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Processo n.º 515/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e c), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) No presente caso, o recorrente não enuncia, no requerimento de interposição de recurso, o específico sentido interpretativo, cuja sindicância pretende, limitando-se a mencionar que tal sentido se reporta “aos artigos 50º e seg do CPP”.
Incumbindo ao recorrente a clara especificação do critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, e das disposições legais de que o mesmo é extraível, conclui-se que não se encontra cumprida qualquer uma das componentes de tal dúplice exigência, uma vez que o recorrente, além de não enunciar o critério normativo, igualmente não indica os concretos preceitos em que o mesmo presumivelmente assenta, limitando-se a especificar o artigo 50.º do Código de Processo Penal e a adicionar a menção indeterminada aos artigos seguintes, sem qualquer outra delimitação.
Incumpre o recorrente, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º A da LTC.
Tal incumprimento não é, por natureza, abstratamente insuprível.
Porém, em obediência aos princípios de economia e celeridade processuais, não é equacionável, in casu, facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º A da LTC, porquanto, ainda que o mesmo aperfeiçoasse, de forma satisfatória, o requerimento de interposição de recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, por falta de pressupostos de admissibilidade do recurso, como melhor analisaremos.
(…) Acresce que, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo 75.º A da LTC, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve indicar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º, ao abrigo da qual o recurso é interposto.
Não obstante o recorrente mencionar, além da alínea b), igualmente a alínea c), não se vislumbra que a respetiva previsão normativa tenha qualquer relação com a concreta situação dos autos. Na verdade, é manifesto que o recurso não se baseia em qualquer recusa de aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento em violação de lei com valor reforçado.
Resta-nos, pois, a apreciação do presente recurso, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Comecemos por analisar este último pressuposto, que se consubstancia na exigência de que o recorrente coloque a questão de constitucionalidade, que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Torna-se indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No presente caso, não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma – hipótese que se encontra afastada, desde logo pela circunstância de o recorrente assumir que suscitou previamente a questão “nas alegações e conclusões de recurso” remetidas ao Tribunal da Relação - deduz-se que a admissibilidade do presente recurso está dependente da circunstância de o recorrente ter problematizado, perante o tribunal a quo, a constitucionalidade de um critério normativo, que, sendo extraível de um bloco normativo que integre o artigo 50.º do Código de Processo Penal, tenha sido adotado como ratio decidendi pela decisão recorrida.
Ora, analisada a motivação do recurso interposto da sentença condenatória da 1.ª Instância e mesmo a peça apresentada, nos termos do artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal, – momentos processuais em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – conclui-se que, em nenhum momento, o recorrente antecipa e enuncia qualquer questão de constitucionalidade de natureza normativa, reportada a qualquer bloco normativo que integre o artigo 50.º do Código de Processo Penal.
Na verdade, na referida motivação do recurso, o recorrente assaca a desconformidade com a Lei Fundamental à própria decisão jurisdicional, concluindo pela violação concomitante de preceitos constitucionais e infraconstitucionais.
Desta forma, não tendo o recorrente suscitado, previamente, perante o tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade reportada a um critério normativo – enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – sempre estaria definitivamente prejudicada a admissibilidade de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, ainda que, no respetivo requerimento de interposição, o recorrente tivesse enunciado, de forma adequada e certeira, um verdadeiro critério normativo que, tendo sido utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida, pudesse constituir objeto admissível do recurso de constitucionalidade, circunstância que, em todo o caso – como já referimos – não se verificou.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta o reclamante a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, desde logo quando na mesma se refere que “o recurso não se baseia em qualquer recusa de aplicação de norma constante de ato legislativo”.
Quanto a este aspeto, defende o reclamante que não foi aplicada nos autos a norma constante do artigo 50.º do Código Penal, não obstante ter vindo a pugnar por tal aplicação desde a interposição do recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Conclui, deste modo, que a referida circunstância coloca em causa os artigos 18.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
No tocante à discordância relativa à parte da decisão sumária que se refere à alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, diz o reclamante que “o que está em causa no presente recurso vai muito além da “Interpretação Normativa”, reiterando que a questão fulcral se centra na “não aplicação, no caso concreto, de norma consagradora do Direito à Liberdade, como é o caso do artigo 50º do Código Penal”.
Mais afirma que “a questão da violação, por não aplicação, do artigo 50.º do CP, foi enunciada pelo recorrente no seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto (…) não podendo o recorrente antecipar mais a questão da constitucionalidade no recurso, por não poder prever o resultado do mesmo”.
Argumenta o reclamante que a decisão condenatória da 1.ª Instância “não conseguiu justificar” a não suspensão da execução da pena de prisão, ao presente caso, igualmente não o tendo feito, de forma suficiente, o Tribunal da Relação do Porto.
Acrescenta que “o objeto do recurso de constitucionalidade é, portanto, descritível como a interpretação do artigo 50º do Código Penal, que considera não justificada ou manifestamente ilegal, ipso facto, a não suspensão da pena de prisão efetiva do ora reclamante”, concluindo, desta forma, que o recurso interposto é admissível.
4. O Ministério Público, notificado da reclamação, manifesta a sua concordância com a decisão reclamada.
Em síntese, refere que, na reclamação apresentada, o “reclamante (…) acaba por reconhecer que quer colocar, fundamentalmente, em causa a decisão condenatória, e não enunciar uma qualquer questão de constitucionalidade normativa”.
Acrescenta que o arguido contesta a atividade subsuntiva do tribunal, que redundou na conclusão de não verificação, no caso concreto, dos pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º do Código Penal. Tal atividade encontra-se, porém, subtraída à apreciação do Tribunal Constitucional.
Nestes termos, conclui pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida, consubstanciando-se sobretudo numa manifestação de discordância face ao sentido de tal decisão.
Na verdade, a reclamação parte de um aparente equívoco do reclamante quanto à natureza do controlo de constitucionalidade a que procede o Tribunal Constitucional.
De facto, por um lado, cumpre salientar que a recusa de aplicação de norma constante de ato legislativo, a que se reporta a alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, corresponde a um afastamento de aplicação da norma, “com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado”, o que manifestamente não ocorreu no caso.
Por outro lado, a correção do juízo subsuntivo que concluiu pela não verificação, in casu, dos pressupostos de aplicação da pena de substituição prevista no artigo 50.º do Código Penal não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, quer à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC quer de qualquer outra das alíneas do mesmo preceito.
Nestes termos, para que o recurso de constitucionalidade fosse admissível, deveria o reclamante ter suscitado, previamente, perante o tribunal a quo, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa reportada ao artigo 50.º do Código Penal, o que não sucedeu como resulta claramente explicitado na decisão sumária reclamada.
Pelo exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 2 de setembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de outubro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.