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Proc. nº 191/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade. em que figura como recorrente o Ministério Público e como recorrida L..., SA, o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Évora proferiu a seguinte decisão, datada de 5 de Fevereiro de 2001:
(...) Ora, nos termos do artigo 237º, nº 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-lei nº 433/99, de 26 de Outubro - e este diploma tem aplicação ao presente caso, pois foram os autos instaurados depois do dia 01 de Janeiro de 2000 (vide o artigo 4º desse Decreto-lei) - , quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro. Por seu turno, o prazo da respectiva dedução é de trinta dias 'contados desde o dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos' (vide o citado artigo 237º, mas nº 3). No caso 'sub judice' não foi ainda vendido o bem penhorado, tendo o recebimento dos embargos suspendido a execução quanto ao mesmo, nos termos do artigo 356º do Código de Processo Civil, aplicável 'ex vi' do artigo 2º, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário. A penhora data de de Abril de 2000 e os embargos foram deduzidos tão só em 05 de Junho seguinte. Porém, pese embora tenham decorrido mais de 30 dias entre um facto e outro, vem a embargante invocar o conhecimento superveniente da ofensa
('a penhora dos bens agora em causa foi feita na ausência da sua proprietária, a qual só agora tomou conhecimento da mesma'), pelo que não podemos deixar de considerar que os embargos foram instaurados em tempo. E se as coisas se não passaram assim (isto é, se a embargante soube da penhora mais cedo), competia então à Fazenda Pública, enquanto embargada, dizê-lo, contestando isso, e provando que a embargante teve conhecimento da existência da penhora em data anterior àquela em que deduziu os embargos. Com efeito, segundo o artigo 343º, nº 2 do Código Civil, nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de deteminado facto, cabe ao réu a prova de o prazo ter já decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei. Como não temos conhecimento de qualquer outra solução especialmente consignada na lei para o caso dos embargos de terceiro, temos por assente caber à Representação da Fazenda Pública o ónus da prova do decurso do citado prazo. Esta nada disse sobre isso; os embargos são tempestivos. Uma palavra agora sobre a questão que tanto o Ilustre Representante da Fazenda Pública como o Digno Magistrado do Ministério Público erigiram em problema central dos autos: se aquele prazo de 30 dias pode ou não contar-se da data do conhecimento superveniente da ofensa. Vejamos:
É certo que o citado artigo 237º, nº 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário - que é a disposição aplicável aos autos - só se reporta ao dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou do direito e não ao do seu conhecimento superveniente.
É certo que o artigo 319º, nº 2 do Código de Processo Tributário anteriormente aplicável - aceitava essa contagem a partir de um tal conhecimento posterior.
É certo, portanto - e este é o argumento que mais impressiona a Fazenda e o Ministério Público - , que o legislador deixou cair, propositadamente ou não, aquela formulação anterior, omitindo-a no novo Código (e bem sabemos como tantas vezes são feitas as leis, que até é legítimo pensar que o que se passou foi que ninguém se preocupou com o problema). Mas também não deixa de ser verdade que o artigo 353º, n.° 2 do Código de Processo Civil mantém aquela possibilidade de contagem do prazo para dedução dos embargos desde a data 'em que o embargante teve conhecimento da ofensa' e que o artigo 9º, n.° 1 do Código Civil manda interpretar a lei 'tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico'. Então, como entender a interpretação agora propugnada nos autos se o Código de Procedimento e de Processo Tributário teve a intenção expressa de se harmonizar com as soluções do Código de Processo Civil (vide o seu preâmbulo, que é sempre uma preciosa ajuda à interpretação das suas soluções: 'A reforma do Código de Processo Civil efectuada pelos Decretos-Leis nºs 329-A/95, de 12 de Dezembro e
