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Processo n.º 325/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenado em 1.ª instância na pena de 4 anos de prisão, pela prática de um crime de abuso de confiança agravada, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal.
Inconformado, interpôs recurso para a Relação de Lisboa, que o rejeitou por ser intempestivo.
Desse Acórdão interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, não tendo este sido admitido (por despacho do Desembargador Relator), reclamou para a conferência.
Indeferida esta, foi no entanto admitido o respetivo requerimento como reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão a indeferir a reclamação.
Apresentado pedido de aclaração daquela decisão e indeferido o mesmo, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e, como não foi admitido, em parte, reclamou dessa decisão para este mesmo Tribunal, tendo a reclamação sido indeferida pelo Acórdão n.º 588/12.
Na parte admitida o recurso dirigido ao Tribunal Constitucional questionava a constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g), do artigo 70.º, da LTC.
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso.
O arguido reclamou desta decisão, tendo sido indeferida a reclamação pelo Acórdão n.º 337/2013, proferido em 17 de junho de 2013.
O arguido pediu a aclaração desta decisão, o que foi indeferido pelo Acórdão n.º 619/2013, proferido em 26 de setembro de 2013.
O arguido vem agora arguir a nulidade deste último acórdão, nos seguintes termos:
“1. O Acórdão cuja nulidade se argui é o proferido na sequência de um pedido de Esclarecimento que visava o douto Acórdão 377/2013 e que persistia na decisão de não admitir o Recurso de constitucionalidade da decisão sumária nº 216/2013 por se considerar não ter sido observado, na forma processualmente exigível, e no momento processualmente certo, o ónus da suscitação prévia dos art.s 70º, nº 1, al. c) e nº 2 do art. 72º do L.O.T.C., condição de conhecimento do recurso.
2. A nulidade que se invoca é a deste Tribunal que, desconsiderando a substância da dúvida do recorrente sobre se o Tribunal Constitucional havia ou não percecionado toda a invocação processual da inconstitucionalidade logo nas Alegações de Recurso para a Relação de Lisboa, vem a indeferir o pedido de esclarecimento remetendo para o Acórdão, douto, nº 377/2013 porque, considera o Acórdão ora em crise, aí tudo ficou claramente explicado e decidido.
3. O que teve como consequência o indeferimento do requerido pedido de esclarecimento e, em termos mais englobantes o encerrar de uma linha de recurso a que, substantivamente, o recorrente entendia, salvo sempre o devido respeito, ter direito.
4. Reduzindo a sua apreciação naquilo que elegeu como dúvida do recorrente - o recorrente não entenderia porque exige o Acórdão que a questão da constitucionalidade fosse deduzida logo em sede da reclamação para o Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça - vem a indeferir o pedido de aclaração por remissão para o douto Acórdão em dúvida, sem, verdadeiramente, se pronunciar sobre ele e, em consequência, sobre a duvida suscitada.
II. Da oportunidade desta arguição:
5. A nulidade invocada é pois a de omissão de pronúncia sobre uma questão concreta a saber:
- valor da alegação de inconstitucionalidade em todo o percurso processual até ao recurso interposto da decisão que indeferiu a reclamação em sede do artº 405º do Cód. Proc. Penal.
6. O recorrente tem consciência, no âmbito reducionista de uma perspetiva processual positivista, de que ao presente requerimento pode ser assacado um cariz incidental pós-decisório algo infundado a justificar o apelo ao disposto no artº 670º do Cód. Proc. Civil (ex. artº 720º).
7. Mas deve este Tribunal Constitucional, arvorando-se para isso os artºs 8º, 10º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem como corolário, entender a atuação processual do recorrente assente no uso, 'in limine' do direito ao recurso que lhe assiste (está em causa última uma pena de prisão).
III. Da Nulidade:
8. Feita a reprodução da questão posta à análise deste douto Tribunal Constitucional antecipa-se o espectro de nulidade agora arguida face ao teor da decisão proferida e que se transcreveu já nos pontos 2 e 3 deste requerimento de arguição de nulidades.
9. E isto porque, salvo o devido respeito, entende o recorrente que o Tribunal não esgotou todas as questões que lhe estavam a ser postas e exigiam apreciação e decisão antes assacando-lhes o estigma da quer 'repetição do alegado' quer da suficiência da clareza da própria decisão que se questiona.
10. É apelando desde logo ao artº 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil atual (ex. 660º, nº 2) - enquadrado na nulidade da alínea d) do nº 1 do artº 615º (ex. 668º) também do mesmo diploma legal - que se gera a falta ora invocada;
11. Deve o Tribunal resolver todas as questões que são, pelas partes submetidas à sua apreciação.
12. Esta regra - que é um princípio - tem cabimento dentro do sistema judicial vigente quer porque cabe aos Tribunais 'assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados' e isto dentro de um enquadramento mais geral de 'administrar a justiça em nome do povo' (ex. vi dos nºs 1 e 2 do artº 202º da C.R.P.);
13. Com este nobre e alto desígnio facilmente se apreende o poder de decisão e expectativa que qualquer cidadão deposita nos Tribunais que, não devem, sob pena deste alto desígnio pragmático se esvair proferir decisões em que:
'(...) a observância das regras (...) tem de ser encarada com equilíbrio e sensatez de modo a que, sendo apercebido, num mínimo o desiderato (...) se não frustre com aspetos formais o objetivo principal de aplicar justiça.' (Ac. STJ, Proc. 742/98 - 3º, SASTJ, nº 27, 80).
14. Mas a função conformadora e englobante de realizar a justiça esgotando as questões que lhe são postas tem um outro enquadramento que também busca no Cód. Proc. Civil e que tem de aqui se invocar por forma a se entender a posição do recorrente em sede da nulidade que invoca;
15. Neste particular a recente revisão do Cód. Proc. Civil veio reforçar o caráter e validade de um conjunto de regras e princípios norteadores da ação jurisdicional quer porque lhes mudou a ratio quer sobretudo porque os integrou sistematicamente de forma mais destacada e submetidos ao título I do Código sob a epígrafe:
'Das Disposições e dos Princípios Fundamentais'.
16. Está a referir-se especialmente os artºs 2º, 5º, 6º e 7º do Cód. Proc. Civil (ex. artigos 265º, 265º-A e 266º).
17. Sob a anterior epígrafe de 'poder de direção e princípio do inquisitório' (o 265º), 'princípio da adequação formal' (o 265º-A) e 'princípio da cooperação' (o 266º) estavam expressos em sede processual as mais importantes linhas de procedimento processual quer inter partes, quer do Tribunal (que a último revisão alterou para além de lhe alterar a epígrafe para 'dever de gestão processual' e de os colocar no início do Código).
18. Ora, se no regime anterior o denominado 'poder de direção' já era suscetível de fazer gerar uma nulidade - ou pelo menos irregularidade - pelo seu não uso ou uso imperfeito, o atual enquadramento desta importante matéria é de molde a incrementar a exigência na intervenção do Tribunal no âmbito dos procedimentos;
19. Com efeito, deve intuir-se do atual o artº 6º do Cód. Proc. Civil:
'Embora correspondendo, no essencial, aos nºs 1 e 2 do artº 265º do CPC revogado, a simples alteração da epígrafe do preceito, que anteriormente era 'Poder de direção do processo e princípio do inquisitório', não pode deixar de se interpretar como significativa e no sentido de que, mais do que um 'poder' de direção do processo, do que se trata é de disponibilidade do seu exercício ou não, caberá ao juiz um verdadeiro 'dever' de, além do mais, providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais sanáveis, de garantir o resultado do 'andamento célere' do processo, se for o caso adotando 'mecanismos de simplificação e agilização processual' com vista a, em 'prazo razoável', o tribunal decidir da 'justa composição do litígio'.(in Cód. Proc. Civil, António Martins, 2013, 13ª ed.' Almedina)
20. É destas regras que pode com segurança extrair que: iniciada a instância cumpre ao Juiz, sem prejuízo do princípio dispositivo do artº 5º do C.P.C., providenciar pelo andamento regular do processo promovendo as necessárias diligências ao normal prosseguimento da ação.
21. Mesmo oficiosamente, o Juiz suprirá a falta de pressupostos processuais determinando os atos necessários a tal e é também função do julgador realizar e ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
22. Este 'dever de gestão processual', depois mitigado pelo 'princípio de adequação formal', mais não é do que o oito poder do Tribunal configurar, mesmo na falta da Lei, o processo ao que melhor se ajusta ao fim deste e da realização da justiça.
