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Processo nº 527/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo das alíneas a), b), c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em que são recorrente M... e recorrido o Ministério Público, foi proferida, nos termos do nº 1 do artigo
78º-A deste diploma legal, decisão sumária, em 4 de Outubro último, no sentido de não se tomar conhecimento do recurso.
2. - É o seguinte o teor da referida decisão:
“1.1.- M...., identificado nos autos, constituído arguido nos autos de instrução nº 324/00 que, no Tribunal Judicial da comarca de Santa Maria da Feira, o Ministério Público lhe move e a L..., Lda., como autor de um crime de fraude fiscal, previsto e punido no artigo 23º, nº 1, nº 2, alínea a), nº 3, alíneas a), b), e) e f), e nº 4 do RJIFNA – Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras – aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, com as alterações do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro –, veio invocar a excepção da prescrição do procedimento criminal. A alegada excepção foi julgada improcedente por despacho judicial de 13 de Dezembro de 2000 (fls. 38 dos presentes autos), sob o entendimento de que tanto
à luz do Código Penal de 1982, como do texto de 1995, a prescrição não ocorreu já que se verificaram causas interruptivas. Considerou-se, então, que o crime fiscal imputado ao arguido era de execução continuada, tendo o último acto de execução ocorrido em 26 de Maio de 1994, data em que, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 118º do Código Penal de 1982, se iniciou a contagem do prazo de prescrição, que é de cinco anos. Assim, e tendo em conta que o arguido esteve preso preventivamente de 5 a 26 de Março de 1998, e que, nos termos do artigo 120º, nº 1, alínea b), e nº 2, do Código Penal de 1982, a prisão tem eficácia interruptiva do prazo prescricional, em 5 desse mês de Março interrompeu-se a prescrição e começou a correr novo prazo que ainda não terminou. Ponderando-se a aplicação do regime mais favorável ao arguido, face às alterações introduzidas no Código Penal pela revisão de 1995 (Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março), entendeu-se ainda que a prescrição também não se verificou em relação ao regime consagrado no artigo 121º, nº 1, alínea a) e b), do Código Penal revisto (de 1995), pois o procedimento criminal interrompeu-se com a constituição do arguido – que teve lugar em 5 de Março de 1998 – e com a notificação de acusação – verificada em 28 de Março de 2000 –, sendo que esta
última notificação foi ainda causa de suspensão do prazo prescricional [cfr. artigos 121º, nº 2, e 120º, nº 1, alínea b)]. O arguido interpôs recurso do assim decidido para o Tribunal da Relação do Porto, imputando à decisão vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade: aí se afirma, conclusivamente, que a “decisão recorrida violou os acórdãos do STJ nº 1/98 e 12/2000, artigos 121º do CP/95, 120º do CP/82, 2º, nº 4, do CP/95,
29º, nº 4, da CRP, 15º do Decreto-Lei nº 20-A/90”.
1.2. - O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 30 de Maio de 2001, negou provimento ao recurso. Nele se escreveu, nomeadamente:
'...verificando-se existirem causas de interrupção da prescrição em ambos os regimes, abstractamente aplicáveis, é de aplicar a lei em vigor à data da prática dos factos – cfr. artigo 2º, nº 1, do Código Penal de 82 e 95 – pelo que
é aplicável ao caso sub judice o Código Penal de 82.» Concluiu-se, assim, que o prazo de prescrição do procedimento criminal, iniciado em 26 de Maio de 1994, data da prática do último acto de execução, foi interrompido em 5 de Março de 1998, com a prisão do arguido, altura em que ainda não tinha decorrido o prazo prescricional dos cinco anos, começando, então, a correr novo prazo, que ainda não findou (cfr. artigos 120º, nº 1, alínea b), e nº 2, do Código Penal de 1982.
1.3.-Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional do assim decidido, o que faz ao abrigo do disposto nas alíneas a), b), c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, visando, por esse meio, a apreciação das questões de ilegalidade e de inconstitucionalidade descritas,
“designadamente a da recusa de aplicação do artigo 121º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal de 1985”.
2. - Não obstante não se encontrarem adequadamente delineadas as questões de inconstitucionalidade e de ilegalidade suscitadas, não se justifica o recurso ao convite previsto no nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, uma vez que são proibidos os actos processuais inúteis.
É que, na verdade, crê-se ser de proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A deste diploma legal, uma vez que, por manifesta falta de pressupostos legais, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
3.1. - Recurso com fundamento na alínea a) do nº 1 do artigo 70º. Defende o recorrente que o acórdão recorrido recusou a aplicação das normas do artigo 121º, nº 1, alíneas a) e b), do texto de 1995 do Código Penal. No entanto, o mencionado aresto, considerando que existiam dois regimes abstractamente aplicáveis – o do Código Penal de 1982 e o do mesmo Código após a revisão operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março –, considerou que, no caso sub judice, eram aplicáveis as normas do texto de 1982, na sua original versão, mas não recusou com fundamento em inconstitucionalidade a aplicação das normas do artigo 121º, alíneas a) e b) do Código revisto.
3.2. - Recurso com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º. Se bem que o recorrente alegue ter suscitado a questão de constitucionalidade nas conclusões da motivação do recurso para a Relação, designadamente, segundo refere, nas conclusões 2ª e 12ª, não o fez em termos adequados pois limita-se a imputar vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade à própria decisão e não a qualquer aplicação ou interpretação normativa porventura feita.
3.3. - Recurso com fundamento na alínea c) do nº 1 do artigo 70º. Também se não verificam os pressupostos relativos a este tipo de recurso, pois o acórdão recorrido não recusou a aplicação das normas em causa com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Com efeito, o recorrente diz, a certo passo, que o Tribunal recorrido aplicou o Código Penal de 1982 e não o texto de 1995, recusando-se a aplicar o artigo
121º, nº 1, alíneas a) e b), do texto de 1995, como lei mais favorável “que, por isso, é uma lei com valor reforçado (sic), já que a lei do regime do Código Penal de 1982 é desvalorada, recusa que é contrária ao artigo 280º, nº 2, alíneas a) e b), da Constituição”. Assim, e sem necessidade de o Tribunal se pronunciar sequer sobre o Código Penal de 1995 como lei de valor reforçado – para efeitos do recurso interposto com base nesta alínea c) – o que o recorrente afirma é que houve recusa de aplicação de lei com valor reforçado – a versão de 1995 do Código Penal – e não que recusou aplicar esta lei por a mesma violar uma lei de valor reforçado.
3.4. - Recurso com fundamento na alínea f) do nº 1 do artigo 70º. A invocação desta alínea só teria sentido em articulação com a alínea c), ou seja, no caso de aplicação pelo Tribunal de recurso cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento em violação da lei com valor reforçado. Não é este o caso. O acórdão recorrido aplicou as normas do texto de 1982 do Código Penal e não as resultantes da revisão de 1995, em cuja recusa se pretende fundamentar o recurso. Acresce que, pelo facto de serem alegadamente mais favoráveis ao arguido as normas do texto revisto de 1995 não se caracterizam, nessa medida, como leis com valor reforçado.
3.5. - O recurso apresentado, na multiplicidade dos fundamentos invocados, não tem, na verdade, qualquer fundamento legal minimamente sustentável, por inverificação dos respectivos pressupostos de admissibilidade.
4. - Em face do exposto, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.”
4. - Do assim decidido reclama agora o recorrente, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
Em síntese, defende que o recurso de aplicação de norma de sentido mais favorável ao arguido deve ser julgada “como ilegalidade de recusa de aplicação de lei com valor reforçado”, constituindo objecto de recurso, de forma a que a decisão recorrida venha a ser substituída por outra
“que se encontre de harmonia com a decisão que se espera de declaração de ilegalidade”.
Ouvido, o magistrado competente do Ministério Público respondeu no sentido da manifesta improcedência da reclamação, já que a argumentação desenvolvida, olvidando o carácter normativo do controlo da constitucionalidade e a existência de pressupostos específicos para cada tipo de recurso de fiscalização concreta e os ónus que recaiem sobre o recorrente, não logra abalar a decisão impugnada, sendo certo que não pode converter-se o recurso de constitucionalidade em novo grau de jurisdição quanto às questões de direito infraconstitucional dirimidas pelos tribunais judiciais.
Cumpre decidir.
4. - O objecto do recurso de constitucionalidade mereceu reparo pela sua delimitação não adequada, o que se considerou ser inultrapassável dada a manifesta falta de pressupostos relativamente a qualquer dos fundamentos de recurso invocados.
Depreende-se da reclamação apresentada uma implícita aceitação do decidido, salvo no que respeita à alínea c) do nº 1 do citado artigo 70º - e, porventura, se bem se entende, uma reflexa implicação no tocante
à alínea a) do mesmo nº 1.
É, na verdade, o que transparece do seguinte parágrafo, da reclamação:
“Invocou-se, na alegação de recurso para o Tribunal donde se recorre e no requerimento de recurso para o TC, que aquele Tribunal aplicou uma norma que não
é a mais favorável ao ora reclamante. Melhor esclarecendo: aquele Tribunal aplicou o artigo 121º, nº 1, b), do Código Penal de 1982 e recusou-se a aplicar o artigo 121º, nº 1, a) e b) do Código Penal de 1995, segundo o qual a prescrição interrompe-se com a constituição do ora reclamante como arguido.”
Ora, diz-se, na decisão sumária entendeu-se que a lei mais favorável ao arguido não é uma lei com valor reforçado, o que se discorda.
Consoante aí se afirma, se um decreto-lei é ilegal por não respeitar os limites de uma autorização legislativa, por maioria de razão,
“a recusa da aplicação do artigo 121º, nº 1, a) e b) de 1995 – além de constituir violação do princípio da legalidade reconhecida como aplicável entre os princípios universalmente aceites por todas as nações civilizadas – enfermará do vício de ilegalidade, estará contra os princípios de desenvolvimento das bases gerais do regime jurídico-penal português (art. 115º, nº 2, CRP): como, se porventura, não fosse ilegal aplicar ao arguido a lei mais desfavorável”.
Para o reclamante, a norma do artigo 121º, nº 1, alínea a) d b), de 1985, sendo a que mais protege o arguido é (por isso) uma lei com valor reforçado.
5. - É manifesto não assistir razão ao reclamante.
Nos termos do nº 3 do artigo 112º da Constituição da República (e não do nº 2 do artigo 115º, de anacrónica convocação), têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.
Seja no quadro anterior à IV Revisão Constitucional, onde o estatuto de supraordenação de algumas leis, designadas de valor reforçado, teve por objectivo submeter a fiscalização da conformidade das outras leis com elas a um regime especial paralelo ao regime de fiscalização de constitucionalidade (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 504), seja no actual, de parametricidade mais alargada, não se vê como possa defender-se estar-se perante uma lei com valor reforçado, funcionalmente proeminente, servindo, como tal, de fundamento material da validade normativa de outras leis (cfr. acórdãos nºs. 358/92, 365/96, 1103/96 e 583/98, publicados no Diário da República, I Série-A, de 26 de Janeiro de 1993, e II Série, de 9 de Maio de 1996, 14 de Dezembro de 1996 e 30 de Março de 1999, respectivamente); à luz do texto constitucional saído da IV Revisão Constitucional, onde se pode surpreender uma lei padrão do controlo de legalidade de outras, a implicar uma relação entre dois actos legislativos em que um deles, cronologicamente anterior, tem capacidade de resistência às disposições contrárias existentes no acto legislativo posterior ( cfr. Paulo Otero, in Legislação –19/20, Abril – Dezembro de 1997, págs. 130-131), a conclusão a retirar é a mesma.
O que o recorrente defende constitui, em última análise, uma projecção de amparo, na medida em que pretende rediscutir a decisão recorrida que optou por aplicar uma versão do Código Penal que considera ser-lhe mais desfavorável. Não se encontre aqui qualquer “mais valia” normativa reforçativa de um dos textos legais em confronto com o outro.
6. - Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária oportunamente proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Obviamente, a lei que o reclamante pretende ser de valor reforçado não se quadra nessa apertada parametricidade.
Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida