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Processo n.º 817/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, de 31 de março de 2011, foi o arguido A. condenado pela prática de um crime de fraude fiscal qualificado, previsto e punível pelos artigos 104.º, n.ºs 1 e 2, 22.º, n.º 2, da Lei n.º 15/2001, de 15 de junho, e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, substituída, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal, por 300 dias de multa, à taxa diária de €15, perfazendo a quantia de €4.500.
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 12 de março de 2012, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
O arguido veio requerer a “correção/aclaração” deste acórdão e o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 11 de junho de 2012, indeferiu o requerido.
O arguido veio então arguir a nulidade deste último acórdão, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 24 de setembro de 2012, indeferido o requerido.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional e, convidado a completar o seu requerimento de interposição de recurso, com todos os elementos exigidos pelo artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, fê-lo nos seguintes termos:
«… O recurso vem, assim, interposto da interpretação que se extrai do disposto no artº 61º nº 1 als. b) e d), 125º, 126º nº 1 als. d), e) e nº 3, 174º nº 3 e 176º, 178º, 179º e 182º nº 1, 267º, 268º nº 1 al. d), 269º nº 1 al. c) e d) e 270º nº 1 al. d) do Código de Processo Penal no sentido de que podem ser usadas como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal, documentos cedidos por funcionários de uma empresa ou pelos agentes do crime, seus gerentes, a uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação previsto nos artºs 9º nº 1, 28º nº 1 e 2, 29º e 30º do DL 413/98 de 31 de dezembro e nos artºs 31º nº 2 e 59º nº 4 da LGT, obtidos a pedido dessa inspeção, quer pessoalmente, quer através de recolha desses documentos nas suas instalações, sem cumprir o ritualismo previsto no Código de Processo Penal para a apreensão de documentos e para uma busca, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do princípio da legalidade, da igualdade, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência e o princípio do processo equitativo (cfr. artºs 2º, 3º nº 2, 18º nº 2, 25º nº 1, 26º nº 1, 32º nº 1, 4 e 8 e 34º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 6º nº 1 da CEDH)…»
O Recorrente apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1ª As provas obtidas em sede de inspeção tributária a uma empresa, obtidas através do cumprimento por parte do contribuinte do dever de cooperação, não podem ser usadas no âmbito de processo criminal fiscal, designadamente por fraude fiscal contra os seus gerentes, sem que exista autorização da autoridade judicial para o efeito.
2ª Na verdade, no âmbito do procedimento de inspeção tributária, o sujeito passivo do imposto está sujeito e obrigado a um rol de deveres que não se coadunam com os direitos do arguido, designadamente ao silêncio e à não autoincriminação.
3ª Com efeito, nos termos do art. 9.º, n.º 1 do DL 413/98 de 31 de dezembro, o sujeito passivo alvo de inspeção tributária está sujeito ao dever de cooperação, cominando a lei, a recusa de colaboração e a oposição à ação de inspeção tributária, com a eventual responsabilidade contraordenacional e criminal do infrator (cfr. o artº 32º nº 1 do RGCPIT).
4ª Por outro lado, no que concerne às garantias de eficácia do procedimento de inspeção tributária, o sujeito passivo deve facultar à inspeção todas as condições necessárias à eficácia da sua ação, designadamente livre acesso às instalações e dependências da entidade inspecionada pelo período de tempo necessário ao exercício das suas funções.
5ª Efetivamente, os inspetores têm ainda direito ao exame, requisição, e reprodução de documentos em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributários, para consulta, apoio ou junção aos relatórios, processos ou autos (cfr. o art. 28.º n.ºs 1 e 2 do supra citado diploma).
6ª A todos estes direitos dos inspetores tributários, acrescem ainda aqueles constantes do disposto nos arts. 29.º e 30.º do diploma em causa, aos quais correspondem os deveres para os sujeitos passivos, designadamente, de prestar declarações, deixar aceder, consultar e testar sistemas informáticos, correspondência recebida e expedida, apreender elementos de escrituração ou quais quer outros elementos, entre outras obrigações.
7ª Ora, a obtenção de documentos, cópias, acesso aos sistemas informáticos e correspondência no âmbito do processo penal, estão devidamente reguladas e têm de obter despacho do Juiz de Instrução, que, por isso mesmo, é apelidado de Juiz das Liberdades, pelo que, não pode manter-se nos autos prova que, obtida no âmbito da inspeção tributária, não respeitou, nem respeita os princípios estruturantes do processo penal português.
8ª É que, escancarando-se as portas do processo penal à prova obtida no âmbito do Procedimento de Inspeção Tributária, está-se a violar os princípios de proibição de autoinculpação do arguido, o seu direito ao silêncio e o direito de ver escrutinado pelo Juiz de Instrução o acesso a documentos e outro elementos de prova,
9ª Com efeito, há, na inspeção tributária, uma atividade pré-investigatória que se desenrola sem que exista o mínimo controlo jurisdicional da autoridade judiciária, pelo que os meios de prova que sejam carreados para o processo penal, oriundos do processo de inspeção tributária que não sejam a posteriori validados pela autoridade judiciária competente, não podem ser valorados em sede processual penal, sob pena de violação do princípio do Estado de Direito, do acusatório, das garantias de defesa, da presunção da inocência e da garantia jurisdicional.