180/96, de 25 de Setembro, impõe também a harmonização com as suas disposições'; ou 'O processo tributário é processo especial, mas a evolução do processo civil não podia deixar de reflectir-se na evolução do processo tributário')? E, ademais, como harmonizar uma tal interpretação - tão profundamente cerceadora dos direitos e garantias de terceiros - com o que o legislador exarou naquele mesmo preâmbulo: 'Na execução fiscal avulta essencialmente a sua adequação ao modelo do novo processo civil, ... simultaneamente ampliando-se as garantias do executado e de terceeiros' (sublinhado nosso)? Atenção: ampliação das garantias de terceiros... Como tal, em face da argumentação aduzida nos dois sentidos (toda ela respeitável, naturalmente ), não podemos deixar de optar pela solução que permita aos terceiros ainda deduzir embargos contra um acto ofensivo da sua posse ou direito mesmo no prazo de 30 dias a contar do respectivo conhecimento superveniente e não só da data da ofensa. É esta a solução mais equilibrada dos interesses em jogo (os da entidade exequente e os dos terceiros) e a mais justa
(repare-se quão injusto é para um terceiro que vê atacados os seus bens não poder deduzir embargos a seguir ao conhecimento do ataque, ele que, justamente por ser terceiro, nenhuma possibilidade prática tem de saber da existência em 30 dias de uma penhora ou de um arresto - e não é a mesma coisa não poder deduzir embargos depois da venda, pois que neste caso há anúncios, editais à porta do prédio, em suma, mais publicidade e, portanto, possibilidade do terceiro saber do ataque que foi feito aos seus bens; nos 30 dias a seguir ao arresto ou à penhora não há praticamente publicidade nenhuma que alerte as pessoas, 'maxime' quando estas residem noutro local, como tantas vezes acontece). Para além de que - 'last, but not least' - se apresenta a interpretação que vem defendida pela Representação da Fazenda Pública e pelo Digno Magistrado do Ministério Público, salva melhor opinião, desconforme com a Constituição da República portuguesa e, por isso, totalmente inaplicável a quaisquer casos concretos (vide o seu artigo 204º). Com efeito, sairia desde logo violado o princípio da proporcionalidade das soluções legislativas que devem ser encontradas (seria um sacrifício desproporcionado imposto aos terceiros relativamente aos interesses da entidade exequente que se pretenderiam salvaguardar), o próprio princípio do acesso aos Tribunais (ínsito no seu artigo
20º, nº 1), e até o princípio da igualdade (previsto no artigo 13º), pois que não pode deixar de considerar-se a solução contida na norma em causa como completamente arbitrária e discricionária, encontrando o legislador um regime jurídico diferente no processo de execução fiscal para situações exacta e essencialmente iguais às que se encontram no processo de execução civil, sem se vislumbrarem quaisquer razões materiais ou racionais para tal diferenciação. A não se tratar de lapso legislativo, recusa-se, pois, 'hic et nunc', a aplicação do citado artigo 237º, n° 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário na interpretação de que não permite aos terceiros deduzir embargos nos 30 dias seguintes ao respectivo conhecimento da ofensa, embora se aceite que tão só o possam fazer até à venda dos bens. E, assim, se consideram os presentes embargos deduzidos em tempo, nada obstando a que se conheça do seu mérito.
(...)
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade da decisão de 5 de Fevereiro de 2001, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 237º, nº 3, do Código do Procedimento e Processo Tributário.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1° - É inconstitucional, por violação dos princípios do acesso ao direito, da igualdade e do Estado de direito democrático a interpretação normativa do nº 1 do artigo 237° do Código Procedimento e de Processo Tributário que se traduz em denegar - em sede de tempestividade dos embargos de terceiro - qualquer relevância à 'superveniência subjectiva' decorrente de o embargante só ter tido
(sem culpa) conhecimento da realização da penhora para além do prazo 'normal' da respectiva dedução, contado da realização 'objectiva' da penhora.
2° - Na verdade, tal interpretação, para além de obstar a que o titular do direito lesado com a penhora possa efectivá-lo em juízo, implica que sejam judicialmente vendidos bens que já se sabe que provavelmente não pertencem ao executado e não deviam ter sido penhorados na execução, criando para o terceiro
- proprietário o ónus de propor acção de reivindicação destinada a destruir a dita venda, abalando a legítima confiança de terceiro adquirente na estabilidade e validade da venda judicial.
3° - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
A recorrida não contra-alegou.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
3. O preceito cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida tem a seguinte redacção: Artigo 237º Função do incidente dos embargos de terceiro. Disposições aplicáveis
1 - Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro.