23. Subjacente ao que vem de se referir vem, por fim, o nº 1do atual artº 6º do CPC dizer:
'Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvindo as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”
24. Ora, feitos estas transcrições do Lei e de doutrina, pensa o recorrente ter já conseguido fundamentar a raiz do seu raciocínio conducente à conclusão da nulidade que se argui:
25. Em face do pedido de esclarecimento que requereu do douto Acórdão 377/2013 que, salvo sempre o devido respeito, era subsumível, em termos de análise critica e final, ao que em 2/10/2003 o ST J decidiu no âmbito do proc. 4635 (SASTJ, nº 74, 169):
'Uma decisão só é (...) confusa (...) ou de interpretação difícil (...) nos seus propósitos decisórios (...) quando a (...) ambiguidade na possibilidade de, à dita decisão serem razoavelmente atribuídos dois ou mais sentidos diferentes (...) '.
Veio o Tribunal Constitucional a indeferir o pedido de esclarecimento por entender que nada tinha que esclarecer pois a decisão em dúvida não oferece dúvidas.
26. É aqui que nasce a nulidade que se invoca.
27. A douta decisão proferida não esgota a questão (ou questões) que lhe são verdadeiras e fundadamente postas e que se configuram no ponto 5 deste requerimento.
28. E, para além de não as esgotar - o que de per si já constituiria uma nulidade - a decisão expendida, salvo o sempre devido respeito, está longe de dar cumprimento às exigências dos atuais artigos 6º, 7º e 8º do Cód. Proc. Civil o que, por arrasto, também coloca em crise a própria função jurisdicional dos nºs 1 e 2 do artº 202º da C.R.P..
29. Em rigor, o acervo de dúvidas que foram respeitosa e expectantemente colocados ao douto Tribunal Constitucional, por serem por este consideradas já claramente esclarecidas não obtiveram qualquer esclarecimento e redundaram numa espécie de 'indeferimento liminar'...
30. Não logrando esclarecer e muito menos fazer um uso ativo dos invocados princípios de gestão processual, adequação formal e cooperação.
31. O que o recorrente, salvo o devido respeito que já se disse mas mais uma vez se refere e anota, é muito, entende ser seu direito e motivo/causa de pedir do próprio movimento processual que desencadeou e que, assevera-se, foi feito tendo também bem presente o teor do artº 8º do C.P. Civil (ex artº 266º-A).
Concluindo:
Nos termos expostos e nos mais que os Excelentíssimos Senhores Conselheiros venham a suprir deve a presente arguição de nulidade ser admitida e, em consequência, ser proferido douta decisão, fazendo boa interpretação e aplicação da legislação e princípios dela decorrente que se referiram, venha o corrigir o vicio invocado e, esclarecendo efetivo e positivamente a ambiguidade da decisão em esclarecimento represente um momento concreto de administração de 'justiça em nome do povo' assegurando, de uma vez, os interesses do cidadão recorrente e a defesa efetiva dos direitos deste ainda que para tal alto desiderato, aparentemente, se esteja a entrar em sede de 'estratégias processuais'.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da arguição de nulidade.
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Fundamentação
Com a apresentação deste último requerimento em que se argui a nulidade da decisão que indeferiu o pedido de aclaração do acórdão que indeferiu a reclamação da decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto para este Tribunal, por não se ter satisfeito os pedidos de esclarecimento deduzidos, a manifesta falta de fundamento do requerido revela que o Recorrente neste segundo incidente pós-decisório pretende tão-só obstar ao trânsito em julgado da decisão que o condenou ao cumprimento duma pena, o que justifica a utilização da faculdade prevista nos artigos 84.º, n.º 8, da LTC, e 720.º do Código de Processo Civil (imediata remessa do processo ao tribunal recorrido, precedida de extração de traslado, onde será processado o incidente anómalo suscitado pelo requerimento apresentado pela Recorrente, embora a tramitação deste último incidente só deva ocorrer depois de pagas as custas contadas da sua responsabilidade).
Assim sendo, o processo deverá prosseguir os seus regulares termos no tribunal recorrido, sem ficar à espera do despacho que venha a incidir sobre o referido requerimento, o qual será proferido no traslado após o pagamento das referidas custas, considerando-se entretanto transitado em julgado, na data de hoje, o Acórdão proferido em 17 de junho de 2013, nos termos do artigo 720.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
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Decisão
Pelo exposto determina-se:
a) após extração de traslado dos presentes autos e contado o processo, se remetam de imediato os autos ao tribunal recorrido, a fim de prosseguirem os seus termos;
b) só seja dado seguimento no traslado ao referido incidente e de outros requerimentos que o Recorrente venha a apresentar, depois de pagas as custas da sua responsabilidade.
Lisboa, 6 de novembro de 2013.- João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.