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Processo n.º 87/12
Plenário
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC) do acórdão daquele Tribunal de 21 de dezembro de 2011.
2. Em 5 de dezembro de 2012, a 1.ª secção acordou em «julgar inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa)» – Acórdão n.º 591/2012.
3. Notificado deste acórdão, o Ministério Público interpôs dele recurso obrigatório para o plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, invocando que «anteriormente, pelo Acórdão n.º 424/2009, o Tribunal não julgara inconstitucional aquela interpretação normativa, que resultava da conjugação das mesmas normas do Código de Processo Penal».
4. Admitido o recurso, o Ministério Público alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1. Mesmo que se entenda que o princípio da legalidade criminal (artigo 29º, nº 1, da Constituição) se aplica em matéria de regime de recursos, a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do nº 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, não viola aquele princípio constitucional.
2. Deve, consequentemente, conceder-se provimento ao recurso interposto para o Plenário».
5. O agora recorrido não contra-alegou.
6. Concluída a discussão e tomada a decisão, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 79.º-D da LTC, cumpre agora formulá-la.
II. Fundamentação
1. Segundo o artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, se o Tribunal Constitucional vier julgar a questão da inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adotado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal.
É o que se verifica nos presentes autos. A 1.ª e a 3.ª secções julgaram em sentido divergente a questão de saber se é constitucionalmente conforme a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (Acórdãos n.ºs 591/2012 e 424/2009, respetivamente, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
As disposições legais do Código de Processo Penal (CPP) a que se reporta aquela norma têm a seguinte redação:
«Artigo 432.º
Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
(…)
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;
(…).
Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade;
(…)».
2. O artigo 399.º do CPP consagra o princípio geral de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, dispondo o artigo 400.º do mesmo Código sobre as decisões que não admitem recurso – as elencadas nesta disposição legal e nos demais casos previstos na lei. No que se refere ao duplo grau de recurso de decisões que conheçam, a final, do objeto do processo, a regra é a da recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelas relações (artigo 399.º do CPP), sendo irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos em recurso previstos nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Não obstante ter arredado a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões em primeira instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redação primitiva), tem sido propósito do legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, aos casos de maior merecimento penal (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, Projeto de Revisão do Código de Processo Penal. Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República, Ministério da Justiça, 1998, p. 27, Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, na base das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 13 de fevereiro). Num primeiro momento, o legislador fez “uso discreto do princípio da dupla conforme”, combinando-o com o critério da gravidade da pena abstrata correspondente ao crime (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d),e) e f), do CPP, na redação de 1998); num momento posterior, combinou aquele princípio com o critério da gravidade da pena aplicada (pena concreta), para restringir, ainda mais, “o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal” (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na anterior e na atual redação). O propósito passou a ser o de restringir o recurso em segundo grau aos casos de maior merecimento penal e, em geral, o de limitar o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente através da limitação constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP – recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, apenas quando apliquem pena de prisão superior a cinco anos –, por comparação com a redação anterior a 2007 das alíneas c) e e) do artigo 432.º do CPP.
A partir de 1998, a alínea e) passou a dispor que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infrações, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3; a partir de 2007, a mesma alínea passou a prever a irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade. Sem deixar de cumprir aquele propósito, a redação final da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, dada pela Lei n.º 48/2007, alargou o âmbito das decisões recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, quando comparada com a versão constante da Proposta de Lei, nos termos da qual não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que aplicassem pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos.
A razão de ser da modificação terá estado, não obstante o vazio dos trabalhos preparatórios (cf. Diário da Assembleia da República, II Série-A – Número 117, de 23 de julho de 2007, p. 28 e s.), no maior merecimento penal dos casos aos quais corresponda condenação em pena privativa da liberdade, por comparação com os que levem à condenação em pena não privativa da liberdade (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, p. 319, Miguel Ângelo Lemos, “O direito ao recurso da decisão condenatória enquanto direito constitucional e direito humano fundamental”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, III, Coimbra Editora, 2010, p. 935 e s., e Figueiredo Dias/Nuno Brandão, “Irrecorribilidade para o STJ: redução teleológica permitida ou analogia proibida? Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de fevereiro de 2009”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2010, p. 639 e ss.). Não obstante esta justificação, a Lei n.º 20/2013 alterou agora a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º no sentido de não ser admissível recurso “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos” (itálico aditado). A alteração louva-se nos desenvolvimentos jurisprudenciais do Supremo Tribunal de Justiça e na disparidade de decisões sobre a admissibilidade de recurso para esse Supremo Tribunal, com vista a eliminar dificuldades de interpretação e assintonias que conduzam a um tratamento desigual em matéria de direito ao recurso (Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII).
3. A partir das alterações introduzidas em 2007, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que não é admissível recurso em segundo grau de acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, que apliquem pena de prisão inferior a cinco anos, nomeadamente quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade. No fundo, onde se lê que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade (alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação de 2007) tem vindo a “ler-se” também que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos, considerando o artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP (sobre esta jurisprudência, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 629 e s.).
