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Processo n.º 694/2013
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso com os seguintes fundamentos:
(…) O presente recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Nos termos do disposto pelo artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição, e pelo artigo 70.º n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, cabe recurso para este último das decisões dos tribunais que tenham aplicado norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
Em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma tal como foi aplicada num caso concreto, é um pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre, o que, no caso sub judicio, nunca se verificaria, uma vez que a dimensão normativa indicada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não serviu de fundamento à decisão recorrida.
Com efeito, o que a recorrente pretende é que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido “de qualificar as transcrições das escutas telefónicas como elemento suficiente para formar a convicção quanto às mesmas, a par de todos os outros elementos/meios de prova, quando não oferecem qualquer grau de certeza ou firmeza em relação ao Thema Decidendum”. No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça, como resulta da decisão transcrita supra, vem, tão só, rejeitar o recurso por ser manifestamente improcedente, por força da aplicação conjugada dos artigos 412.º, n.º 1, 414.º, n.º 2 e 3 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
E, porque assim foi, não se encontra verificado o pressuposto processual de efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, pressuposto esse sem a verificação do qual o Tribunal Constitucional não pode conhecer de recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tanto basta para que se não possa admitir o presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificada dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com os seguintes fundamentos:
A decisão proferida por este douto Tribunal Constitucional no que respeita à apreciação do recurso de constitucionalidade interposto pela Recorrente, assentou no facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter rejeitado “o recurso por ser manifestamente improcedente, por força da aplicação conjugada dos art.ºs 412.º, n.º 1, 414.º, n.º 2 e 3 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal”, e, por consequência, não se encontra “verificado o pressuposto processual de efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, pressuposto esse sem a verificação do qual o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso interposto ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC”.
Entende a Recorrente, contudo e salvo melhor entendimento, que a argumentação vertida na decisão sumária de que ora se reclama, não tem em consideração, tal como consta do requerimento de interposição de recurso, que a constitucionalidade invocada (que não foi conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, apesar de ter apreciado parcialmente o recurso interposto), também foi suscitada em sede de alegações apresentadas para o Tribunal da Relação de Coimbra, que sobre a mesma se pronunciou.
De facto, e tal como consta das Conclusões 51 e 52 da Motivação apresentada junto do Tribunal da Relação de Coimbra, foi naquelas defendido que “o princípio estabelecido no artigo 127.º do CPP significa que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal valorara os meios de prova de acordo com a experiencia comum e com a concorrência de critérios objetivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção” e que “mal andou o Tribunal a quo ao interpretar o preceito jurídico instituído no artigo 127.º do Código de Processo Penal, no sentido de qualificar as transcrições das escutas telefónicas para formar a convicção quanto às mesmas, a par de todos os outros elementos/meios de prova, não oferecem qualquer grau de certeza ou firmeza em relação ao Thema Decidendum, sendo tal interpretação inconstitucional por VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 1.º, 2.º, 12.º, 25.º, 26.º/1, 32.º, 202.º/1 E 2, todos da CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, assim como dos princípios do Estado Direito Democrático, Princípio da Universalidade, Princípio da Boa Fé, Princípio da Proporcionalidade, Princípio da Igualdade e ainda Princípio do In Dubio Pro Reu, pelo que, urge decretar a sua inconstitucionalidade, na referida interpretação”.
Atendendo à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, entendeu o Recorrente dela interpor recurso para o supremo Tribunal de Justiça, que apesar de primitivamente julgado inamissível veio a ser apreciado – ainda que parcialmente –, no seguimento do deferimento da reclamação apresentada junto do Supremo Tribunal de Justiça.
Esgotados, então, os recursos ordinários a que houvessem lugar, veio a Recorrente a apresentar o seu requerimento de recurso para esse douto Tribunal Constitucional onde defendeu que “A inconstitucionalidade da citada norma foi arguida pela recorrente aquando da interposição do Recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e para o Supremo Tribunal de Justiça na sua motivação e inserta no Thema Decidendum pela inclusão nas respetivas Conclusões”. Ainda, que “o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso interposto, entendo que a norma na interpretação propugnada pela 1.ª instância que a recorrente denunciou por violadora de cânones constitucionais não encerra a infração de qualquer preceito da Lei Fundamental, o que legitima a apreciação da suscitada questão perante o Tribunal Constitucional, face também à recusa de apreciação pela questão pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
Assim, a recorrente, seguindo as normas de interposição do recurso junto desse Tribunal Constitucional, e sem embargo da questão em causa não ter sido apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, aguardou para que se encontrassem esgotados os recursos ordinários a que houvessem lugar, para em seguida apresentar, em prazo e por dispor de legitimidade, o requerimento de interposição junto desse douto Tribunal.
Ora, os recursos previstos no art.º 70.º, n.º 1, al. b) da LTC, podem ser interposto quando, para além de se verificar uma alegada violação dos cânones constitucionais, a questão de constitucionalidade apresentada junto do Tribunal Constitucional tenha sido suscitada durante o processo e em cumprimento das normas processuais (alínea b) do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC) e, ainda, quando se encontrarem esgotados os recursos ordinários que coubessem (com a ressalva prevista na lei).
Nesta senda, a Recorrente suscitou, adequadamente e em momento próprio, a questão que colocou em apreço ao Tribunal Constitucional, tendo legitimidade para tanto, não se vislumbrando, por isso, que a decisão sumária proferida, e de que se reclama, tendo apreciado adequadamente a admissibilidade do recurso, impondo-se a sua revogação o que se requer e a consequente admissão daquele.
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio pugnar pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não conhecer da questão de constitucionalidade da norma do artigo 127.º do CPP, quando interpretada no sentido “de qualificar as transcrições das escutas telefónicas como elemento suficiente para formar a convicção quanto às mesmas, a par de todos os outros elementos/meios de prova, quando não oferecem qualquer grau de certeza ou firmeza em relação ao Thema Decidendum”, uma vez que este preceito não foi efetivamente aplicado pela decisão recorrida, pois, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, é pressuposto de admissibilidade do recurso que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir efeitos sobre a decisão de que se recorre.
Na reclamação apresentada, a reclamante vem discordar deste entendimento, sustentando, por um lado, que a decisão sumária desconsiderou, ao contrário do que deveria ter acontecido, o facto de a questão de constitucionalidade ter sido suscitada perante o Tribunal da Relação de Coimbra, que se pronunciou sobre a mesma e, por outro lado, porque entende que, sem prejuízo de a questão em causa não ter sido apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, o recurso deve ser admitido, por se terem esgotado todas as vias jurisdicionais de recurso.
Não tem razão a reclamante.
4.1. Desde logo, a recorrente interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 8.05.2013. É o que decorre do respetivo requerimento de interposição que, aliás, foi apresentado no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 5075 dos autos), onde se proferiu o despacho de admissão a que alude o disposto ao n.º 1 do artigo 76.º da LTC (fls. 5081 dos autos).
Ora, estando em causa a decisão proferida pelo Supremo tribunal de Justiça, e atendendo aos efeitos do recurso de constitucionalidade em sede de fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de questões de constitucionalidade relativas às normas ou dimensões normativas que foram aplicadas por esta decisão [a decisão de que se recorre]. E por assim ser, é irrelevante para o caso sub judicio se a questão de constitucionalidade foi efetivamente suscitada perante o Tribunal da Relação, ou se este se pronunciou sobre a mesma.
4.2. Depois, sustenta a reclamante que, independentemente de o Supremo Tribunal de Justiça não se ter pronunciado sobre a questão de constitucionalidade objeto do recurso, o mesmo deve ser admitido por se encontrarem esgotadas todas as possíveis vias de recurso.
Como bem se sabe, quando se interpõe recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, este tem que respeitar um conjunto de requisitos específicos. Em primeiro lugar, é necessário que o objeto do recurso seja uma norma (ou dimensão normativa), tal como foi aplicada na decisão recorrida; depois, é necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso; e, por último, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Ora, na decisão sumária reclamada decidiu-se não conhecer do objeto do recurso, não por não estar preenchido o requisito do esgotamento prévio dos recursos, mas porque a norma impugnada não foi efetivamente aplicada pelo tribunal a quo, na decisão recorrida, como verdadeira ratio decidendi [não sendo, por isso, possível acoplar a uma eventual decisão do Tribunal Constitucional qualquer efeito útil].
Assim, e uma vez que estamos perante requisitos distintos e que têm que estar concomitantemente verificados, o facto do requisito do esgotamento das vias de recurso estar preenchido, como sustenta a reclamante, em nada prejudica o decidido na decisão sumária ora reclamada, que se fundamentou na não verificação de requisito distinto – a não aplicação da norma controvertida pela decisão do tribunal recorrido.
Como nenhum dos argumentos oferecidos pelo reclamante na presente reclamação é de molde a abalar a decisão sumária proferida, deve a mesma ser confirmada e indeferida a reclamação.
III – Decisão
5. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de novembro de 2013. – Maria Lúcia Amaral –José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.