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Processo 313/2013
3ª Secção
Relator Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente recurso em que é recorrente A. e recorridos B., C., D., E., F., G., H., I. e J. o relator proferiu a seguinte decisão sumária:
«1. O presente recurso vem interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/1/2013, mediante requerimento do seguinte teor:
Nos presentes autos, em sede de Recurso de Revista, o Supremo Tribunal de Justiça produziu o acórdão, aliás, douto, datado de 10/01/2013, notificado às partes em 15/01/2013.
Por requerimento remetido aos autos via correio em 28-01-2013, a recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 666.º do Código de Processo Civil, requereu a aclaração do referido acórdão.
Para o efeito, a recorrente solicitou esclarecimento para a seguinte dúvida que se transcreve:
“Qual foi o título aquisitivo que permitiu reconhecer aos A.A., a aquisição do direito de propriedade sob a sala em litígio”.
Continuou a recorrente referindo:09
“É que, não havendo prova de que a sala em litígio tenha integrado a propriedade dos A.A., pelos meios formais admitidos por lei.
“Salvo o devido respeito, podemos estar perante a violação entre outros, do preceito constitucional que garante o direito à propriedade privada e á sua transmissão em vida ou por morte, nos termos constitucionais.
Em resposta, disse o Supremo Tribunal de Justiça:
“O Acórdão é bem explícito quanto aos seus fundamentos, não sofrendo de qualquer dúvida suscetível de ser esclarecida…..”
Mais referindo aquele Tribunal, que o reconhecimento do direito de propriedade sobre a identificada sala encontra o seu fundamento da factualidade provada, nomeadamente, nos factos referenciados sob os nºs 38 e 39.
Ora, dos factos referenciados sob os nºs 38 e 39 extrai-se o seguinte:
“38 - No 1º andar sempre existiu una sala de estar, da qual, após a desanexação fez parte integrante do mesmo, exercendo os antecessores dos A.A., os A.A. e a sua tia através do arrendamento, a sua posse.”
“39 – Tal sala passou a fazer parte integrante do 1º andar após a desanexação dos prédios e por acordo entre os proprietários da altura, antecessores dos A.A. s da Ré”
Aqui chegados, importa dizer o seguinte:
Dúvidas não restam, que o que se evidencia do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, é que a sala em litígio passou a ser propriedade dos A.A., por força de um acordo celebrado entre os antecessores dos A.A., e da Ré, ao que se presume, um acordo verbal.
Não basta que o Tribunal venha referir que a factualidade provada acima descrita foi conseguida pelos A.A. (cfr. art. 342º nº 1 do C. Civil).
Desde logo, a forma verbal no é o meio próprio para operar a transferência de propriedade de imóveis.
Ponto é que, não consta dos autos, nem foi referido por nenhuma das instâncias a existência de documento que corporize a transmissão da propriedade dos antecessores da R. para os antecessores dos A.A., e não foi referido por nenhuma testemunha o conhecimento da existência de tal acordo.
É jurisprudência pacífica entre nós, que os factos cuja demonstração apenas possa ser efetuada através de documento, não possa ser efetuada por testemunha.
E mais, estes factos, todavia, quando levados á p.i., a resposta que conhecerão deve ser dada por não escrita.
É aliás de salientar, que os A.A., fizeram constar e ficou bem claro nos autos, que a saia em litígio não foi adquirida por usucapião.
Acresce referir que, em sede de esclarecimento do Acórdão proferido pela 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, foi invocada a violação da norma constitucional que garante o direito à propriedade privada e á sua transmissão em vida ou por morte nos termos constitucionais, norma essa, que encontra a sua expressão no nº 1 do artigo 62º da Constituição da Republica Portuguesa.
A garantia constitucional da propriedade tem primariamente em vista a relação do Estado com os membros da ordem jurídica e tem por objetivo salvaguardar não só a existência, mas o seu respeito pelos Órgãos do Estado e da Administração Pública em Geral.
Significando assim, que a atividade Legislativa e Administrativa deve ser exercida de modo a não por em causa a propriedade de alguém, ficando deste modo assegurada a propriedade de Direito Civil
Do que resulta, que o Acórdão proferido pela 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, violou entre outros, os artigos 294º; 874º 875º todos do Código Civil; al. a), do artigo 89º do Código do Notariado e nº 1 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
2. O recurso foi admitido no tribunal a quo, mas não pode prosseguir, o que imediatamente se decide, ao abrigo do n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC.
2.1. Em primeiro lugar, porque o recurso não tem por objeto a apreciação da constitucionalidade de uma norma de que o acórdão recorrido tenha feito aplicação. Com efeito, a violação de normas e princípios constitucionais que os recorrentes querem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional é diretamente imputada ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Foi este acórdão que violou, segundo o requerimento de interposição do recurso, a par de normas do Código Civil e do Código do Notariado, a garantia constitucional da propriedade.
Ora, como resulta da Constituição (art.º 280.º da CRP) e da Lei (art.º 70.º da LTC), o controlo de constitucionalidade que é cometido ao Tribunal Constitucional tem “natureza normativa”, isto é, só diz respeito a normas jurídicas de que a decisão recorrida faça aplicação (ou, se for o caso, a que recuse aplicação com fundamento em inconstitucionalidade).
2.2. Em segundo lugar, os recorrentes não suscitaram perante o Supremo Tribunal de Justiça qualquer questão de constitucionalidade, como exigem as disposições conjugadas da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º e do n.º 2 do art.º 72.º da LTC.
Não cumpriram esse ónus adequadamente quanto ao modo e quanto ao tempo. Não é modo adequado de suscitar uma questão de constitucionalidade normativa afirmar que “podemos estar perante a violação entre outros do preceito constitucional que garante o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos temos constitucionais”. Desde logo porque não se identifica aí a norma precisamente determinada a que se imputa essa violação da Constituição. E também não há suscitação adequada quanto ao tempo, ou momento ou fase processual, porque a questão de constitucionalidade teria de ser colocada ao Supremo Tribunal de Justiça antes de esgotado o seu poder jurisdicional relativamente à aplicação da norma em causa. Para tanto já não é idóneo um pedido de esclarecimento.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 Ucs»
2. Os recorrentes reclamaram para a conferência mediante requerimento do seguinte teor:
a) “Ora, como resulta da constituição (artigo 280º da CRP) e da Lei (70º da LTC), o controlo de constitucionalidade que é cometido ao Tribunal Constitucional tem “natureza normativa”, isto é, só diz respeito a normas jurídicas de que a decisão recorrida faça aplicação (ou, se for o caso, a que recuse aplicação com fundamento em constitucionalidade)”.
b) Em segundo lugar, os Recorrentes não suscitaram perante o Supremo Tribunal de Justiça qualquer questão de constitucionalidade, como exigem as disposições conjugadas da al. b) do nº 1 do artigo 70º e do nº 2 do artigo 72º da LTC)
Não cumpriram esse ónus quanto ao modo e ao tempo. Não é modo adequado de suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, afirmar que podemos estar perante a violação entre outros do preceito constitucional que garante o direito à propriedade privada e á sua transmissão em vida ou por morte em termos constitucionais.”
Com o devido respeito, a Recorrente não se conforma com a decisão, aliás, douta, que conduziu ao indeferimento do recurso interposto perante o Tribunal Constitucional.
Na verdade, a questão da inconstitucionalidade alegada perante o Supremo Tribunal de Justiça, ocorreu ao abrigo do disposto no artigo 666º do Código de Processo Civil e em sede de esclarecimento do Acórdão proferido por aquele Tribunal.
Porém, não obstante isso, não se pode afirmar que naquela fase processual, não foi cumprido o modo e o tempo, quanto á alegada questão de inconstitucionalidade.
Senão vejamos:
Nos termos do nº 2 do artigo 66º do Código de Processo Civil, após ter sido proferida a decisão, o juiz pode rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes e reformar a sentença nos termos dos artigos seguintes.
Assim sendo, importa então referir o seguinte:
Na redacção da al. a), do nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil, o pedido de esclarecimento da sentença, pode incidir, não apenas sobre a decisão propriamente dita, mas também, sobre os respectivos fundamentos.
Em bom rigor, o nº 2 do artigo 669º referido, permite a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração.
Trata-se pois, da reapreciação do mérito, própria de um recurso, sendo este o lugar próprio para a sua inovação, porquanto, nos processos não passíveis de recurso ordinário, como de resto é o caso, é esta a única forma de reagir contra uma decisão injusta ou ilegal.
De facto, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a que estes autos se reportam, não era passível de qualquer recurso ordinário, logo, o disposto no número 1 al. a) e nº 2 alíneas a) e b) do artigo 669º do Código de Processo Civil, permite ao Tribunal que proferiu a decisão, nomeadamente, esclarecer alguma obscuridade ou ambiguidade e até mesmo, reformar a sentença em causa.
Importa então referir, que a dúvida suscitada e cujo esclarecimento se requereu ao S.T.J. foi a de saber, afinal, a que título haviam os A.A. adquirido a sala em litígio, já que, dos autos não constava e nem sequer foi invocado e logo não discutido em sede de audiência de julgamento, qual o título formal que permitiu tal aquisição.
Nunca é demais referir, que, os A.A., afastaram livre e espontaneamente, que a aquisição da dita não foi por usucapião, mas sim, por contrato entre os antecessores dos A.A. e dos R.R.
Assim, o que resulta dos autos, é que a aquisição da sala em litígio por parte dos A.A., é sustentada num alegado acordo celebrado entre os antecessores dos A.A. e dos R.R., sucessores esses, que não foram sequer identificados, quer quanto às pessoas em concreto, nem quanto ao grau de parentesco com as partes.
Resulta assim que, quando o acórdão do S.T.J, refere, que atenta a factualidade provada foi conseguido pelos A.A., o desiderato de provar que a sala em litígio lhes pertence, ao abrigo do disposto no artigo 342º nº 1 do Código Civil).
Em nosso entender, o S.T.J., vem dar cobertura legal á transmissão de uma fracção de um imóvel baseada num eventual acordo, ao que se presume verbal, logo destituída de qualquer título formal e por via disso, em violação da norma constitucional artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
Em resposta ao pedido de esclarecimento que lhe foi solicitado sobre a constitucionalidade ou não, da sua decisão, o S.T.J., disse: “o Acórdão é bem explícito quanto aos seus fundamentos, não sofrendo de qualquer dúvida susceptível de ser esclarecida …”
E, em abono da verdade se diga, que, a resposta ao esclarecimento requerido, o Supremo Tribunal de Justiça não invocou qualquer impedimento jurisdicional quer quanto ao pedido de esclarecimento que lhe foi formulado quer sobre da invocada inconstitucionalidade da sua decisão.
O S.T.J. não referiu, que naquela fase processual não podia conhecer da invocada constitucionalidade, e, já que a inconstitucionalidade foi invocada, o S.T.J. tinha que se pronunciar sobre a mesma.
O artigo 202º da Constituição da República Portuguesa atribui aos Tribunais o seguinte princípio:
Nº 2 - Na administração da justiça, incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos…
E, tendo sido invocado perante o S.T.J, uma questão de inconstitucionalidade, aquele Tribunal tinha que se pronunciar sobre a questão em concreto, o que não fez.
Resulta assim, que a manter-se o acórdão do S.T.J., a partir do momento do seu trânsito em julgado, jamais qualquer Tribunal pode deixar de reconhecer que um qualquer eventual acordo, cujo teor não se conhece, é título suficiente para se adquirir o direito de propriedade sobre uma fracção de um prédio urbano.
Ainda sobre a questão á exigência das disposições conjugadas da al. b) do nº 1 do artigo 70º e do nº 2 do artigo 72º da LTC), veja-se o seguinte Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional nº 486/00 de 22.11.2000, em cujo sumário se refere o seguinte:
“Ao Tribunal Constitucional apenas compete apreciar a conformidade à constituição da dimensão normativa que subjaz à decisão recorrida, segundo a qual a arguição de nulidades da sentença não pode ter lugar depois de ter sido requerida e decidida a sua aclaração.
No que se refere à questão da constitucionalidade em apreciação o legislador terá sempre de respeitar a dimensão da garantia do acesso ao direito e aos tribunais que se traduz em assegurar às partes uma completa percepção do conteúdo das sentenças judiciais e em assegurar a possibilidade de reacção contra determinados vícios da decisão. O legislador terá, pois, de consagrar na legislação processual mecanismos que viabilizem, de modo eficaz, a persecução de tais finalidades exprimindo o regime em vigor, nos seus traços essenciais, um modo de concretização da garantia constitucional não pode, nessa medida, ser por via interpretativa restringido ou truncado naqueles aspectos que materializam o exercício do direito constitucional garantido. A limitação da utilização dos meios processuais em causa (maxime, da arguição de nulidades), quando a parte observa o condicionalismo legal, (nomeadamente no que respeita a prazos), atentará, pois, contra o direito de acesso aos Tribunais constitucionalmente consagrado, se tal limitação não se fundar num outro valor ou principio com dignidade constitucional”.
No caso em apreço, a questão da invocada constitucionalidade e consequentemente, a verificar-se esta, conduz à nulidade do acórdão proferido pelo STJ, sendo que essa nulidade, foi suscitada e teve lugar, não depois de requerida a aclaração, mas sim, no momento em que a aclaração da sentença foi requerida.
3. A decisão reclamada comporta dois fundamentos, cada um deles suscetível, de justificar a decisão de não conhecimento do objeto do recurso. O primeiro consiste na inidoneidade do objeto, uma vez que a censura de inconstitucionalidade proposta pelo recorrente incide diretamente sobre a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em si mesma considerada, não sobre norma ou normas determinadas de que esse acórdão tenha feito aplicação e relativamente às quais se sustente violarem normas ou princípios constitucionais.
Ora, esse fundamento da decisão do relator, sobre o qual nada dizem os recorrentes, merece confirmação. Aliás, os termos da reclamação agora apresentada não trazem senão a confirmação da interpretação que a “decisão sumária” fez do requerimento de interposição do recurso. Os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie o acerto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça quanto ao modo ou ao título de aquisição da propriedade por parte dos ora recorridos, numa espécie de “super-revisão” das decisões dos demais tribunais que não corresponde à tarefa constitucionalmente consignada ao Tribunal e ao modelo de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade consagrado no nosso sistema jurídico (cfr. art. 280.ºda CRP e art. 70.º da LTC).
Assim, perante a evidência da inidoneidade do objeto do recurso, a improcedência da reclamação é manifesta, tornando inútil a apreciação da argumentação dos recorrentes quanto ao segundo fundamento.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar os recorrentes nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lx. 19/6/2013. – Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.