10ª A clara separação dos dois processos é absolutamente indispensável para que possa ser dado sentido próprio à diferença essencial da qualidade em que neles o agente intervém, em homenagem à diversidade de princípios em que ambos se inspiram, sendo certo que mesmo que se entendesse que a atuação da inspeção tributária pudesse ter amparo no disposto nos artºs 37º do RGIT e dos artºs 251º e 252º do Código de Processo Penal - e não têm, porquanto tais normas nunca foram invocadas -, os elementos de prova apenas poderiam ser integrados no processo depois da sua aceitação ou confirmação pela autoridade judiciária competente.
11ª Esta atividade pré-processual é 'facilitada' aos inspetores tributários, tendo em conta o dever de cooperação que é reforçado pela cominação do cometimento de um crime, caso o contribuinte não coopere, nos termos do artº 32º nº 1 do RGCPIT, vendo-se assim, o contribuinte numa camisa de sete varas: ou seja, ou coopera e vê-se na contingência de contribuir para a sua incriminação, ou não coopera e do mesmo modo comete um crime.
12ª Toda esta problemática acaba, assim, por entroncar no direito que o arguido tem a não se autoinculpar. Direito esse que acaba por sair vergado e restringido, no conflito deveres e direitos que o arguido ou qualquer cidadão tem em cooperar com a administração tributária sob pena de cometer um crime e fazendo-o de se estar a autoinculpar.
13ª Ora, a cooperação do arguido no âmbito do processo crime deve ser livre e esclarecida, porquanto 'O que aqui está fundamentalmente em jogo é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecido e livre de autorresponsabilidade. Na liberdade de declaração espelha-se, assim, o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual. Na verdade, «só pode falar-se de um sujeito processual, com legitimidade para intervir com eficácia conformadora sobre o processo, quando o arguido persiste, por força da sua liberdade e responsabilidade, senhor das suas declarações, decidindo à margem de toda a coerção sobre se e como quer pronunciar-se». - Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, pag. 121 e 122.
14ª Seguindo o mesmo autor, no plano constitucional não deve desatender-se o significado de um preceito como o artº 32º nº 4, que prescreve a nulidade de «todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa à integridade física ou moral da pessoa....». Pois, a não caírem sob a censura direta da tortura ou coação, as provas obtidas em contravenção do princípio nemo tenetur, configurarão um atentado à integridade moral da pessoa. E um atentado particularmente qualificado na medida em que redunda na degradação da pessoa em mero objeto ou instrumento contra si própria numa área onde cabe assegurar a expressão da plena liberdade e autorresponsabilidade.'
15ª O princípio da presunção da inocência envolve, o direito de não apresentar provas, qualquer tipo de provas em qualquer suporte ou fase processual.
16ª De facto, nos dizeres de Liliana Sá supra citada, os direitos do arguido a não prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados e a não fornecer provas que o possam incriminar são uma dupla consequência do princípio da presunção da inocência, ou seja, é exatamente porque ele beneficia desta presunção (que determina a inversão do ónus da prova), devendo mesmo ser absolvido em caso de dúvida acerca da autoria da infração penal (é o conhecido princípio in dubio pro reo), que o arguido não pode assumir a dupla veste de investigador e investigado.
17ª Os métodos proibidos de prova estão previstos no artº 126º do CPP, o qual não refere expressamente o princípio da presunção da inocência. Todavia, a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.) considera que ele se identifica com o princípio in dubio pro reo e constitui um dos fundamentos da proibição de obtenção de declarações comprometedoras através de meios irregulares de prova.
18ª. Para além do exposto, como se diz ainda no mesmo estudo de Liliana Sá, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem '(...) num acórdão que é considerado um marco no reconhecimento destes direitos a qualquer pessoa sob investigação, resultante do julgamento do processo Funke vs. France considerou ter sido violado o artº 6º nº 1 do CEDH, na medida em que as características particulares da legislação aduaneira não justificam a violação do direito do arguido a permanecer em silêncio e a não contribuir para a sua incriminação. No entanto, Uma vez estabelecido que o direito a um processo justo, protegido pelo artº 6º, inclui no seu seio, embora não expressamente, os direitos ao silêncio e à não autoincriminação, e porque, neste caso, estava em causa uma atuação das autoridades alfandegárias, foi preciso esperar pela resolução do processo denominado Bendenoun vs, France para que o TEDH se pronunciasse, afirmativamente, pela aplicabilidade desses princípios penais aos procedimentos fiscais.'
19ª Todos os atos praticados pelos órgãos de polícia criminal em momento anterior à transmissão da noticia do crime ao MP não integram qualquer fase processual, uma vez que a decisão de abertura do processo, que se inicia com a fase de inquérito, pertence ao MP não se prevendo qualquer fase pré-processual. Tais atos apenas integrarão o processo após um ato decisório da autoridade judiciária, que, nesse momento assumirá a responsabilidade pelos mesmos.
20ª Se assim não for, '(...) é a A.T. que, ao decidir do momento da comunicação ao MP da notícia do crime, decide do se e do quando da instauração do inquérito, que poderá ficar a cargo dos mesmos funcionários que interrogaram o contribuinte e lhe solicitaram elementos informativos, os quais irão ouvir de novo, aproveitando-se eventualmente das informações obtidas e por ele prestadas, em violação das suas garantias de defesa. Por outro lado, podem os inspetores ser tentados a protelar a investigação administrativa, onde o contribuinte é obrigado a colaborar, por forma a diferir o uso dos direitos que lhe são reconhecidos no inquérito, procedimento que seria totalmente desconforme à Constituição.'
21ª Para além das já citadas decisões do TEDH, Liliana da Silva Sá, no mesmo estudo refere ainda um outro, o “(...) caso Saunders vs United Kingdom - em que este órgão foi mais longe nas consequências que retira do artº 6º reconhecendo que a utilização em processo penal das provas (no caso, declarações) obtidas num processo administrativo de investigação anterior, mediante a imposição coativa de um dever de colaboração sobre o investigado, viola o direito a um processo equitativo.'
22ª Quer isto dizer que o direito à não autoinculpação compreende o direito a negar-se a fornecer quaisquer informações, sejam orais, sejam escritas, e impede, por sua vez no processo sancionatório se possam ter em conta as provas obtidas num procedimento anterior, sob ameaça de uma sanção.
23ª Assim, os documentos constantes de fls. 36 e seguintes, 47 a 62, os documentos constantes dos anexos, maioritariamente constituídos por faturas e outros documentos fiscalmente relevantes 'detetados em vários clientes - incluindo nas instalações da empresa Tavares, Pereira e Carvalho, Lda. gerida pelo recorrente - emitidas pelo contribuinte' e outros extraídos do processo de inspeção tributária não podem ser valorados como prova.
24ª E, por outro lado, o depoimento da testemunha Eduardo José de Oliveira Ferreira que dirigiu a inspeção tributária, na medida em que teve acesso, durante as inspeções tributárias realizadas também não poderia ser valorado, porquanto o seu conhecimento dos factos advinha da inspeção tributária realizada (conforme se verá da sua transcrição) e, em consequência, de meios de prova obtidos ilegalmente em face do processo penal.
25ª Neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça tem sustentado esta perspetiva do princípio nemo tenetur ao asseverar no seu acórdão de 5 de janeiro de 2005 (Proc. 4P3276) que 'O privilégio contra a auto incriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações) sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória'. Afinando pelo mesmo diapasão, LARA SOFIA PINTO tem defendido que 'O privilégio contra a autoincriminação traduz-se no direito a não cooperar no fornecimento de quaisquer meios de prova para a sua incriminação.' - cfr. Paulo Marques, in O Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Problemas do Atual Direito Penal Tributário, pag. 121 (Também neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 2010 (disponível in www.dgsi.pt). relatado por Henriques Gaspar, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de maio de 2012 (disponível in www.dgsi.pt), relatado por Melo Lima, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 17 de abril de 2012 (publicado in www.dgsi.pt), relatado por Simões de Carvalho, todos supra transcritos e para os quais se remete.
26ª Assim, ao contrário do defendido no acórdão recorrido o direito à não autoinculpação não deve ser postergado ou comprimido por qualquer outro dever do contribuinte, designadamente o de cooperação com a Administração Tributária. Fazê-lo seria defender que o arguido deve contribuir para a sua condenação e, no fundo, inverter o ónus da prova no âmbito do processo penal, manietando o arguido, tomando-o um objeto, conforme os interesses da investigação, violando frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artº 1º da Constituição.
27ª Por outro lado, nem sequer se deve admitir relativamente a uma pessoa coletiva a restrição do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, e muito menos se podem usar provas recolhidas na fase pré-investigatória passíveis de incriminar uma pessoa singular, como é o caso do recorrente (cfr. neste sentido, Liliana da Silva de Sá, in Ciência e Técnica Fiscal. 2004, nº 414, págs. 171 e seguintes).
28ª De facto, a colaboração do arguido deve constituir a forma menos onerosa para este de obter o esclarecimento dos factos que sejam relevantes para a decisão do processo criminal, salvo autorização judicial concedida pelo Tribunal, pelo que se acha violado também o princípio da proporcionalidade previsto no artº 18º da Constituição.
29ª Acresce que, como acima se referiu a utilização em processo penal das provas obtidas num processo administrativo, mediante a imposição coativa de um dever de colaboração sobre o investigado, viola o direito a um processo equitativo (Processo Saunders vs United Kingdom).
30ª Assim, deve concluir-se que interpretação que se extrai do disposto no artº 61º nº 1 als. b) e d), 125º, 126º nº 1 als. d), e) e nº 3, 174º nº 3 e 176º, 178º, 179º e 182º nº 1, 267º, 268º nº 1 al. d), 269º nº 1 al. c) e d) e 270º nº 1 al. d) do Código de Processo Penal no sentido de que podem ser usadas como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal, documentos cedidos por funcionários de uma empresa ou pelos agentes do crime, seus gerentes, a uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação previsto nos artºs 9º nº l, 28º nº 1 e 2, 29º e 30º do DL 413/98 de 31 de dezembro e nos artºs 31º nº 2 e 59º nº 4 da LGT, obtidos a pedido dessa inspeção, quer pessoalmente, quer através de recolha desses documentos nas suas instalações, sem cumprir o ritualismo previsto no Código de Processo Penal para a apreensão de documentos e para uma busca, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência, o princípio do processo equitativo e a dignidade da pessoa humana (cfr. artºs 1º, 2º, 3º nº 2, 18º nº2, 25º nº l, 26º nº l, 32º nº 1, 4 e 8 e 34º nº l da Constituição da República Portuguesa e 6º nº 1 da CEDH).
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso julgando-se inconstitucional a interpretação do acórdão recorrido da interpretação das normas supra citadas, por violação das normas constitucionais e internacionais supra aludidas, ordenando ao tribunal recorrido que se conforme com o julgamento de inconstitucionalidade realizado, por só assim se fazer JUSTIÇA.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«1. Embora não expressamente consagrado na Constituição, o reconhecimento ao arguido, verdadeiro sujeito processual, do direito ao silêncio (nemo tenetur se ipsum accusare) encontra o seu fundamento imediato nas garantias de defesa constantes do artigo 32.º da Constituição e na exigência de um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP).
2. Tal direito, que é expressamente reconhecido no artigo 61.º, n.º 1, alínea d) do CPP, não é, naturalmente, absoluto.
3. No entanto, as restrições a esse direito só serão constitucionalmente admissíveis se estiverem previstas na lei e se mostrarem respeitadoras da proporcionalidade e da necessidade, atendendo à natureza dos conflitos em presença.
4. O dever de colaboração dos contribuintes com a administração fiscal, encontra guarida nos artigos 31.º e 59.º da lei Geral Tributária (LGT).
5. No artigo 63.º da LGT (“Inspeção”) prevê-se a possibilidade de o órgão competente proceder à inspeção tributária, estando esta sujeita a um regime próprio e rigoroso, o Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, alterado e republicado pela Lei n.º 50/2005, de 30 de agosto.
6. O dever de colaboração e cooperação previsto na LGT e no Regime Complementar (artigos 9º e 32º) tem, contudo, os limites impostos por direitos constitucionalmente garantidos, cabendo aos tribunais dirimir eventuais conflitos (artigo 63.º, n.º 4, da LGT).
7. Com vista á satisfação de necessidades coletivas e para que possam ser cumpridos os deveres a que está constitucionalmente obrigado, o Estado tem de cobrar impostos, justificando constitucionalmente essa finalidade que o regime das infrações tributárias se afaste, em alguns aspetos, do “regime comum”.
8. O procedimento da inspeção tributária visa a verificação do cumprimento das obrigações tributárias por parte dos sujeitos passíveis, enquanto o inquérito, nos termos do artigo 262.º do CPP, “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação”.
9. Detetada no âmbito da inspeção uma infração fiscal, a possibilidade de os documentos facultados à administração fiscal no âmbito do dever de colaboração serem utilizados no inquérito, não viola o direito ao silêncio.
10. Efetivamente, mostrando-se respeitados, como mostra, os princípios da legalidade e da proporcionalidade, toda a prova pode ser contraditada, gozando o sujeito passivo (arguido) de todas as garantias que o processo penal lhe concede.
11. Nos termos do exposto, deve negar-se provimento ao recurso.»
Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
No seu requerimento de interposição de recurso, o Recorrente indicou, como objeto do mesmo, a interpretação que se extrai do disposto nos artigos 61.º, n.º 1 alíneas b) e d), 125.º, 126.º n.º 2, alíneas d), e) e n.º 3, 174.º, n.º 3, e 176.º, 178.º, 179.º e 182.º, n.º 1, 267.º, 268.º, n.º 1, alínea d), 269.º, n.º 1, alínea c) e d) e 270.º, n.º 1 alínea d), do Código de Processo Penal, no sentido de que podem ser usadas como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal, documentos cedidos por funcionários de uma empresa ou pelos agentes do crime, seus gerentes, a uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação previsto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, obtidos a pedido dessa inspeção, quer pessoalmente, quer através de recolha desses documentos nas suas instalações, sem cumprir o ritualismo previsto no Código de Processo Penal para a apreensão de documentos e para uma busca, por entender que a mesma é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência, o princípio do processo equitativo e a dignidade da pessoa humana, consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8, e 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 6.º, n.º 1 da CEDH.
Importa simplificar, para melhor compreensão, o enunciado do critério normativo impugnado que foi sustentado na decisão recorrida.
Em primeiro lugar, não estando particularmente em causa os concretos modos como a inspeção tributária acedeu aos documentos posteriormente usados como prova em processo penal, sendo suficiente a menção genérica e remissiva a que os mesmos foram obtidos ao abrigo do dever de cooperação imposto ao arguido nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, devem ser eliminadas as referências a algumas das concretas modalidades de obtenção dos documentos com a colaboração do arguido.
Em segundo lugar, basta a menção a que os documentos foram obtidos ao abrigo do referido dever de cooperação em inspeção tributária para daí resultar que tal não foi feito com recurso aos meios de obtenção de prova regulados no Código de Processo Penal, designadamente a apreensão de documentos e as buscas, revelando-se por isso desnecessária, por redundante, esta referência.
Além disso, como é referido no Acórdão recorrido e é também realçado pelo Ministério Público nas suas contra-alegações, a maior dos preceitos legais indicados pelo Recorrente são estranhos à questão que por este é colocada. Ou seja, tais preceitos não foram objeto de interpretação e aplicação pelo tribunal a quo, nem expressa, nem implicitamente.
A decisão recorrida apenas menciona expressamente o artigo 61.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, e aplica implicitamente o artigo 125.º, do mesmo diploma, uma vez que admite a prova resultante dos documentos em causa, por considerar que a mesma não é proibida por aplicação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, pelo que a interpretação normativa a fiscalizar deve apenas reportar-se a estes dois preceitos legais.
Assim, neste recurso deve proceder-se à fiscalização da norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte.
2. Do mérito do recurso
A presente questão de constitucionalidade prende-se com a interligação dos processos inspetivo e sancionatório penal tributário na ordem jurídica portuguesa, estando centrada no aproveitamento pelo último, da prova recolhida no primeiro, com a colaboração daquele a quem vem a ser imputada uma infração criminal.
Importa começar por fazer um enquadramento jurídico da questão, tendo em conta o direito aplicável no plano infraconstitucional, no que respeita aos deveres de cooperação no âmbito do direito fiscal.
O artigo 63.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, provada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro (LGT), sob a epígrafe «Inspeção», estabelece o seguinte:
«1 – Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente:
a) Aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua atividade ou com a dos demais obrigados fiscais;
b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos suscetíveis de esclarecer a sua situação tributária;
c) Aceder, consultar e testar o seu sistema informático, incluindo a documentação sobre a sua análise, programação e execução;
d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas;
e) Requisitar documentos dos notários, conservadores e outras entidades oficiais;
f) Utilizar as suas instalações quando a utilização for necessária ao exercício da ação inspetiva.
[…]»
Por sua vez, o artigo 31.º, n.º 2, também da LGT, considera como obrigações acessórias do sujeito passivo «as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações».
Finalmente, o artigo 59.º da LGT, com a epígrafe, «princípio da colaboração», estabelece, no n.º 1, que «os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco» e, no n.º 4, concretiza que «a colaboração dos contribuintes com a administração tributária compreende o cumprimento das obrigações acessórias previstas na lei e a prestação dos esclarecimentos que esta lhes solicitar sobre a sua situação tributária, bem como sobre as relações económicas que mantenham com terceiros.»
As regras a que obedecem as inspeções tributárias previstas no artigo 63.º da LGT, bem como os princípios e obrigações enunciados nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º da mesma lei, são depois concretizados no Regime Complementar de Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, alterado e republicado pela Lei n.º 50/2005, de 30 de agosto, e posteriormente alterado pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17 de janeiro.
No que ora interessa, este Regime estabelece, no seu artigo 9.º, n.º 1, que «a inspeção tributária e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributários estão sujeitos a um dever mútuo de cooperação».
E, no Capítulo I (artigos 28.º e ss.) do Título IV do RCPIT, relativo aos «Atos de Inspeção», são estabelecidas as «Garantias do exercício da função inspetiva».
Neste âmbito, sob a epígrafe «Garantias de eficácia», o artigo 28.º, n.º 1, estabelece que «cabe genericamente às autoridades públicas e às entidades inspecionadas facultar à inspeção tributária, nos termos da lei, todas as condições necessárias à eficácia da sua ação», concretizando-se, no n.º 2 deste artigo, os direitos dos funcionários em serviço de inspeção tributária nos termos do número anterior, entre os quais se incluem, com relevo para o caso dos autos, o direito «ao exame, requisição e reprodução de documentos, mesmo quando em suporte informático, em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributários, para consulta, apoio ou junção aos relatórios, processos ou autos;» [al. c)] e o direito «à prestação de informações e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, do Estado, das Regiões Autónomas e autarquias locais, de associações públicas, de empresas públicas ou de capital exclusivamente público, de instituições particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade pública;» [alínea d)].
Por sua vez, o artigo 29.º, n.º 1, estabelece uma série de prerrogativas e faculdades de que gozam os funcionários em serviço de inspeção tributária, nomeadamente:
[…]
a) Examinar quaisquer elementos dos contribuintes que sejam suscetíveis de revelar a sua situação tributária, nomeadamente os relacionados com a sua atividade, ou de terceiros com quem mantenham relações económicas e solicitar ou efetuar, designadamente em suporte magnético, as cópias ou extratos considerados indispensáveis ou úteis;
b) Proceder à inventariação física e avaliação de quaisquer bens ou imóveis relacionados com a atividade dos contribuintes, incluindo a contagem física das existências, da caixa e do imobilizado, e à realização de amostragens destinadas à documentação das ações de inspeção;
c) Aceder, consultar e testar os sistemas informáticos dos sujeitos passivos e, no caso de utilização de sistemas próprios de processamento de dados, examinar a documentação relativa à sua análise, programação e execução, mesmo que elaborados por terceiros;
d) Consultar ou obter dados sobre preços de transferência ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condições contratuais entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras, quando se verifique a existência de relações especiais nos termos do n.º 4 do artigo 58.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas;
e) Tomar declarações dos sujeitos passivos, membros dos corpos sociais, técnicos oficiais de contas, revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas, sempre que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributários;
f) Controlar, nos termos da lei, os bens em circulação;
g) Solicitar informações às administrações tributárias, estrangeiras, no âmbito dos instrumentos de assistência mútua e cooperação administrativa internacional.
[…]»
Finalmente, o artigo 30.º, n.º 1, confere aos funcionários incumbidos da ação de inspeção tributária a possibilidade de adotar, atendendo ao princípio da proporcionalidade, diversas medidas cautelares de aquisição e conservação da prova, concretamente:
«a) Apreender os elementos de escrituração ou quaisquer outros elementos, incluindo suportes informáticos, comprovativos da situação tributária do sujeito passivo ou de terceiros;
b) Selar quaisquer instalações, sempre que se mostre necessário à plena eficácia da ação inspetiva e ao combate à fraude fiscal;
c) Visar, quando conveniente, os livros e demais documentos.»
Segundo o Recorrente, a interpretação normativa que é objeto do presente recurso é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do direito à integridade moral e à reserva da intimidade da vida privada, do princípio das garantias de defesa, do princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, da inviolabilidade da correspondência, do princípio do processo equitativo e da dignidade da pessoa humana, consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8 e 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 6.º, n.º 1, da CEDH.
Apesar de invocar a violação de múltiplos parâmetros constitucionais, o Recorrente centra a discussão na violação dos direitos do arguido ao silêncio e à não autoincriminação, tendo também sido esse o modo como a decisão recorrida enquadrou a questão de constitucionalidade.
O direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de Direito modernos, encontrando também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cfr. art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da ONU).
Intimamente ligado ao direito ao silêncio está o direito do arguido à não autoincriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare. É facilmente explicável a relação deste direito com o direito ao silêncio, uma vez que, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.
A Constituição da República Portuguesa não consagra expressis verbis este princípio, mas, não obstante essa não consagração expressa, tanto a doutrina como a jurisprudência têm defendido que o nemo tenetur se ipsum accusare tem assento constitucional, sendo considerado um direito constitucional do processo penal não escrito (cfr., neste sentido, Manuel da Costa Andrade, em “Sobre as proibições de prova em processo penal”, pág. 120 e seg., Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em “Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer)”, in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, 2009, págs. 38-39 e Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, “O direito à não autoinculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contraordenacional português”, Coimbra Editora, 2009, págs. 14-15, e os Acórdão do Tribunal Constitucional n.ºs 695/95, 304/2004, 181/2005, 155/2007 e 461/11, acessíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt).
Os direitos ao silêncio e à não autoincriminação devem considerar-se incluídos nas garantias de defesa que o processo penal deve assegurar (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), não deixando estes direitos processuais de proteger mediata ou reflexamente a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais com ela conexos, como sejam os direitos à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à privacidade, não se revelando necessário, para sustentar o acolhimento constitucional, o recurso a parâmetros mais genéricos ou distantes como o direito ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) ou à presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição).
O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.
Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.
Tal princípio intervém no processo penal sob duas formas distintas: preventivamente, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação e repressivamente, obrigando à desconsideração de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.
Mas tem sido também reconhecido que o direito à não autoincriminação não têm um caráter absoluto, podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias (v.g. a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade).
O critério sob fiscalização neste recurso não respeita a um dever de entrega de documentos autoincriminatórios, no decurso de um processo penal, mas sim à utilização como prova nesse processo de documentos que foram anteriormente facultados pelo arguido à administração estadual, em cumprimento de um dever de colaboração.
Se, em regra, o direito à não autoincriminação, no que respeita à utilização de prova documental em processo penal, não obstaculiza a que possam ser valorados documentos disponibilizados para outros efeitos pelo arguido em data anterior à do início do procedimento criminal, uma vez que nessas situações não está em causa a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo, há situações, como a que ocorre com o critério normativo sub iudicio, em que essa disponibilização é efetuada no cumprimento de deveres de cooperação com entidades administrativas que reúnem meros poderes de inspeção e fiscalização com poderes de investigação criminal, não deixando de existir uma interligação entre o processo inspetivo e o processo criminal.
Em concreto, estão em causa documentos, utilizados como prova num processo penal, que haviam sido entregues no cumprimento de deveres de cooperação com a administração tributária quando esta se encontrava no exercício de atividades inspetivas e fiscalizadoras necessárias ao apuramento de uma determinada situação tributária.
Como já vimos, o artigo 63.º, n.º 1, da LGT, acima referido, sob a epígrafe «Inspeção», confere aos órgãos da administração tributária competentes o poder de «desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes».
Estes amplos poderes de que goza a administração tributária, para além de subordinados à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, são exercidos «de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários» (cfr. artigo 55.º da LGT), sendo que as regras legalmente previstas a que obedecem os atos de inspeção tributária estão plasmadas no Regime Complementar de Procedimento de Inspeção Tributária, no qual se preveem, entre esse poderes de inspeção, as diversas prerrogativas de que gozam os funcionários em serviço de inspeção (artigos. 28.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1), bem como a aplicação de medidas cautelares de conservação de prova (artigo 30.º), também já acima mencionadas.
Vimos também já que, durante o procedimento de inspeção, o contribuinte está vinculado ao cumprimento de deveres de cooperação, desde logo por força do artigo 9.º, n.º 1, do RCPIT, estando obrigado, em cumprimento de tal dever, a facultar aos funcionários em serviço de inspeção o acesso a todos os elementos relacionados com a sua atividade, suscetíveis de revelar a sua situação tributária, designadamente, documentos, livros, registos contabilísticos, sistemas informáticos e correspondência relacionada com a sua atividade.
Ora, esta documentação e informação cedida pelo contribuinte à administração tributária, no cumprimento dos aludidos deveres de cooperação, é utilizável, não apenas no processo de inspeção, que poderá dar lugar à correção da situação tributária, mas também num eventual processo de natureza sancionatória penal, que venha a ser instaurado na sequência ou no decurso da inspeção.
Uma vez que o incumprimento dos deveres de cooperação pode dar lugar a responsabilidade penal ou contraordenacional, o contribuinte pode ver-se na contingência de, caso se recuse a colaborar com a administração tributária, sujeitar-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima ou de, caso aceite colaborar, dar lugar a que a administração consiga obter, à sua custa, elementos de prova que venham a sustentar a acusação por crime fiscal.
É justamente devido à circunstância de o contribuinte poder ver-se colocado perante esta alternativa que, neste âmbito, podem surgir tensões com o direito à não autoincriminação, colocando-se a questão de saber se a conjugação do referido dever de colaboração com a possibilidade de utilização dos documentos facultados à administração tributária, no cumprimento do referido dever, como prova em procedimento criminal deduzido com fundamento nos resultados da referida inspeção, implica uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Tendo presente que, no campo tributário, a realidade sob fiscalização da administração estadual coincide, pelo menos parcialmente, com os elementos fácticos que integram os tipos incriminadores e que os poderes de fiscalização das situações tributárias dos contribuintes e os poderes de investigação no âmbito de processos de natureza penal, neste domínio, estão, no nosso ordenamento jurídico, atribuídos pela lei às mesmas entidades (cfr. artigos 40.º, n.º 2, 41.º, n.º 1, alíneas a) e b) 52.º e 59.º do RGIT), há o risco de que a atividade inspetiva funcione como uma antecâmara do processo penal, sendo no seu decurso que são recolhidos os elementos que motivam a instauração de um procedimento criminal.
Daí que tenha justificação que o princípio nemo tenetur se ipsum accusare ultrapasse as barreiras formais do processo penal e que, nestes casos, se estenda a esta interação entre o processo inspetivo e o processo penal, embora a proteção conferida por este princípio tenda a relativizar-se, cedendo mais facilmente no confronto com outros princípios, direitos ou interesses merecedores de tutela, que têm de ser harmonizados em concreto, por meio de uma compatibilização ou concordância prática, dado intervir em zona periférica da sua área de atuação.
Sendo certo que a imposição aos contribuintes de deveres de cooperação com a administração tributária, que poderá incluir a entrega, a solicitação desta, de documentos que, depois, num processo de natureza sancionatória penal, possam ser usados contra esses próprios contribuintes, constitui uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que se traduz numa restrição não desprezível daquele princípio, importa apreciar se tal restrição é ou não constitucionalmente aceitável.
A resposta a essa questão terá de passar pela verificação dos pressupostos enunciados no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, como condição da admissibilidade de restrições a direitos, liberdades e garantias: estarem essas restrições previstas em lei prévia e expressa, de forma a respeitar a exigência de legalidade e obedecerem tais restrições ao princípio da proporcionalidade, tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que extrai os direitos ao silêncio e à não autoincriminação no direito ao processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, já tem ponderado a aplicação desses direitos em situações semelhantes à do presente recurso (analisando esta jurisprudência, Ana Paula Dourado/ Augusto Silva Dias, em “Information duties, aggressive tax planning and the nemo tenetur se ipsum accusare in light of Article 6 (1) of the ECHR”, Kofler, G., Maduro, M., Pistone, P. (eds.), em Taxation and Human Rights in Europe and the World, pág 131 e seg, ed de 2011, da IBFD Publications, e Joana Costa, em “O princípio nemo tenetur na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na Revista do Ministério Público, Ano 32 n.º 128, pág. 117 e seg.).
Nos casos Funke v. França (Acórdão de 25 de Fevereiro de 1993), J.B. v. Suíça (Acórdão de 3 de Maio de 2001) e Shannon v. Reino Unido (Acórdão de 4 de Outubro de 2005), o TEDH sustentou que a aplicação de sanções à falta de colaboração de contribuintes na entrega de documentos ou na prestação de informações, sobre os quais já recaía a suspeita da prática de ilícitos criminais violava o artigo 6.º da Convenção. E no caso Saunders v. Reino Unido (Acórdão de 17 de Dezembro de 1996), na mesma linha, se decidiu que violava o mesmo artigo 6.º da Convenção, a utilização em processo penal de prova recolhida em investigação não judicial, mediante a colaboração do arguido, obtida sob coerção da aplicação de sanções, quando sobre ele já recaíam suspeitas da prática do crime pelo qual viria a ser acusado.
Já este Tribunal, no Acórdão n.º 461/11 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), relativamente à utilização em processo contraordenacional de elementos recolhidos pela Autoridade da Concorrência nas suas atividades de fiscalização e supervisão, entendeu estarmos perante uma restrição admissível do princípio da não auto-incriminação, tendo contudo, na sua argumentação valorado especialmente a circunstância de estarmos perante a possibilidade de aplicação de meras sanções contraordenacionais.
O mesmo concluíram Figueiredo Dias, Costa Andrade e Costa Pinto, relativamente a documentos recolhidos pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, posteriormente utilizados como prova em processo contraordenacional, movido pela mesma entidade (em pareceres publicados em “Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova”, Almedina, 2009).
Apesar de neste caso estarmos perante a utilização como prova de documentos em processo penal, o resultado da admissibilidade da compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare não deve ser diferente.
Assim, e começando pelo primeiro dos aludidos pressupostos de admissibilidade dessas compressões, dúvidas não restam no sentido de que as restrições em análise resultam de previsão legal prévia e expressa, com caráter geral e abstrato, como acima se revelou, mostrando-se por isso respeitadas as exigências decorrente do princípio da legalidade.
Por outro lado, e no que respeita ao segundo dos pressupostos, as restrições em causa são funcionalmente destinadas à salvaguarda de outros valores constitucionais. Com efeito, como é sabido, nas sociedades modernas, o direito tributário reveste-se de enorme complexidade, sendo que o sistema fiscal e as normas relativas ao procedimento tributário têm em vista a realização de tarefas fundamentais do Estado e a salvaguarda de outros valores constitucionais. É aliás, o que resulta do artigo 103.º, n.º 1, ao estabelecer que o sistema fiscal tem como finalidade a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. E é justamente essa importância do sistema fiscal que leva a que, no âmbito da fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais, se estabeleçam os referidos deveres de cooperação dos contribuintes, dos quais poderão resultar a compressão de alguns direitos destes, compressão essa que é entendida como necessária no sentido de evitar que aquela superior e pública finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida. Ou seja, tais restrições estão previstas no quadro das funções exercidas pela administração tributária destinadas ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, sendo que não se poderá deixar de reconhecer a importância e necessidade dessa fiscalização, sendo imprescindível quer a imposição de deveres de cooperação aos contribuintes, quer a possibilidade da posterior utilização dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificação de indícios de infração criminal.
Na verdade, no domínio tributário, a necessidade da imposição de deveres de cooperação é não só perfeitamente justificada, como dificilmente prescindível. Espraiando-se o fenómeno tributário nas sociedades contemporâneas pelos mais diversos tipos de imposto, aplicáveis a uma multiplicidade de atividades e situações, a sua realização seria impensável sem o recurso a instrumentos como o dever acessório de cooperação dos contribuintes, deslocando para a esfera destes uma série de atividades que auxiliam e substituem a administração tributária na sua função de liquidação e cobrança de impostos.
Por outro lado, como a aplicação duma sanção penal exige a prova da prática do ilícito imputado ao arguido, a inutilização dos elementos recolhidos durante a inspeção à situação tributária conduziria a uma quase certa imunidade penal, como resultado da colaboração verificada na fase inspetiva. Parafraseando Costa Pinto (na ob. cit. pág. 107): o cumprimento da lei na fase de inspeção acabaria por impedir o cumprimento da lei na fase sancionatória, não sendo possível que um sistema jurídico racional subsistisse com uma antinomia desta natureza.
E a restrição em causa respeita o critério da proporcionalidade, sendo adequada, isto é, constituindo um meio idóneo para a prossecução e proteção dos referidos interesses merecedores de proteção constitucional, e necessária, em virtude da mesma corresponder quer a um meio exigível no sentido de obter o fim da eficiência do sistema fiscal, objetivo esse que não se mostra que seria alcançável através de mecanismos alternativos que se revestiriam de excessiva onerosidade para a administração tributária, quer pelo dispêndio de recursos e de tempo, quer pelo risco de ineficácia, face à complexidade, dimensão e multiplicidade de atividades e situações a que têm de responder os modernos sistemas fiscais, no quadro de uma “Administração de massas”.
Acresce ainda que as referidas restrições respeitam a proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que se podem considerar equilibradas, visto que contém mecanismos flanqueadores que salvaguardam uma adequada ponderação dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, entre o direito que é objeto de restrição e dos valores ou interesses que justificam a restrição.
Com efeito, apesar da absoluta necessidade de cooperação dos contribuintes nas tarefas da administração tributária, não está completamente vedada a estes a possibilidade de recusar tal colaboração. De acordo com o artigo 63.º, n.º 4, na redação originária da LGT (a que, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro, corresponde atualmente, com pequenas alterações, o n.º 5) é legítimo ao contribuinte não cooperar na realização das diligências previstas no n.º 1, quanto as mesmas impliquem:
a) O acesso à habitação do contribuinte;
b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional, bancário ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado, salvo os casos de consentimento do titular ou de derrogação do dever de sigilo bancário pela administração tributária legalmente admitidos;
c) O acesso a factos da vida íntima dos cidadãos;
d) A violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei.
E na previsão desta última alínea não deixam de estarem incluídas as garantias de defesa em processo penal, designadamente o direito à não autoincriminação, o qual, como já vimos, é extensível à fase inspetiva tributária, havendo ainda quem sustente ser igualmente aplicável o disposto na alínea c), do n.º 2, do artigo 89.º, do Código de Procedimento Administrativo, ex vi do artigo 2.º, da LGT, na qual se reconhece legitimidade à recusa em colaborar sempre que isso implique a revelação de factos “puníveis, praticados pelo próprio interessado, pelo seu cônjuge ou por seu ascendente ou descendente, irmão ou afim dos mesmos graus” (Cfr. Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, na ob. cit., pág. 56).
E, em caso de oposição do contribuinte com fundamento nestas circunstâncias, «a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária» (n.º 5, do artigo 63.º, da LGT, na redação originária, correspondente ao atual n.º 6, por força de renumeração operada pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro).
Significa isto que, nas situações previstas no artigo 63.º, n.º 4, da redação originária da LGT (atual n.º 5), o contribuinte não está colocado, pura e simplesmente, perante a alternativa de cumprir o dever de cooperação, dando lugar a que a administração tributária venha a obter, à sua custa, a prova que sustenta a acusação por crime fiscal, ou de recusar a colaboração, sujeitando-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima por essa falta de colaboração, podendo legitimamente recusá-la, nos casos e termos acima referidos, o que constitui uma primeira válvula de escape que atenua as exigências decorrentes do dever de colaboração.
Além disso, assistirá também ao contribuinte sujeito a fiscalização, o direito a requerer a sua constituição como arguido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a comprovar a suspeita da prática de um crime, nos termos do artigo 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que permitirá que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto, designadamente o direito à não autoincriminação.
Finalmente, a utilização como prova em processo penal de documentos obtidos na atividade de fiscalização tributária, não deixará de ser proibida, nos termos do artigo 126.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, quando se revele que a entidade fiscalizadora tenha desencadeado ou prolongado deliberadamente a fase inspetiva, com a finalidade de recolher meios de prova para o processo penal a instaurar, abusando do dever de colaboração do contribuinte.
Assim, numa ponderação entre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e a restrição que ao mesmo é imposta no caso concreto e os valores constitucionais que se pretendem salvaguardar com essa restrição, é de entender que a mesma não se revela desproporcionada.
Pelo exposto, há que concluir que a interpretação normativa em questão não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o direito à não autoincriminação, incluído nas garantias de defesa do arguido em processo penal, asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer dos restantes direitos constitucionais invocados pelo Recorrente.
Deste modo, deve ser negado provimento ao recurso interposto.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte;
e, consequentemente,
b) negar provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 17 de junho de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura - Ana Guerra Martins – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.