Imprimir acórdão
Processo n.º 948/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo n.º 1092/06.4TACTB, do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Castelo Branco, A. e B. foram condenados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nas penas de, respetivamente, 5 anos e 6 meses de prisão e 6 anos de prisão.
Os arguidos interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido em 28 de novembro de 2012, negou provimento ao recurso.
Os arguidos recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Conselheiro Relator proferido decisão sumária de não admissão do recurso.
Os arguidos reclamaram desta decisão para a conferência, tendo sido proferido acórdão em 12 de junho de 2013 que indeferiu a reclamação.
Os arguidos arguiram a nulidade desta decisão, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 11 de julho de 2013.
Os arguidos recorreram então para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“…não se conformando com as doutas decisões de rejeição dos recursos interpostos pelos arguidos para o STJ (decisão sumária e acórdão, em conferência, face à reclamação deduzida), delas vêm interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que fazem ao abrigo do preceituado nos artigos 70º, nº 1, al. b), 72º, nº 2, 75º, 75º-A e 78º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, na redação conferida pela Lei nº 85/89, de 7 de setembro, e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de fevereiro.
Declara-se, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 75º-A, nº 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, que pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 5º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal, quando interpretado nos termos plasmados na decisão sumária de rejeição do recurso para o STJ e no acórdão proferido quanto à reclamação subsequentemente apresentada, mais precisamente, com o sentido restritivo de que, em matéria de recurso e, no caso, de aplicabilidade do artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redação anterior à Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, o que releva não é o momento em que o processo-crime efetivamente se iniciou, nem o momento em que o recorrente foi constituído arguido, mas, sim, a data em que foi proferida a decisão final em 1ª instância.
A interpretação do citado normativo vertida nas decisões anteriormente aludidas viola clamorosamente os princípios constitucionais da igualdade, da aplicação da lei penal mais favorável, da mínima restrição dos direitos, liberdades e garantias, consagrados nos artigos 13º, nº l, 18º, nºs 2 e 3, e 29º, nº 4, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como os direitos de defesa do arguido em processo penal, concretamente o direito ao recurso, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, conjugado com o princípio da aplicação da lei penal mais favorável, da proibição da retroatividade desfavorável e imposição da retroatividade favorável e ainda com o princípio da igualdade”.
Foi proferida decisão sumária que julgou improcedente o recurso, com a seguinte fundamentação:
“A questão de constitucionalidade colocada pelos Recorrentes já foi objeto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, as quais concluíram pela não inconstitucionalidade da solução sustentada pela decisão recorrida.
Assim o fizeram os Acórdãos n.º 263/09, 551/09, 645/09, 125/10, 174/10, 276/10, 277/10, 308/10, 314/10, 359/10 e 471/10 e 215/11 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, aderindo inteiramente aos fundamentos constantes daqueles arestos, deve o recurso ser julgado improcedente, proferindo-se decisão sumária nesse sentido, atenta a simplicidade da questão a dirimir, devido à existência de antecedentes jurisprudenciais, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
Os Recorrentes reclamaram com os seguintes argumentos:
“A) – NOTA PRELIMINAR
Foi o recurso interposto julgado por decisão sumária, por se considerar que a questão da constitucionalidade colocada pelos Recorrentes já foi objeto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, nas quais se concluiu pela não inconstitucionalidade da solução sustentada pela decisão recorrida.
Quando interpusemos o presente recurso não ignorávamos tal realidade jurisprudencial, no entanto decidimos submeter novamente a questão à apreciação desse alto tribunal por diversas razões, de que destacamos as seguintes:
- porque discordamos do entendimento que nesta matéria tem sido seguido;
- porque o caso em apreço apresenta particularidades que, salvo o devido respeito, merecem a reflexão de V. Exas;
- porque o improvimento do presente recuso acarretará consequências gravíssimas e manifestamente injustas para os Recorrentes, que consubstanciam clamorosas violações de direitos fundamentais e dos princípios estruturantes do ordenamento jurídico processual penal;
- porque continuamos a acreditar que os nossos tribunais ainda fazem Justiça e tratam os cidadãos com a dignidade que merecem, independentemente do seu estatuto social ou económico e da maior ou menor mediatização do processo.
B) - ENQUADRAMENTO DO CASO
Antes de entrarmos propriamente na questão da inconstitucionalidade suscitada nos autos, faremos uma breve resenha processual, salientando os aspetos que se nos afiguram relevantes para a apreciação e decisão de V. Exas.
ASSIM.
1. Os factos em causa nos autos reportam-se ao período compreendido entre 15 de junho de 2004 e 14 de fevereiro de 2007.
2. O presente processo foi instaurado em 2004.
3. Os aqui Recorrentes foram constituídos arguidos nos autos em fevereiro de 2007.
4. Em 2006 foi ordenada a separação de processos, tendo sido julgado no processo inicial (Processo nº 24/04.9PECTB, 2º Juízo) C. - testemunha ouvida na última sessão de audiência de julgamento por imposição da Mª Juiz que presidiu ao coletivo, já que aquele manifestou (em nossa opinião, legitimamente) intenção de não depor.
5. Por acórdão proferido em 1/3/2007 no referido processo nº 24/04.9PECTB, que consta de fls. 1423 a 1443 dos autos, foi o aludido C. condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução foi então suspensa pelo período de 5 anos.
6. Os aqui Recorrentes foram julgados por acórdão proferido em 26/3/2012, sendo ambos condenados também pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de janeiro, sendo o Recorrente A. condenado na pena de 5 anos e 6 meses de Prisão e o Recorrente B. na pena de 6 anos de prisão.
7. No acórdão proferido em la instância uma das juízas do coletivo votou vencida, '(...) por considerar encontrarem-se verificados os pressupostos fácticos de que depende a atenuação especial da pena previstos no artigo 72º, nºs 1 e 2 al. d) do Código Penal, considerando a data da prática dos factos, sendo que alguns deles remontam a 2004, a ausência de condenações entretanto sofridas pelos arguidos (...), o facto de todos se encontrarem inseridos sócio, familiar e profissionalmente, o que evidencia boa conduta e diminui consideravelmente a necessidade da pena', concluindo que '(...) a pena de cada um dos arguidos deveria ser encontrada dentro da moldura especialmente atenuada, nos termos do artigo 73º do Código Penal (com base nos mesmos critérios de adequação e proporcionalidade considerados supra para a determinação da pena individual dos arguidos) e as penas de prisão aplicadas a cada um deles deveriam ser suspensas na sua execução, pois somos de crer que tal bastaria para impedir o cometimento de novos crimes pelos arguidos, que se encontram integrados sócio, familiar e profissionalmente, pelo que a efetiva aplicação da pena detentiva surtiria um efeito destabilizante, sendo as próprias finalidades da prevenção especial, na sua dimensão positiva, atento o efeito dessocializante que no caso surtiria a aplicação de uma pena de prisão efetiva que in casu aconselham e incentivam a suspensão'.
8. No que concerne ao Recorrente A., deu o tribunal de 1ª instância como provado, com relevância para a escolha e medida da pena, o seguinte factualismo:
- O arguido manifestou no seu processo de amadurecimento preocupação pela integração social e profissional e pela valorização das suas competências. Mantendo-se a residir em Castelo Branco, procurou encontrar novos relacionamentos sociais, enquadrados no comportamento normativo, não voltando a ocorrer depois do presente processo novos contactos com o aparelho da Justiça.
- O arguido encontra-se a residir com a companheira, na cidade de Castelo
Branco, numa zona diferenciada, onde predominam fatores socioculturais protetores de orientação pró-social.
- O agregado efetuou a aquisição de habitação própria, mediante empréstimo bancário, dispondo o apartamento de boas condições habitacionais e observando-se investimento no espaço doméstico.
- Ao nível económico, aufere um vencimento que varia entre os 1.500 e os 2.000 euros mensais, ao qual acresce a quantia de 485 euros da companheira, que trabalha numa clínica junto à zona de residência.
- O relacionamento familiar é marcado sobretudo pela ligação à família da companheira, mantendo um padrão de relacionamento coeso e harmonioso com os vários elementos da família e exteriorizando no relacionamento com a companheira vinculação e afetividade.
- O arguido, na avaliação que efetua sobre os factos do presente processo, manifesta reconhecimento do dano e raciocínio crítico, exteriorizando sofrimento pelo impacto que tem produzido na sua vida pessoal.
- O A. encontra-se em acompanhamento psiquiátrico e com administração de medicação diária, como forma a ajudar a gerir a tensão sentida diariamente pelas eventuais consequências decorrentes da sua situação jurídica.
- O presente processo teve impacto no arguido vindo a manifestar nos últimos anos uma atitude responsável, optando pelo afastamento do grupo de pares, uma valorização profissional e integração social.
- O impacto dos factos está esbatido no tempo.
9. No que concerne ao Recorrente B., deu o tribunal de lª instância como provado, com relevância para a escolha e medida da pena, o seguinte factualismo:
- O arguido nasceu há 32 anos, em Castelo Branco, sendo o filho mais novo de um conjunto de quatro irmãos, o progenitor era camionista de longo curso e a mãe funcionária pública.
- B. frequentou o infantário e iniciou a escolaridade em idade própria, a qual teve seguimento até à conclusão do 80 ano de escolaridade após o que abandona o percurso escolar.
- Mais tarde emigra para França, vindo a regressar a Portugal para iniciar funções na área da restauração. Entre os 24 e os 27 anos iniciou relacionamento afetivo e união de facto, tendo um filho da relação.
- Nesse espaço de tempo, B. trabalhou por conta própria, nomeadamente na abertura de um estabelecimento comercial ligado ao comércio do vestuário, em Castelo Branco, e mais tarde na compra e venda de automóveis usados.
- Há cerca de cinco anos, veio a terminar a relação, passando a viver inserido no agregado familiar de um irmão. Nessa altura, o arguido opta pela valorização das suas competências escolares e profissionais, concluindo o Curso de Técnico de Instalações Elétricas. Esta certificação deu equivalência ao 9º ano de escolaridade e permitiu-lhe adquirir a carteira profissional de Eletricista.
- A partir de 2010, iniciou funções na montagem de parques de energia solar, em diversos países do mundo. Relativamente ao estilo de vida e relacionamento social, B. iniciou durante a adolescência contacto com estupefacientes, os quais ocorreram no contexto do relacionamento com o grupo de pares, fazendo o arguido a gestão precoce de espaços de autonomização, que conduziram à exposição de fatores de risco.
Não obstante este facto, o arguido manifestou no seu processo de amadurecimento preocupação pela integração profissional e pela valorização das suas competências, não voltando a ocorrer depois do presente processo novos contactos com o aparelho da justiça.
- O arguido encontra-se a residir atualmente na Escócia, local onde está situado o atual parque de energia eólica que se encontra a construir.
- Desloca-se a Portugal com uma periodicidade de 7 em 7 semanas, altura em que procura estar com o filho e com a família que reside em Castelo Branco.
- Ao nível económico, aufere um vencimento que varia entre os 3000 e os 3500 euros mensais, considerando que os atuais rendimentos lhe têm propiciado condições de vida aliciantes e que lhe permitem perspetivar um futuro mais confortável, no regresso a Portugal.
- Como projeto de vida, ao nível profissional, refere que gostaria de ficar ligado à manutenção de parques eólicos já construídos no país.
- B., atualmente, manifesta preocupação em reunir condições para se fixar num futuro próximo em Castelo Branco, por forma a acompanhar o quotidiano e o processo educativo do filho, com o qual mantém uma relação gratificante.
- O arguido manifesta-se apreensivo com as eventuais consequências decorrentes da sua situação jurídica.
- O presente processo teve impacto no arguido vindo a manifestar nos últimos anos uma postura mais responsável, optando pelo afastamento do grupo de pares e pela valorização profissional.
- Os factos reportam-se ao ano de 2006, pelo que o seu impacto no meio está esbatido no tempo.
- O arguido tem 32 anos de idade e o seu percurso de vida tem sido marcado pela facilidade na adaptação a novas circunstâncias profissionais e pessoais.
- Ao longo do tempo, tem vindo a revelar consistentes hábitos de trabalho e preocupação pela construção de um projeto de vida dentro das normas sociais.
10. A condenação dos recorrentes estriba-se, essencial e determinantemente, no depoimento do referido C. - cuja validade, legalidade e credibilidade foi questionada nos recursos interpostos.
11. Não obstante toda a factualidade dada como provada, que aconselha a atenuação especial da pena aplicada e a suspensão da sua execução, o tribunal da Relação considerou as penas concretamente aplicadas adequadas e necessárias, sem, no entanto, explicar o porquê de tal necessidade e adequação.
12. Relativamente ao recurso interposto pelo Recorrente B., o tribunal da Relação conheceu de parte do mesmo por remissão para a fundamentação e decisão que proferiu quanto ao recurso do Recorrente A. e não se pronunciou quanto a diversas questões nele suscitadas.
13. O Recorrente B. suscitou a nulidade decorrente de tal omissão de pronúncia no recurso que interpôs para o STJ, porém, tal questão não será sequer conhecida se a Relação vier a trilhar o caminho que o Exmo. Juiz Relator desse Alto Tribunal (STJ) sugeriu na decisão de rejeição do mesmo - o que a suceder consubstanciaria, em relação a ele, a negação do duplo grau de jurisdição.
C) - A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE PROPRIAMENTE DITA
É neste conspecto que interpusemos o presente recurso, na expectativa de que V. Exas, dando provimento ao recurso e abrindo, assim, a porta do Supremo Tribunal de Justiça, permitam que ainda se faça justiça ou, pelo menos, não se cometam dois clamorosos erros judiciários, que 'empurrariam' para a cadeia dois cidadãos deste país, que, segundo o acórdão de lª instância, entre 2004 e 2006 cometeram alguns erros no seu percurso de vida, mas que arrepiaram caminho e se encontram desde então, decorridos que são mais de 6 anos, social, familiar e profissionalmente integrados.
V. Exas têm, pois, a oportunidade - e o dever - de evitar que se cometam tais erros, que se traduziriam na 'destruição' da vida de dois cidadãos e de duas famílias.
É nisso, afinal, que se traduz a essência da justiça.
É isso que justifica a existência de tribunais em que os julgadores são pessoas e não máquinas onde se introduzam dados e sai uma solução.
A grande vantagem resultante do facto da aplicação da lei ser feita por homens e não por máquinas consiste em permitir adequar a solução ao caso concreto, fazer Justiça em cada situação particular.
É nessa perspetiva e com esse intuito que V. Exas deverão julgar o presente recurso, não caindo pura e simplesmente na tentação de seguir o caminho já trilhado e mais fácil, que se reconduz a aderir aos fundamentos constantes dos inúmeros arestos já proferidos sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada.
O caso sub judice apresenta particularidades que impõem que V. EXªs julguem de forma diferente, alterando o entendimento que esse tribunal vem sufragando quanto à questão suscitada.
VEJAMOS:
A apreciação do caso sub judice vai para além da questão de se concluir que com a entrada em vigor da lei nº 48/2007 de 29 de agosto, os recursos das relações que confirmem as decisões de lª instância e que apliquem ao arguido pena inferior a 8 anos, não são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça.
No respeito pelos princípios materiais ligados à posição do arguido, ou por exigências de coerência sistemática e harmonia intraprocessual, a lei nova não deve aplicar-se aos processos iniciados anteriormente quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou quebra de harmonia e unidade dos vários atos do processo.
Como já se evidenciou, os factos em apreço nos autos ocorreram há mais de seis anos e todos eles antes da entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de agosto.
Foi por culpa do Estado (Tribunais) e não por qualquer facto imputável aos arguidos, ora Recorrentes e Reclamantes, que estes não foram julgados em tempo útil.
Foi o tribunal, sem que os Reclamantes nisso tivessem qualquer interferência, que demorou mais de seis anos a marcar o julgamento.
Será justo, legal e constitucional que, por factos ocorridos entre 2004 e 2006, ou seja, antes da entrada em vigor da nova lei, não seja admissível recurso para o STJ, quando o seria se a decisão de primeira instância tivesse sido proferida antes da entrada em vigor de tal lei?
Obviamente que não, desde logo, porque foi o tribunal que, sem que os Reclamantes nisso tivessem qualquer interferência, que demorou mais de seis anos a marcar o julgamento.
Ora,
Qualquer cidadão tem direito a um julgamento justo e atempado.
No caso em apreço não se verificou o julgamento dos arguidos em tempo, considerado, útil.
Impedir-se que os recursos apresentados pelos arguidos sejam apreciados pelo STJ, pelo facto de se ter demorado mais de seis anos a realizar-se o julgamento, só pelo facto de em 2007 ter entrado em vigor a Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, constitui clamorosa violação das garantias de defesa dos arguidos prevista na Constituição da Republica Portuguesa.
A lei vigente à data dos factos em causa nos autos garantia aqui Recorrentes, em caso de condenação pelo crime (como sucedeu), recurso até ao STJ.
Mais:
A lei vigente à data em que os Recorrentes foram constituídos arguidos, em caso de condenação pelo crime (como sucedeu), recurso até ao STJ.
Ora, é precisamente quando se é constituído arguido que se adquirem os direitos inerentes a essa qualidade, em que se inclui o direito ao recurso, e não à data da prolação da decisão em 1ª instância, como vem sendo entendido pela nossa mais alta jurisprudência.
Num processo de natureza criminal, a estratégia de defesa do arguido não se inicia no momento em que é condenado em 1ª instância, mas, sim, logo que é notificado para intervir no processo nessa qualidade, razão pela qual, antes de lhe serem tomadas declarações - caso o mesmo deseja prestá-las - tem de ser constituído como arguido, para que goze dos direitos que essa qualidade lhe confere e fique sujeito às obrigações que da mesma decorrem.
Decisões como a de prestar ou não depoimento, em qualquer fase do inquérito, e as instâncias de recurso de que se dispõe podem estar interligadas.
Assim, o arguido pode adotar como estratégia prestar declarações, confessando e manifestando arrependimento pela prática dos factos, por exemplo, porque sabe que, atuando desse modo e encontrando-se social, profissional e familiarmente inserido, a jurisprudência do STJ é no sentido da atenuação especial da pena; pode adotar por estratégia não prestar declarações, porque sabe que não existe prova direta dos factos e, porventura, o entendimento dominante do STJ é no sentido de não valorizar os depoimentos indiretos, ao contrário do que sucede com a Relação.
Estas e outras decisões, que o arguido pode tomar logo que é constituído nessa qualidade, podem ser num ou noutro sentido, consoante se tenha recurso só para a Relação ou também para o Supremo.
Tal razão afigura-se-nos suficientemente forte para que se considere que, para efeitos da interpretação e aplicação do disposto no artigo 5º, nº 2, alínea a) do CPC, o que releva é o momento em que o arguido foi constituído nessa qualidade e não a data em que foi proferida a decisão final em 1ª instância.
Têm, por isso, os aqui Reclamantes o direito de ver os recursos apresentados apreciados pela mais alta instância judicial do nosso País, o Supremo Tribunal de Justiça, devendo qualquer interpretação em sentido contrário, ser considerada inconstitucional.
Vedar-se a possibilidade aos arguidos, no caso concreto e tendo em conta o circunstancialismo mencionado nesta reclamação, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça implica manifestamente uma diminuição das suas garantias de defesa e limita o exercício do direito ao recurso, previsto no artigo 32º, nº 1, da CRP.
Tendo em conta a data da ocorrência dos factos e da constituição como arguidos, os ora Reclamantes criaram expectativas na sua defesa em caso de terem de lançar mão de recurso da decisão que viesse a ser proferida; expectativas essas que lhes são frustradas pela aplicação da nova lei, seguindo o entendimento propugnado na decisão sumária de que se reclama.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Se as normas cuja constitucionalidade é aferida são as aplicadas a uma determinada situação, o juízo de constitucionalidade que é proferido recai apenas sobre o seu conteúdo geral e abstrato, não relevando as particularidades da sua aplicação ao caso concreto, nem as repercussões da decisão que as invocou como seu fundamento.
Dai que, tendo a norma cuja constitucionalidade os Recorrentes pretendem ver apreciada sido já fiscalizada pelo Tribunal Constitucional em múltiplos acórdãos, sem que sejam invocadas novas razões que justifiquem uma reponderação da posição adotada, deve a mesma manter-se através de simples remissão para os fundamentos que constam desses arestos.
Por estas razões deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A. e B..
*
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98 de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de outubro de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.