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Processo n.º 664/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público a primeira vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 586/13 de 16 de outubro, que não conheceu do objeto do recurso interposto pela ora reclamante.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 586/13 é o seguinte:
“4. Admitido o recurso, cumpre, antes de mais, decidir se é possível conhecer do seu objeto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, n.º 3, da LTC). Ora, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC pressupõe, designadamente, que se trate de uma questão de constitucionalidade normativa e que o recorrente tenha suscitado, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, essa exata questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, de modo a que este dela pudesse tomar conhecimento. Nos presentes autos, como se verá de seguida, é manifesto que tal não aconteceu.
5. Desde logo, o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC tem como pressuposto específico que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (art. 70.º, n.º 1, alínea b) e artigo 72.º, n.º2, da LTC). Para tanto, a questão tem de ser suscitada perante o tribunal da causa como respeitando às normas cuja apreciação se pretende deferir ao Tribunal Constitucional perante eventual “decisão negativa”. Isto é, o interessado tem o ónus de convocar esse tribunal, no âmbito da resolução de uma questão que lhe seja submetida, a recusar a aplicação a determinada norma no uso do poder ou dever funcional que lhe é conferido pelo artigo 204.º da Constituição.
Ora, a recorrente não colocou, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida – o Tribunal da Relação de Coimbra -, qualquer questão de constitucionalidade normativa de que este pudesse conhecer. A recorrente apenas refere, de forma genérica que foi “violado” “no Acórdão proferido pelo Tribunal «a quo» o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º”. Esta genérica imputação de inconstitucionalidade não satisfaz as exigências da al. b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, uma vez que não corresponde a nenhuma norma ou interpretação normativa tidas como inconstitucionais e supostamente aplicadas pelo tribunal recorrido.
A própria recorrente reconhece a falta de suscitação prévia de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa no seu requerimento de interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional, pois admite que: “mesmo entendendo-se em concreto que tal questão de constitucionalidade, apenas à suscitada na sua plenitude, no presente requerimento; ao abrigo da uniforme jurisprudência do Tribunal Constitucional que excecionalmente admite o recurso, dispensando o interessado de a ter suscitado durante o processo, até à decisão de que se recorre; porquanto se afigura não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquela norma ao concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão (da inconstitucionalidade) antes da decisão; Atente-se pois «in casu», que a recorrente não dispôs de qualquer oportunidade processual para suscitar anteriormente a inconstitucionalidade em apreço, quer pela forma inesperada como a questão surge no dia da Leitura do Acórdão recorrido, quer pela forma ainda mais inesperada como a mesma foi tratada pela presidente daquele coletivo de juízes”.
Não pode a recorrente afirmar que a decisão recorrida constitui uma “decisão-surpresa”. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, só em hipóteses excecionais ou anómalas em que o recorrente tenha sido confrontado com uma nova questão de direito ou uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, é que poderia configurar-se uma exceção à obrigatoriedade de suscitação da questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida. Ora, no caso dos autos, a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, no que respeita ao objeto do presente recurso, limitou-se a confirmar a decisão do tribunal de primeira instância. Assim, a recorrente não pode invocar ter sido confrontado, na decisão recorrida, com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevisível ou inesperada, de forma a que a mesma se configure como uma verdadeira “decisão surpresa”. Tanto assim é que, nas alegações de recurso perante o Tribunal a quo, refere “a questão prévia” da não aplicação do disposto no n.º3 do artigo 358.º do CPP, sem, contudo, lograr suscitar adequadamente uma questão de inconstitucionalidade normativa subjacente a esse facto.
Tanto bastaria para não se conhecer do presente recurso.
6. Mas, mesmo que assim não fosse, nem por isso a decisão seria diversa. De facto, o próprio requerimento de interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional padece de insuficiências que se afiguram inultrapassáveis.
O Tribunal tem reiteradamente afirmado que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Nesses casos, contudo, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
No entanto, como decorre dos termos em que a recorrente formula a questão de inconstitucionalidade, no supra transcrito requerimento de interposição de recurso, esse ónus não foi cumprido. De facto, a recorrente não logra identificar e delinear, de forma minimamente clara, a norma e o sentido normativo aplicados pelo Tribunal a quo cuja inconstitucionalidade pretende ver sindicada. A única tentativa de enunciar uma possível norma objeto de recurso é feita de forma incompleta e obscura, nos seguintes termos: “norma constante do artigo 358.º do Código de Processo Penal, na interpretação seguida pelo Tribunal da Relação de Coimbra”. Assim, contrariando o que atrás se referiu como constituindo o ónus do recorrente, esta não logrou enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito considerado inconstitucional, antes remetendo para a decisão concreta do tribunal a quo, não permitindo assim que “se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
7. E nem se diga que se poderia proceder a um aperfeiçoamento do requerimento de recurso. De facto, denota-se que a insuficiência enunciada se prende não apenas com uma deficiente redação, mas, substancialmente, com o próprio conteúdo ou sentido da questão que a recorrente coloca ao Tribunal Constitucional. Na verdade, ressalta do próprio requerimento de interposição do recurso que, em substância, a recorrente não visa colocar qualquer questão de constitucionalidade normativa ao Tribunal Constitucional, mas, pelo contrário, contestar a própria decisão do Tribunal da Relação de Coimbra. Senão vejamos.
A recorrente perde-se em considerações atinentes a uma possível nulidade do aresto recorrido e, por isso, alheias a qualquer juízo de inconstitucionalidade. Nesse sentido, é por demais repetida a ideia – totalmente estranha a um juízo de inconstitucionalidade -, de que “é nulo o Acórdão que, sem prévia comunicação à arguida, procede à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação”. Por outro lado, a recorrente sublinha por diversas vezes qual a interpretação que, no se entender, o tribunal a quo deveria ter adotado da norma em causa: “não obstante o Art. 379.º, n.º1, al. b) do C.P.P. abranger apenas a alteração (substancial e não substancial) dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o respetivo regime deve ser também aplicável, por interpretação extensiva, à alteração da qualificação jurídica desses factos”. Por fim, são várias as páginas do referido requerimento que são dedicadas em exclusivo à contestação da apreciação da prova feita pelo tribunal a quo.
Todos estes factos são demonstrativos de que o que a recorrente verdadeiramente contesta perante o Tribunal Constitucional, é a própria bondade da decisão do tribunal a quo, e não a inconstitucionalidade de uma norma supostamente aplicada por este.
Em boa verdade, no entender da recorrente, o tribunal a quo deveria ter aplicado o artigo 358.º do CPP ao caso em presença. Ao não tê-lo feito, a interpretação dada a esse mesmo preceito – não aplicado pelo Acórdão a quo – seria inconstitucional. Ora, se a própria recorrente admite que esse preceito não foi aplicado pelo tribunal a quo, quando, no seu entender, o devia ter sido, reconhece, por um lado, que o mesmo não constituiu a ratio decidendi do aresto recorrido e, por outro lado, o que o que ela contesta é, não a constitucionalidade da norma, mas sim a decisão concreta do tribunal a quo, em não aplicar essa norma. A verdadeira pretensão da recorrente é, assim, discutir no presente recurso se o Tribunal da Relação de Coimbra esteve bem ao não aplicar a norma constante do artigo 358.º do CPP.
Mas se assim é, há que relembrar que não incumbe ao Tribunal Constitucional substituir-se no juízo subsuntivo realizado pelo tribunal a quo. É jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82: para o Tribunal Constitucional cabe recurso das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Não possuindo o presente recurso um objeto normativo, também por este motivo não pode o Tribunal Constitucional conhecer do mesmo.
8. Por todo o exposto, apenas resta concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por manifesta falta dos seus pressupostos de admissibilidade.”
3. A recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
“Maria Sofia Batista António, Arguida / Recorrente nos autos em epígrafe, não se conformando com a Decisão Sumária n.º 586/2013 proferida nos mesmos;
- Vêm por este meio, ao abrigo do disposto no Artigo 78-A n.º 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98 de 26 de fevereiro;
- Apresentar RECLAMAÇÃO para competente conferência, mais se sublinhando, que “in casu”, em momento algum foi notificada nos termos dos n.º(s) 5 ou 6 do Artigo 75-A (Lei n.º 28/82 de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98 de 26 de fevereiro)”.
4. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“1º Pela douta Decisão Sumária n.º 586/2013, não se conheceu do objeto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por Maria Sofia Batista António.
2º De forma clara e fundamentada, na douta Decisão Sumária demonstra-se a não verificação de dois requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º1, do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC): não suscitação, “durante o processo”, de uma questão de inconstitucionalidade normativa, não se estando dispensado do cumprimento desse ónus; não identificação no requerimento de interposição do recurso de objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
3º Na reclamação agora apresentada, a recorrente não impugna os fundamentos da decisão reclamada, apenas alegando que devia ter sido notificada “nos termos do n.º 5 ou 6 do artigo 75.º-A” da LTC.
4º Ora, as razões porque não foi proferido o despacho-convite a que alude o artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC, constam expressamente do ponto 7 da decisão reclamada, nada mais tendo nós a acrescentar.
5.º Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação”.
II – Fundamentação
5. A ora reclamante reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 586/2013, limitando-se a sublinhar que, em momento algum foi notificada nos termos e para os efeitos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75-A da LTC.
6. Decorre dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75-A da LTC que, se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos nos n.ºs 1 e 2 desse artigo, o juiz (do tribunal a quo, ou o Relator no Tribunal Constitucional) convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias.
No entanto, decorre do teor da decisão sumária reclamada que não foi por falta dos elementos enunciados no artigo 75-A, n.º1 e 2 da LTC que o Tribunal Constitucional não tomou conhecimento do presente recurso. Foi, aliás, expressamente referido no ponto 7 da referida decisão sumária que o não conhecimento do recurso não se prendeu com a falta de indicação desses elementos mas sim com a falta de verificação dos pressupostos processuais indispensáveis ao conhecimento do recurso – nomeadamente a falta de suscitação prévia e de forma adequada da questão de constitucionalidade que se pretendia ver apreciada, perante o tribunal a quo, bem como a natureza não normativa da questão objeto do recurso. A falta desses pressupostos processuais era insuprível com o convite a que a ora reclamante se refere. Sublinhe-se novamente o que aí se referiu: “a insuficiência enunciada se prende não apenas com uma deficiente redação, mas, substancialmente, com o próprio conteúdo ou sentido da questão que a recorrente coloca ao Tribunal Constitucional. Na verdade, ressalta do próprio requerimento de interposição do recurso que, em substância, a recorrente não visa colocar qualquer questão de constitucionalidade normativa ao Tribunal Constitucional, mas, pelo contrário, contestar a própria decisão do Tribunal da Relação de Coimbra”.
7. Nada mais acrescentando a ora reclamante no que toca à decisão de não conhecimento do objeto do presente recurso, conclui-se que a mesma é de manter.
III – Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 21 de novembro de 2013. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.