2 - Os embargos são deduzidos junto do órgão da execução fiscal.
3 - O prazo para dedução de embargos de terceiro é de 30 dias contados desde o dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos.
O tribunal recorrido considera que a norma em apreciação, ao consagrar como termo a quo do prazo para dedução de embargos de terceiro o dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito, mesmo no caso de conhecimento posterior da penhora, viola os princípios da proporcionalidade, do acesso aos tribunais e da igualdade.
Por seu turno, o recorrente considera que tal norma é inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de direito democrático e da igualdade.
4. A apreciação da questão de constitucionalidade normativa suscitada nos presentes autos reclama a explicitação da relevância do conhecimento do acto lesivo do direito por parte do terceiro, para efeito do início da contagem de prazo para dedução de embargos de terceiro.
A norma desaplicada, adoptando um critério estritamente objectivo e fixo, determina que a contagem do prazo para a dedução de embargos de terceiro se inicie no momento da prática do acto ofensivo do direito (independentemente, portanto, do momento em que o terceiro lesado tomar efectivo conhecimento da lesão, terceiro esse que, sublinhe-se, não é notificado da realização dos actos processuais).
5. O Tribunal Constitucional pronunciou-se diversas vezes sobre a conformidade à Constituição de várias dimensões normativas que consagravam como momento relevante, para efeito do início da contagem do prazo de impugnação de determinados actos, a data da publicação do acto e não a data do efectivo conhecimento por parte do interessado.
No Acórdão nº 489/97, de 2 de Julho (D.R., II Série, de 18 de Outubro de 1997), o Tribunal Constitucional, apreciando a conformidade à Constituição da norma do artigo 29º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, quando interpretada no sentido de que o prazo de interposição do recurso se conta da data da publicação do acto, quando esta seja obrigatória, e não da data da notificação ao interessado, considerou o seguinte: Sendo a notificação do acto administrativo essencial para o efectivo conhecimento pelos interessados dos actos da Administração susceptíveis de os atingir na sua esfera jurídica, seria irrazoável e claramente excessivo contar o prazo para o recurso contencioso da publicação de tais actos, quando esta seja obrigatória, em vez de tal contagem se fazer a partir da notificação. Tal significaria, na verdade, impôr aos interessados na eventual impugnação contenciosa dos actos administrativos lesivos dos seus direitos ou interesses um
ónus que poderia tornar particularmente oneroso o acesso à justiça administrativa (recte, o exercício do direito ao recurso contencioso). De facto, esse modo de contagem do prazo obrigá-los-ia a manterem-se atentos à publicação desses actos, se não quisessem correr o risco de ver caducar o direito à impugnação contenciosa. E isso, sem que se descubra qualquer interesse público nesse modo de contagem, pois que - repete-se - a notificação é, hoje, constitucionalmente obrigatória.
Por outro lado, no Acórdão nº 579/99, de 20 de Outubro, o Tribunal Constitucional apreciou a conformidade à Constituição da norma contida no artigo
169º, nº 2, alíneas a) e c), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, interpretada no sentido de o prazo a que se refere o nº 1 do mesmo preceito se contar da data da publicação do extracto da deliberação do Conselho Superior da Magistratura no Diário da República e não da respectiva notificação ao interessado. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional, invocando a fundamentação do Acórdão nº
489/97, concluiu, também, pela inconstitucionalidade da norma em apreciação.
Também no Acórdão nº 384/98, de 19 de Maio, o Tribunal Constitucional procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 172º, nº 4, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, interpretada no sentido de o recorrente, no momento em que ignora os fundamentos do acto que o afecta, dever: interpor recurso de tal acto, esclarecer que não pode alegar (uma vez que desconhece as razões que subjazem à interposição do recurso), pedir que o prazo para alegar seja prorrogado e solicitar certidão dos fundamentos da deliberação impugnada. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional considerou o seguinte:
9. A tutela constitucional do direito ao recurso contencioso, decorrente da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, na medida em que postula o exercício livre e esclarecido de tal direito (como forma de salvaguardar materialmente os interesses inerentes), não admite a consagração, no plano infraconstitucional, de exigências que, não se confundindo com o exercício do direito dentro de um prazo pré-definido, consubstanciem antes, e tão somente, condicionantes de tal exercício desprovidas de fundamento racional e sem qualquer conteúdo útil. Com efeito, devendo a interposição de qualquer recurso contencioso pressupor a plena estabilidade e intelegibilidade da decisão de que se pretende recorrer, não é constitucionalmente admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual e cuja consagração, nessa medida, não prossegue quaisquer interesses dignos de tutela. Ora, a impugnação de uma decisão pressupõe o conhecimento integral dos respectivos fundamentos. Enquanto o recorrente não tiver acesso ao raciocínio argumentativo que subjaz à decisão tomada, não pode formar a sua vontade de recorrer, porque não dispõe dos elementos que lhe permitem avaliar a justeza da decisão. Nessa medida, e tendo presente a eficácia persuasiva intraprocessual da fundamentação das decisões, pode afirmar-se que, antes de se dar a conhecer os fundamentos decisórios, não pode haver, porque do ponto de vista da racionalidade comunicativa não é concebível, uma legítima intenção de recorrer. Assim sendo, a exigência da interposição de um recurso num momento em que se desconhecem os fundamentos da decisão a impugnar (num momento em que, dir-se-ia, ainda não se pode saber se o recorrente efectivamente quer recorrer) não é equiparável à necessidade de interposição do recurso dentro de um prazo razoável
(decorrente da celeridade processual e da segurança e certeza jurídicas). Diferentemente, tal exigência traduz-se antes na imposição de uma formalidade limitadora do efectivo exercício do direito ao recurso e absolutamente alheia ao que possa ser a prossecução de um interesse racional e teleologicamente justificado. Nessa medida, aquela exigência afecta o núcleo fundamental do direito ao recurso, pelo que a norma que a consagra não é compatível com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20º, nº 1, da Constituição).
Por último, no Acórdão nº 148/2001, de 28 de Março, o Tribunal Constitucional apreciou a conformidade à Constituição da norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de o prazo para a interposição do recurso se dever contar da data do depósito da sentença na secretaria, ainda que a decisão seja ilegível (e tendo sido requerida cópia dactilografada). Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional sublinhou o seguinte:
(...) o reconhecimento do direito a exigir a entrega de cópia legível da decisão repercute-se, inevitavelmente, na determinação do termo a quo do prazo de interposição de recurso. Na verdade, a finalidade de tal direito, ou seja, a possibilidade de o arguido ter acesso ao conteúdo integral das decisões que o afectam consubstancia um dos requisitos necessários para que a contagem do prazo de recurso se possa legitimamente iniciar a partir de uma determinada data. Pode então afirmar-se que o direito ao recurso, pressupondo um total conhecimento do teor da decisão recorrida (ou a possibilidade de o obter), impõe que o prazo para a interposição do recurso só se conte a partir do momento em que o recorrente tenha a possibilidade efectiva de apreender o texto integral da decisão que pretende impugnar. No caso em apreciação tal momento apenas se verificou quando o recorrente foi notificado do texto da sentença, sob a forma dactilografada da decisão (uma vez que a versão manuscrita foi considerada no processo como ilegível). Foi só a partir desse momento que o direito ao recurso pôde ser eficazmente exercido pelo arguido. A contagem do prazo de recurso em momento anterior consubstancia, pois, uma limitação injustificada do direito ao recurso, uma vez que implica o decurso do prazo numa fase em que o sujeito processual ainda não sabe se quer recorrer (se tem fundamento para tal), precisamente porque não pode (por causa que não lhe é imputável) analisar o texto da decisão que o afecta. A dimensão normativa que determina a contagem do prazo de recurso a partir do depósito da sentença ilegível na secretaria é, portanto, inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais e das garantias de defesa, nomeadamente o direito ao recurso, consagrados nos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição (...)
6. Da jurisprudência invocada resulta que o Tribunal Constitucional tem reconhecido relevância ao momento em que o interessado adquire efectivo conhecimento do conteúdo do acto que pretende impugnar para efeito de início de contagem do prazo da respectiva impugnação. Nessa medida, o Tribunal Constitucional tem julgado inconstitucionais dimensões normativas que, desconsiderando tal momento, determinam que o prazo de impugnação se deve contar a partir da data da realização de diligências que não facultam ao interessado o conhecimento efectivo do acto que pretende impugnar.
Ora, a norma em apreciação nos presentes autos limita- se a dizer, como se viu, que o prazo para a dedução dos embargos de terceiro se conte a partir da data da prática do acto lesivo do interesse ou direitos do terceiro. O direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20º da Constituição, impõe que os mecanismos de tutela de direitos consagrados no plano infraconstitucional assegurem uma efectiva possibilidade de recurso à tutela jurisdicional. Com efeito, não basta, para que se possa afirmar adequadamente garantido o acesso ao Direito, que o legislador infraconstitucional consagre soluções formal e aparentemente eficazes (soluções essas que, sublinhe-se, funcionam de modo plenamente satisfatório em certos casos), mas que inviabilizam em absoluto o recurso aos tribunais em algumas constelações de hipóteses. É, antes, necessário que as soluções consagradas apresentem a flexibilidade suficiente para dar resposta adequada às especificidades das diversas situações, sob pena de afectação infundada e iníqua da posição de determinados sujeitos. O terceiro, in casu, tomou conhecimento da penhora do bem de que é proprietário em data posterior aos trinta dias a que se refere a norma do artigo 237º, nº 3, do Código do Procedimento e Processo Tributário, sem que tal circunstância lhe possa ser imputada. Por outro lado, os embargos foram deduzidos antes da venda do bem.
A solução normativa em apreciação, ao impor o início da contagem do prazo para a dedução dos embargos de terceiro da data da prática do acto lesivo
(no caso, uma penhora), sem atender ao momento em que o terceiro toma conhecimento da lesão do seu direito, vedaria a possibilidade de impugnar judicialmente a penhora a quem só toma conhecimento da sua realização depois de decorridos os referidos trinta dias. Sublinhe-se que, no caso dos autos, o terceiro não teve a possibilidade de tomar conhecimento da realização da penhora no prazo a que se refere o preceito desaplicado, tendo deduzido os embargos de executado antes da venda do bem penhorado e imediatamente após ter tomado conhecimento da penhora.
Assim, a norma em questão, nesta interpretação, viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição. Na verdade, por força da solução normativa em apreciação, ao terceiro, proprietário do bem penhorado, seria vedada a possibilidade de reagir contra uma diligência que afecta a sua propriedade, vendo-se o embargante, desse modo, impedido de fazer valer em juízo a sua pretensão, sendo inquestionável, por outro lado, que a impossibilidade de reagir no prazo a que se refere o mencionado artigo 237º, n.º
3, não lhe foi imputável, e que os embargos foram deduzidos antes da venda do bem.
7. Ao que se deixa dito, apenas se acrescentará que o Código de Processo Civil, no artigo 353º, nº 2, atribui relevância ao momento do
'conhecimento da ofensa' para efeito de contagem do prazo de dedução de embargos de terceiro.
Por último, realçar-se-á que não colide com a conclusão alcançada a possibilidade que sempre restaria ao proprietário de instaurar uma acção de reivindicação da propriedade, nos termos do artigo 909º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Se é verdade que esse será o único mecanismo de reacção no caso de o terceiro apenas tomar conhecimento da afectação do seu direito após a venda do bem, já não se compreenderá que o Estado proceda à venda de um bem num momento em que já tem conhecimento de que esse bem não pertence ao executado (num momento, portanto, em que a verdade da situação ainda pode ser reposta). A isso se opõe o princípio da boa fé no âmbito das relações entre o Estado e os particulares, inerente ao princípio do Estado de direito democrático.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º da Constituição, a norma do artigo
237º, nº 3, do Código do Procedimento e Processo Tributário, interpretada como determinando o início da contagem do prazo para dedução de embargos de terceiro da data de realização da penhora, arresto ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, mesmo nos casos em que o terceiro só toma conhecimento do acto ofensivo da posse ou direito subsequentemente à realização deste, mas antes da venda do bem. O Tribunal Constitucional confirma, consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Lisboa, 24 de Outubro de 2001- Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa