como é o caso do artigo 50º do Código Penal.
6º. Tendo os recorrentes presente que este não é o momento para efetivas alegações, ou sequer demasiadas considerações, sempre se dirá que o Tribunal de 1ª Instância não conseguiu justificar a não aplicação do artigo 50º do CP, algo que foi desde logo objeto de forte contestação por parte dos recorrentes, no recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto e na resposta ao Parecer do Ministério Público deste Tribunal. De facto não se trata apenas de alguma secura argumentativa do Tribunal a quo, mas muito mais do que isso. Tratando-se de matéria tão importante como a liberdade, não é admissível que não se aplique o artigo 50º com base em “meia dúzia de linhas”, cingindo-se as mesmas essencialmente ao passado criminal dos arguidos, sem o referir em concreto, e colocando os recorrentes num patamar bem abaixo, quando comparado com outros arguidos, também condenados nos presentes autos, mas que viram (e bem) as suas penas suspensas na sua execução.
7º. Admitem os recorrentes que o Acórdão da Relação do Porto tentou, ainda que de forma demasiado resumida e sintética, “engordar” a fundamentação da não aplicação do artigo 50º do CP, mas pouco acrescentou, no sentido de lhe dar a devida sustentação. Não olvidamos de que se trata de matéria fundamental, para ser justificada de forma tão escassa num acórdão condenatório em pena de prisão efetiva.
8º. Relembramos que a questão suscitada pelos recorrentes, desde as alegações para o Tribunal da Relação do Porto, manifestam uma dupla dimensão: a dimensão efetivamente normativa, segundo a qual violaria a Constituição uma interpretação errada do artigo 50º do Código Penal (para além do artº 18º e 32º da CRP), que levaria a uma prisão efetiva dos recorrentes, e a dimensão meramente subsuntiva, nos termos da qual o processo em causa também poderá levar a um caso de prisão injustificada.
9º. As duas dimensões surgem intrinsecamente ligadas na argumentação dos recorrentes, mas a dimensão meramente subsuntiva, em que os recorrentes apelam a uma errónea aplicação pelo tribunal recorrido do artigo 50º do Código Penal, é sempre apoiada numa interpretação do preceito com um âmbito normativo diverso daquele que foi reconhecido pelo tribunal recorrido.
10º. O reconhecimento dessa dimensão normativa, que segundo os recorrentes está ínsita no próprio artigo 50º do Código Penal, pressupõe uma verdadeira questão de constitucionalidade: a de saber se decorre obrigatoriamente da Constituição a interpretação daquele preceito legal, segundo a qual a não suspensão da pena de prisão efetiva foi necessariamente demonstrada e justificada no acórdão recorrido.
11º. Assim, para os recorrentes/reclamantes, duas alternativas se colocam relativamente ao artigo 50º do Código Penal: a de ser inconstitucional a interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo e a da inconstitucionalidade tout court do artigo 50º do CP, na medida em que seja suscetível de levar a interpretações perfeitamente arbitrárias dos Tribunais, ou contrárias aos fins previstos na norma.
12º. Consequentemente, configura-se uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa (perante os tribunais recorridos e perante o Tribunal Constitucional) para além de uma questão relativa à correta aplicação da lei ao caso, isto é, à verificação no caso dos pressupostos legalmente exigidos para a questão em causa. O objeto do recurso de constitucionalidade é, portanto, descritível como a interpretação do artigo 50º do Código Penal, que considera não justificada ou manifestamente ilegal, ipso facto, a não suspensão da pena de prisão efetiva dos recorrentes. Será, por via desta compreensão, uma certa interpretação normativa do que seja a não suspensão da prisão efetiva, o próprio objeto do recurso. Dessa questão poderia o Tribunal Constitucional tomar conhecimento.
13º. Em resumo, e com todo o respeito e a mais subida vénia, entendem aos Reclamantes, que no caso concreto, o recurso apresentado para este Douto Tribunal é admissível e deve ser conhecido.»
4. O Ministério Público apresentou resposta, no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Inconformados com a decisão sumária n.º 391/2013, que decidiu não conhecer do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por inidoneidade do seu objeto, vieram os recorrentes reclamar para a conferência. Adiante-se, desde já, que nenhum dos argumentos que apresentam afasta ou contraria os fundamentos em que assentou tal decisão.
5.1. Com efeito, não colhe o argumento de que os arguidos questionaram no requerimentos de interposição de recurso a recusa de aplicação da norma do artigo 50.º do Código Penal, pois essa impugnação não consente a interposição do recurso para este Tribunal previsto na alínea c) do artigo 70.º da LTC. Ao contrário do que parecem considerar os recorrentes, essa via de recurso não permite questionar perante o Tribunal Constitucional a correção de aplicação ao caso concreto de qualquer norma legal. Essa via de recurso abrange tão somente a impugnação fundada em ilegalidade quando dirigida a norma de ato legislativo que viole lei com valor reforçado, de acordo com o estabelecido no artigo 112.º, n.º 3 da Constituição.
O que, no caso, acontece. Em primeiro lugar porque a decisão recorrida não recusa de aplicação de qualquer norma, mormente por ilegalidade: conclui pela a formulação de juízo negativo quanto ao preenchimento dos pressupostos de que depende a imposição da pena de substituição contida no artigo 50.º do Código de Penal. Depois, porque não se inscreve no questionamento formulado pelos recorrentes qualquer questão de ilegalidade por violação de lei de valor reforçado.
5.2. Na verdade, os recorrentes questionam a correção do ato de julgamento, na sua dimensão subsuntiva e de ponderação da propriedade da reação sancionatória penal contida naquele preceito, o que corresponde, como se disse na decisão sumária reclamada, a questão inteiramente contida no plano infraconstitucional.
Aliás, os reclamantes confirmam que é esse o propósito que perseguem na demanda do Tribunal Constitucional, quando referem que “o objeto do recurso de constitucionalidade, é (...) descritível como a interpretação do artigo 50.º do Código Penal” e apelam ao controlo de “interpretações perfeitamente arbitrárias dos Tribunais”, bem como à correção de “uma errónea aplicação (...) do artigo 50.º do Código Penal” .
Ora, a sindicância da bondade da interpretação e aplicação ao caso do direito ordinário, ou mesmo a apreciação de desconformidade constitucional imputada diretamente ao ato de julgamento, enquanto tal considerado, não encontra acolhimento na segunda via de recurso invocada, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, circunscrita à apreciação de questões normativas de constitucionalidade. Na verdade, os recorrentes não questionam o critério normativo aplicado pelo Tribunal a quo na escolha da espécie da pena; questionam, antes, o resultado privativo da liberdade que se determinou.
Cumpre, então, confirmar a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada; e
b) Condenar os reclamantes nas custas, fixando-se em 20 (vinte) Ucs a taxa de justiça devida, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelos reclamantes.
Lisboa, 10 de outubro de 2013. – Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.