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Processo nº 192/01
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional,
'ao abrigo e em obediência ao disposto no artº 70º, nº 1, al. a), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro', da sentença do Mmº Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Évora, de 5 de Fevereiro de 2001, pretendendo a 'apreciação da constitucionalidade do artº 237º, nº 3 do Código de Procedimento e Processo Tributário, aprovado pelo Dec-Lei nº 433/99, de 26.10, na interpretação de que não permite aos terceiros deduzir embargos nos 30 dias seguintes ao respectivo conhecimento da ofensa, mas apenas nos 30 dias que se seguem a essa ofensa, independentemente da data do seu conhecimento', norma essa 'cuja aplicação foi recusada por entendida como desconforme com a Constituição da República Portuguesa na decisão recorrida, por violadora dos princípios da proporcionalidade, da igualdade e do acesso aos tribunais'. Nessa sentença foram julgados 'procedentes, por provados' os embargos de terceiro deduzidos pela ora recorrida 'L..., S.A.', sociedade com sede em Lisboa, e ordenado, consequentemente, 'o levantamento da penhora sobre os bens a que os mesmos dizem respeito', aderindo-se nela à 'solução que permita aos terceiros ainda deduzir embargos contra um acto ofensivo da sua posse ou direito mesmo no prazo de 30 dias a contar do respectivo conhecimento superveniente e não só da data da ofensa' ('A não se tratar de lapso legislativo, recusa-se, pois, 'hic et nunc', a aplicação do citado artigo 237º, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário na interpretação de que não permite aos terceiros deduzir embargos nos 30 dias seguintes ao respectivo conhecimento da ofensa, embora se aceite que tão só o possam fazer até à venda dos bens' - é a afirmação essencial da sentença). O Mmº Juiz a quo, depois de considerar aquela solução como 'a solução mais equilibrada dos interesses em jogo (os da entidade exequente e os dos terceiros) e a mais justa (repare-se quão injusto é para um terceiro que vê atacados os seus bens não poder deduzir embargos a seguir ao conhecimento do ataque, ele que, justamente por ser terceiro, nenhuma possibilidade prática tem de saber da existência em 30 dias de uma penhora ou de um arresto - e não é a mesma coisa não poder deduzir embargos depois da venda, pois que neste caso há anúncios, editais à porta do prédio, em suma, mais publicidade e, portanto, possibilidade do terceiro saber do ataque que foi feito aos seus bens; nos 30 dias a seguir ao arresto ou à penhora não há praticamente publicidade nenhuma que alerte as pessoas, 'maxime' quando estas residem noutro local, como tantas vezes acontece), acrescenta a seguir:
'Para além de que - 'last, but not least' - se apresenta a interpretação que vem defendida pela Representação da Fazenda Pública e pelo Digno Magistrado do Ministério Público, salva melhor opinião, desconforme com a Constituição da República Portuguesa e, por isso, totalmente inaplicável a quaisquer casos concretos (vidé o seu artigo 204º). Com efeito, sairia desde logo violado o princípio da proporcionalidade das soluções legislativas que devem ser encontradas (seria um sacrifício desproporcionado imposto aos terceiros relativamente aos interesses da entidade exequente que se pretenderiam salvaguardar), o próprio princípio do acesso aos Tribunais (ínsito no seu artigo
20º, nº 1 ), e até o princípio da igualdade (previsto no artigo 13º), pois que não pode deixar de considerar-se a solução contida na norma em causa como completamente arbitrária e discricionária, encontrando o legislador um regime jurídico diferente no processo de execução fiscal para situações exacta e essencialmente iguais às que se encontram no processo de execução civil, sem se vislumbrarem quaisquer razões materiais ou racionais para tal diferenciação'.
2. Nas suas alegações conclui assim o Ministério Público recorrente:
'1º - É inconstitucional, por violação dos princípios do acesso ao direito, da igualdade e do Estado de direito democrático a interpretação normativa do nº 1 do artigo 237º do Código Procedimento e de Processo Tributário que se traduz em denegar – em sede de tempestividade dos embargos de terceiro - qualquer relevância à ‘superveniência subjectiva’, decorrente de o embargante só ter tido
(sem culpa) conhecimento da realização da penhora para além do prazo 'normal' da respectiva dedução, contado da realização 'objectiva' da penhora.
2º - Na verdade, tal interpretação, para além de obstar a que o titular do direito lesado com a penhora possa efectivá-lo em juízo, implica que sejam judicialmente vendidos bens que já se sabe que provavelmente não pertencem ao executado e não deviam ter sido penhorados na execução, criando para o terceiro
– proprietário o ónus de propor acção de reivindicação destinada a destruir a dita venda, abalando a legítima confiança de terceiro adquirente na estabilidade e validade da venda judicial.
3º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
3. A sociedade recorrida não apresentou alegações.
4. Tudo visto cumpre decidir. Na sentença recorrida vem enunciada a situação a que se reportam os autos nestes termos:
'Ora, nos termos do artigo 237º, nº 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-lei nº 433/99, de 26 de Outubro - e este diploma tem aplicação ao presente caso, pois foram os autos instaurados depois do dia 01 de Janeiro de 2000 (vidé o artigo 4º desse Decreto-lei) -, quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro. Por seu turno, o prazo da respectiva dedução é de trinta dias ‘contados desde o dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos’ (vidé o citado artigo 237º, mas nº 3). No caso ‘sub judice’ não foram ainda vendidos os bens penhorados, tendo o recebimento dos embargos suspendido a execução quanto aos mesmos, nos termos do artigo 356º do Código de Processo Civil, aplicável ‘ex vi’ do artº 2º, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário. A penhora data de 25 de Outubro de 1999 e os embargos foram deduzidos tão só em
05 de Junho de 2000. Porém, pese embora tenham decorrido mais de 30 dias entre um facto e outro, vem a embargante invocar o conhecimento superveniente da ofensa (‘a penhora dos bens agora em causa foi feita na ausência da sua proprietária, a qual só agora tomou conhecimento da mesma'), pelo que não podemos deixar de considerar que os embargos foram instaurados em tempo. E se as coisas se não passaram assim (isto é, se a embargante soube da penhora mais cedo), competia então à Fazenda Pública, enquanto embargada, dizê-lo, contestando isso, e provando que a embargante teve conhecimento da existência da penhora em data anterior àquela em que deduziu os embargos. Com efeito, segundo o artigo 343º, nº 2 do Código Civil, nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova de o prazo ter já decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei. Como não temos conhecimento de qualquer outra solução especialmente consignada na lei para o caso dos embargos de terceiro, temos por assente caber à Representação da Fazenda Pública o ónus da prova do decurso do citado prazo. Esta nada disse sobre isso; os embargos são tempestivos'. Desde já dir-se-á que a razão está do lado do Ministério Público recorrente, não merecendo censura o decidido na sentença recorrida, quanto à questão jurídico-constitucional que vem posta e acima referenciada. Na verdade, e à luz do Código de Processo Civil, para o mesmo tipo de oposição em processo executivo que é a oposição mediante embargos de terceiros, o nº 2 do artigo 353º estabelece o prazo de '30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa', dando, assim, relevo à 'superveniência subjectiva', ou seja o conhecimento para além daquele prazo da lesão ou agressão do direito invocado pelo embargante (o que este tem de alegar, cabendo à contraparte contrariar tal alegação). Diferentemente, de modo, aliás, incompreensível, a norma ora questionada, ao arrepio do Código anteriormente aplicado, manda contar o mesmo prazo de 30 dias só do 'dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito', eliminando o conhecimento superveniente desse acto ofensivo (e a mesma solução foi mantida com a Lei nº 15/2001, de 5 de Junho).
'Então, como entender – pergunta o Mmº Juiz a quo - a interpretação agora propugnada nos autos se o Código de Procedimento e de Processo Tributário teve a intenção expressa de se harmonizar com as soluções do Código de Processo Civil
(vidé o seu preâmbulo, que é sempre uma preciosa ajuda à interpretação das suas soluções:
‘A reforma do Código de Processo Civil efectuada pelos Decretos-Leis nºs
329A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro, impõe também a harmonização com as suas disposições’; ou ‘O processo tributário é processo especial, mas a evolução do processo civil não podia deixar de reflectir-se na evolução do processo tributário')?' Não se vê resposta para a pergunta, sendo certo que, sendo o embargante terceiro em relação à penhora e, por isso, não sendo naturalmente notificado da sua realização, constituiria solução anómala a que lhe precludisse a efectivação dos seus direitos, aqui, o direito de propriedade sobre bens erroneamente penhorados e que o foram na suposição de que pertenceriam ao executado.
'Vistas as coisas – como diz o Ministério Público - nesta perspectiva, constituiria clara violação do princípio constitucional da proibição da indefesa a solução legal que se traduzisse em denegar ao pretenso titular do direito – incompatível com a subsistência da penhora realizada no confronto do executado – de oportunidade processual para, no âmbito da execução, o efectivar, sempre que
– sem culpa da sua parte – só houvesse tomado conhecimento da ilegítima realização da penhora para além dos 30 dias subsequentes à data da sua efectivação. Como é manifesto e inquestionável, as especificidades do processo tributário – e a reforçada tutela das entidades públicas credoras – não pode funcionar como título legitimador da ofensa do princípio constitucional do acesso ao direito, em termos de resultar denegada oportunidade processual para os titulares de direitos afrontados com uma penhora ilegal os poderem fazer valer em juízo'
(cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/98, nos Acórdãos, 40º vol., pg. 275). Tanto basta para concluir por um juízo de inconstitucionalidade, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição.
5. Termos em que DECIDINDO, julga-se inconstitucional, por violação do artigo
20º da Constituição, o artigo 237º, nºs 1 e 3, do Código de Procedimento e Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro, interpretado como determinando o início da contagem do prazo para dedução de embargos de terceiro da data de realização da penhora, arresto ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, mesmo nos casos em que o terceiro só toma conhecimento do acto ofensivo da posse ou direito, subsequentemente à realização deste, depois de realizada a penhora, mas antes da venda do bem, negando-se, por consequência, provimento ao recurso. Lisboa, 24 de Outubro de 2001 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa