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Processo n.º 793/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos, então, se os aludidos requisitos se encontram preenchidos in casu.
(…) O recorrente identifica a decisão recorrida como correspondendo à decisão que indeferiu a reclamação, deduzida nos termos do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “no que toca à não admissão do recurso”.
A referida decisão do Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 9 de agosto de 2013, refere, em síntese, o seguinte:
“(…) A reclamação prevista no art. 405.º do CPP apenas pode ter como objeto o despacho que não admitiu ou reteve o recurso, pelo que não cabe conhecer da parte da reclamação em que se discute o acórdão de que se pretende recorrer.
(…) No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, o art. 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do art. 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo”.
(…)
O acórdão em causa, rejeitando o recurso por extemporaneidade, não se pronunciou sobre o mérito da causa e não conheceu e muito menos a final, do objeto do processo.
(…)
O recurso não é, assim, admissível (artigos 432º, alínea b), e 400º, n.º 1, alínea c), do CPP.
E, pelos mesmos motivos, também o recurso não era admissível, ao abrigo da redação anterior do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, pelo que não há que conhecer da questão da aplicação da lei no tempo, uma vez que o fundamento de irrecorribilidade é semelhante em ambos os regimes.
Com efeito, ao abrigo da redação anterior da referida norma também o recurso não era admissível, porquanto o referido acórdão não pôs termo à causa.
(…)
Verifica-se, através dos elementos do processo que ao reclamante não foi concedida a possibilidade de exercer o contraditório prévio quanto à questão da intempestividade do recurso.
O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 107/2012, de 6 de março de 2012, decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ do Acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão».
Deste modo, a norma da alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP foi objeto de julgamento de inconstitucionalidade na dimensão normativa em que não permite o exercício do «contraditório prévio» relativamente à decisão de rejeição do recurso.
(…) Há, assim, na circunstância, que interpretar a alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP conforme a Constituição, isto é, com a dimensão normativa que tenha implícita a possibilidade do exercício do contraditório prévio nos casos em que o recurso, admitido na 1.ª instância, foi rejeitado na Relação por intempestividade.
Porém, no âmbito dos poderes de cognição do art. 405.º, do CPP não cabe tirar consequências diretas da interpretação conforme à Constituição que se alinha com a jurisprudência do TC, uma vez que a dimensão normativa conforme a Constituição não tem o alcance de determinar a recorribilidade da decisão para o STJ, mas apenas, simplesmente, permitir que o recorrente exerça o contraditório antes da decisão de rejeição.
Mas, sendo assim, o reclamante deveria ter recorrido para o TC da decisão de rejeição do recurso pela Relação.
É que, mesmo interpretando a norma da alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP de acordo com a Constituição, e na dimensão normativa segundo o julgamento do TC, não cabe nos poderes de cognição previstos pelo art. 405.º do CPP, relativos exclusivamente à admissibilidade ou não do recurso, a pronúncia sobre a dimensão constitucional da omissão do contraditório prévio em relação à decisão de rejeição na Relação do recurso da 1.ª instância.
(…) Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.”
(…) Da análise da referida decisão resulta que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça não foi admitido, ao abrigo do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, disposições de cuja conjugação resulta que são irrecorríveis, para o Supremo Tribunal de Justiça, os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.
Inconformado com tal decisão, o recorrente enunciou, como objeto do presente recurso, a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 107/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Sem assumirmos posição quanto à doutrina defendida no referido aresto – por tal ser desnecessário para apreciação da situação em apreço - salientamos que o mesmo apenas tem força vinculativa no âmbito do processo em que foi proferido. Por outro lado, não obstante a questão de constitucionalidade, que constituiu objeto de tal recurso, corresponder à apreciação da “norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, quando interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que considera intempestivo o recurso que fora admitido na 1ª instância”, a verdade é que o Tribunal restringiu a amplitude do juízo de inconstitucionalidade que proferiu, considerando decisivo, para a formulação de tal juízo, a circunstância de estar em causa, no processo respetivo, “o recurso interposto de decisão da primeira instância que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a 8 anos (…)”.
De facto, em tal aresto, refere-se expressamente o seguinte:
“(…) não se pode ignorar as particularidades processualmente relevantes do presente recurso, pelo que, sem risco de descaracterização da natureza necessariamente normativa da questão de constitucionalidade, é de ponderar, de um lado, a intensidade lesiva/ofensiva da decisão que, na interpretação sindicada, não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, por outro, a circunstância de o arguido não ter tido a oportunidade de apresentar as suas razões de defesa antes de a mesma ser proferida.
(…)
Ora, fazendo apelo à apreciação conciliatória dos valores antinómicos do processo penal, que a Constituição impõe, não pode admitir-se, em nome de um processo penal célere e eficaz, a insindicabilidade da decisão da relação que rejeita, por intempestivo, sem contraditório, o recurso interposto de decisão da primeira instância que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a 8 anos de prisão.
Os efeitos altamente gravosos de uma eventual decisão errada ou ilegal, quanto a tal matéria, devem ser prevenidos pela garantia, nesse caso, de um grau de recurso, sendo certo que é precisamente em razão da gravidade de uma decisão condenatória da relação que aplica ao arguido pena de prisão em medida igual ou superior a 8 anos de prisão que a lei lhe confere o direito de dela recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo-lhe, em tais casos, um triplo grau de jurisdição (artigo 400.º, n.º 1, alínea f), a contrario, do CPP).
O direito de defesa do arguido impõe, pois, que, pelo menos nos casos em que o Supremo teria competência, a final, para conhecer do mérito do recurso, se reconheça ao arguido o direito de ver por esta instância reapreciada a decisão da relação que, sem prévio contraditório, rejeitou, por intempestivo, o recurso interposto da decisão condenatória da primeira instância que foi por esta última admitido.
É que à gravidade da decisão acresce a circunstância de ao arguido não ter sido previamente facultada a possibilidade de expor as suas razões de defesa perante a instância decisória (a relação).
(…)
Por tais razões, justifica-se a formulação de um juízo de inconstitucionalidade que, embora recaindo sobre a interpretação normativa sindicada, restrinja a sua amplitude, pois que, se não merece censura constitucional a interpretação que vede a reapreciação pela mais alta instância ordinária de recurso de todo e qualquer acórdão da relação que não admita, por intempestivo, recurso para si interposto, é já de admitir a desconformidade com a Lei Fundamental quando a decisão da relação que, com esse fundamento de natureza processual, rejeita o recurso interposto de sentença que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos, operando o respetivo trânsito, sem antes lhe dar a possibilidade de se pronunciar sobre essa questão prévia.”
Conclui-se, desta forma, que a formulação do juízo de inconstitucionalidade defendido no Acórdão n.º 107/2012 se restringiu aos casos em que a decisão condenatória se reporta a uma pena de prisão igual ou superior a oito anos.
Ora, no presente caso, a decisão recorrida não utilizou, como ratio decidendi, a interpretação que o recorrente enunciou como objeto do recurso e que corresponde à interpretação julgada inconstitucional pelo referido Acórdão n.º 107/2012. Desde logo, porque não estava em causa a condenação numa pena de prisão igual ou superior a oito anos.
Na verdade, o critério normativo, extraído do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal – em conjugação com o artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma – que foi convocado, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, consubstancia-se na interpretação de que são irrecorríveis, para o Supremo Tribunal de Justiça, os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.
Perante a adoção de tal critério normativo, a decisão recorrida subsumiu o concreto acórdão da Relação, de que o recorrente pretendia interpor recurso, na categoria legal prevista no artigo 400.º, n.º1, alínea c), do Código de Processo Penal, considerando que “o acórdão em causa, rejeitando o recurso por extemporaneidade, não se pronunciou sobre o mérito da causa e não conheceu, e muito menos a final, do objeto do processo” e concluiu, em conformidade, pela sua inadmissibilidade.
Por outro lado, relativamente à circunstância de não ter sido cumprido o princípio do contraditório, extrai-se da decisão do Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que “ a dimensão normativa que tenha implícita a possibilidade do exercício do contraditório prévio nos casos em que o recurso, admitido na 1.ª instância, foi rejeitado na Relação por intempestividade,” (…) “não tem o alcance de determinar a recorribilidade da decisão para o STJ, mas apenas, simplesmente, permitir que o recorrente exerça o contraditório antes da decisão de rejeição”, pelo que “o reclamante deveria ter recorrido para o TC da decisão de rejeição do recurso pela Relação”, porquanto “não cabe nos poderes de cognição previstos pelo artigo 405.º do CPP, relativos exclusivamente à admissibilidade ou não do recurso, a pronúncia sobre a dimensão constitucional da omissão do contraditório prévio em relação à decisão de rejeição na Relação do recurso da 1.ª instância.”
Confrontado com este entendimento da decisão recorrida, que o recorrente não questionou, não veio o mesmo interpor recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação, relativamente ao entendimento que este retirou da norma quanto à necessidade de contraditório, antes optando por apenas recorrer da citada decisão do Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal e não, nomeadamente, quanto a qualquer critério normativo extraível do artigo 405.º do mesmo diploma.
Nestes termos, não nos cumpre apreciar a identificada questão da omissão do prévio contraditório, que o tribunal a quo expressamente excluiu do âmbito dos seus poderes de cognição.
Pelo exposto, reiterando que o específico critério normativo, extraído do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal – em conjugação com o artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma - convocado, como ratio decidendi pela decisão recorrida, não corresponde à interpretação enunciada como objeto do recurso, como já explicámos, concluímos que fica prejudicada a admissibilidade do mesmo.
De facto, atenta a demonstrada não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, face à natureza cumulativa dos mesmos, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e consequente não conhecimento do respetivo objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta o reclamante a sua discordância, relativamente ao não conhecimento do recurso interposto, referindo, por um lado, que a não admissão do recurso configura uma violação dos artigos 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa e, por outro lado, que não poderia ter arguido a inconstitucionalidade em momento anterior, uma vez que a mesma decorre da interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça assumiu e que não poderia ser pressuposta pelo recorrente.
Reitera o reclamante que “é inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de acórdão da relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido em 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena igual ou superior a oito anos de prisão”
Conclui, nestes termos, que tem o direito de ver apreciado o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
4. O Ministério Público, notificado da reclamação, pugna pelo seu indeferimento, referindo que o reclamante nada diz quanto ao efetivo fundamento da decisão sumária.
De facto, a decisão reclamada baseou o não conhecimento do objeto do recurso na circunstância de a dimensão normativa, aplicada como ratio decidendi pela decisão recorrida, não corresponder àquela que o recorrente enunciou, no requerimento de interposição de recurso.
Porém, a reclamação centra-se na justificação do não cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, problemática que não foi decisiva para a prolação da decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, a decisão de não conhecimento do objeto do recurso baseou-se na circunstância de o específico critério normativo, extraído do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal – em conjugação com o artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma – convocado, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, não corresponder à interpretação enunciada como objeto do recurso, no respetivo requerimento de interposição.
Relativamente a tal aspeto, o reclamante nada refere, como bem salienta o Ministério Público.
As considerações expendidas na reclamação não se dirigem a contraditar as conclusões da decisão reclamada, não se situando sequer no âmbito da discussão do pressuposto de admissibilidade de recurso, cuja não verificação foi considerada determinante para o respetivo sentido decisório.
Nestes termos, sendo certo que a decisão reclamada merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
6. Pelo exposto, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 27 de setembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de outubro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.