A norma que tem sido aplicada, como razão de decidir, no sentido de que é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações que aplique pena de prisão não superior a 5 anos, em recurso de decisão de primeira instância que tenha aplicado pena não privativa da liberdade, já foi apreciada por este Tribunal, que a não julgou inconstitucional face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos n.ºs 424/2009, 419/2010 e 589/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O julgamento de não inconstitucionalidade funda-se no entendimento de que o acórdão da Relação consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, tendo em conta que perante ela o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa, entroncando os fundamentos do direito ao recurso verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. Ou seja, o direito ao recurso constitucionalmente consagrado satisfaz-se, atento o seu âmbito de proteção, com a garantia de um duplo grau de jurisdição.
Com efeito, este Tribunal tem vindo a entender, de forma reiterada, que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 189/2001, 640/2004 e 645/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Entendendo, também, que, muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.ºs 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão n.º 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
4. A interpretação normativa em apreciação põe, porém, a questão de saber se a mesma se contém, ainda, no sentido possível das palavras da lei ou se, ao invés, coloca o intérprete no domínio da analogia constitucionalmente proibida. O que se enquadra no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, por estar em causa a apreciação de uma norma que é, por isso mesmo, suscetível de controlo por parte do Tribunal (assim, Acórdão n.º 183/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Ponto é que o princípio da legalidade em matéria criminal, constitucionalmente consagrado, seja extensível ao processo penal.
O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 conclui-se relativamente a este princípio constitucional, com relevo para a questão de constitucionalidade a decidir, que:
«Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional –explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).
Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
(…)
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível - uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político-criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)».
Acompanhando Figueiredo Dias, é de concluir que, constituindo o princípio da legalidade “a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo o momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas”. No sentido preciso de o recurso à analogia em processo penal estar vedado, sempre que venha a traduzir-se “num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem»” (Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, ed. policopiada, 1988-9, p. 68 e s.). Segundo o autor, “razões históricas [que remontam à Carta Constitucional de 1826, à Constituição Política de 1911 e à Constituição Política de 1933] e teleológicas dão-se pois as mãos para convencer que, quando o artigo 29.º, n.º 1 da atual CRP refere o princípio da legalidade à exigência de se não ser «sentenciado criminalmente», quer aplicá-lo tanto ao direito penal como ao direito processual penal, não obstante a limitação ao primeiro sugerida pelo restante texto legal”.
E abona neste mesmo sentido o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Poder-se-á mesmo afirmar que “perturbações essenciais do direito de defesa permitem, em última análise, uma frustração do próprio nullum crimen sine lege. Esta exigência da lei incriminadora concretiza-se no Processo Penal pela possibilidade de o agente demonstrar que não praticou o crime que lhe é imputado. Se o não puder fazer devidamente, o nullum crimen sine lege será um artefacto que permitirá atribuir responsabilidade onde em concreto possa não ter existido qualquer crime” (Fernanda Palma, “Linhas estruturais da reforma penal – Problemas de aplicação da lei processual penal no tempo”, O Direito, 2008, I, p. 20 e s.).
O processo penal só assegurará plenamente as garantias de defesa através de lei estrita que conforme a posição processual do arguido e os seus direitos processuais, nomeadamente o direito ao recurso. As garantias de defesa só estarão plenamente asseguradas se, no momento relevante para o exercício do direito ao recurso (o da notificação do acórdão condenatório em primeira instância), o destinatário da norma conhecer as condições do respetivo exercício com a segurança que o garanta contra a imprevisibilidade. E esta exigência é ainda mais evidente quando o que está em causa é o acesso a um segundo grau de recurso, num ordenamento processual penal onde a irrecorribilidade das decisões constitui uma exceção (artigos 399.º e 400.º do CPP).
5. Vai também no sentido da extensão do princípio da legalidade ao processo penal, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, a jurisprudência constitucional em matéria de aplicação da lei processual penal no tempo. O Tribunal tem entendido que o princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da CRP) não se restringe à aplicação da lei penal substantiva (entre outros, Acórdãos n.ºs 247/2009 e 551/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, e indicações doutrinais aí contidas). Como o direito ao recurso é uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido e as questões de constitucionalidade que importava apreciar tinham a ver com a sucessão no tempo de normas sobre a recorribilidade de decisões, um dos parâmetros de aferição da conformidade constitucional das normas em causa foi precisamente o artigo 29.º, n.º 4, da CRP. Há que salvaguardar o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, de onde resulta que não deve aplicar-se a nova lei processual penal num processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
6. Dispondo a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação de 2007, que “não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade” (itálico aditado), é de concluir que ultrapassa manifestamente o sentido possível das palavras da lei, saindo “fora do âmbito da interpretação”, a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade (assim, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 635 e ss. e Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2011, comentário ao artigo 400.º, ponto 14).
E não pode alargar-se o âmbito da irrecorribilidade por referência à alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º daquele Código, por a mesma ser estranha à matéria da recorribilidade das decisões, inserindo-se antes na matéria atinente à repartição de competências entre as relações e o Supremo Tribunal de Justiça, dispondo especificamente sobre esta repartição relativamente a recursos interpostos de acórdãos do tribunal do júri e do tribunal coletivo, ou seja, de decisões finais de 1.ª instância, já que quanto a recurso interpostos de acórdãos das relações estatui especificamente a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 432.º O artigo 400.º do CPP é a sede normativa própria da irrecorribilidade de decisões proferidas em segunda instância, numa previsão que constitui exceção ao princípio geral da recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, estatuído no artigo 399.º do mesmo Código.
O sentido textual da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, na redação de 2007 – não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade – “não permite de forma alguma abarcar qualquer extensão à pena de prisão efetiva, qualquer que seja a sua medida, superior ou não superior a 5 anos. Ora, quando o sentido inculcado a determinada norma legal não tem expressão, por mínima ou remota que seja, no texto normativo, a atividade judicativa correspondente sai fora do âmbito da interpretação e invade o campo da analogia”. No caso, revela-se da seguinte forma: “se não é admissível recurso direto da 1.ª Instância para o Supremo em caso de pena de prisão não superior a 5 anos então, por identidade ou até por maioria de razão, não deve ser também admissível recurso da Relação para o Supremo quando a pena de prisão não exceda os 5 anos” (Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 636 e ss.).
A norma que é objeto de apreciação cria uma exceção à regra da recorribilidade das decisões proferidas em segunda instância além das previstas no n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação de 2007. Coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas.
7. É de concluir, pois, pela inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 4 de junho de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Maria Lúcia Amaral (com declaração de voto) – Carlos Fernandes Cadilha (votei a conclusão com divergências quanto aos fundamentos e a existência de contradição de julgados) – Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa) – Ana Guerra Martins (vencida, nos termos, no essencial, da declaração de voto do Exmº Senhor Conselheiro Vítor Gomes) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevi a decisão, sem ignorar que, noutras ocasiões, não julguei inconstitucional a norma em causa por entender que com ela se não violava o direito ao recurso, previsto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP. Apesar de continuar a perfilhar este último entendimento, não posso deixar de aderir à perspetiva nova que o caso presente coloca, perspetiva essa que – não ignoro – tem implicada uma certa leitura do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, sempre que este é confrontado com a necessidade de sindicar, à luz do n.º 1 do artigo 29.º, ou do n.º 2 do artigo 103.º da CRP, as interpretações, feitas pelas instâncias, de normas fiscais ou penais. Como a leitura que, a este propósito, o presente Acórdão faz é a mesma que já se fez, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 183/2008 e 441/2012, mantenho a posição que nesses arestos assumi. O caso presente revela uma única diferença face a essa jurisprudência (dizendo melhor: não uma diferença mas um acrescento): o âmbito de aplicação do princípio da legalidade penal (artigo 29.º n.º 1) é “ampliado”, de modo a incluir, ainda, a norma de processo relativa à recorribilidade das decisões. Concordei com esta “ampliação”. A meu ver, a razão de ser do princípio nulum crimen sine lege justifica a sua extensão àqueles domínios da lei processual que contendam, de forma sensível, com a efetivação de garantias constitucionais, como é o caso, segundo creio, da modelação legal do sistema de recursos.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, concederia provimento ao presente recurso e revogaria o acórdão da Secção, pelas razões do acórdão fundamento.
Pelo essencial das razões que, mutatis mutandis, fiz constar da declaração que apus ao acórdão n.º183/2008 e como tenho deixado manifesto em casos semelhantes, entendo que a questão central que o presente acórdão analisa e de que resulta o juízo de inconstitucionalidade – violação do princípio da legalidade criminal por determinada interpretação do direito infraconstitucional não se conter nos limites do sentido hermenêuticamente possível do texto legal - não constitui questão de constitucionalidade normativa que caiba na competência do Tribunal em recurso de fiscalização concreta. Com efeito, nos termos em que a questão é apreciada no acórdão recorrido e no presente acórdão (embora neste sob aparência mais abstratizante), não está em causa uma deficiência estrutural dos enunciados normativos dos preceitos em causa para cumprir as exigências constitucionais do princípio da legalidade (as exigências acrescidas da determinabilidade da lei em matéria penal ou processual penal). Nem sequer é objecto de apreciação uma norma (ou uma determinada interpretação dela pelos tribunais, ainda que implícita) que verse sobre os critérios de interpretação da lei processual penal e a propósito da qual se discuta se habilita o juiz à aplicação das normas processuais penais de modo que possa contrariar o princípio constitucional da legalidade criminal. Para concluir pela violação do art.º 29.º da Constituição - o n.º 1 do art.º 32.º é convocado, apenas, para integrar o âmbito da aplicação do princípio da legalidade em processo penal, não se imputando ao resultado da interpretação desconformidade com a garantida de recurso - o acórdão averigua directamente, assumindo-a como tarefa sua, se o sentido com que a norma da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do Código de Processo Penal foi aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça é comportado pelos termos do preceito legal. Entendo que tal tarefa de determinação do sentido do direito ordinário não cabe nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, mesmo em domínios cobertos pelo princípio da legalidade penal.
Vítor Gomes