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Processo n.º 380/2003
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., S.A., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25 de março de 2003. No seu requerimento de recurso, a recorrente esclarece que “o âmbito do recurso delimita-se, por um lado, à apreciação da inconstitucionalidade decorrente da violação dos princípios da igualdade e imparcialidade na interpretação e aplicação da Base I da Lei 1/73, de 01.01, (…) por outro, a inconstitucionalidade que decorre da violação dos princípios da proporcionalidade em sentido estrito, da adequação e imparcialidade, ao entender-se que os poderes de fiscalização da Base X da mesma Lei 1/73 e do nº 2 do artigo 6º do DL 215-B/75, de 30.04.75, contendem com a independência sindical da UGT – União Geral de Trabalhadores. Os princípios ora referidos estão plasmados nos artigos 13º, 18º e 266º da Constituição da República Portuguesa”.
2. Na origem dos presentes autos está o despacho proferido pelo Ministro das Finanças, em 7 de março de 1997, através do qual este, ao abrigo das disposições conjugadas das bases I e II da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, e do n.º 1 do artigo 66.º da Lei n.º 52-C/96, de 27 de dezembro, concedeu o aval do Estado ao contrato de empréstimo a celebrar pela União Geral de Trabalhadores – UGT, com a A., S.A. (A.), até ao montante máximo de 600 000 contos. Após a prolação de tal despacho, a A. e a UGT celebraram o contrato de empréstimo ali avalizado. Por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de fevereiro de 2000, foi o mencionado despacho anulado, por se ter entendido que nele concorriam os vícios de violação da Base I da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, na medida em que a UGT não poderia ser qualificada como instituto público ou empresa e que com tal ato se violara o princípio da independência das associações sindicais, consagrado no artigo 55.º, n.º 4, da CRP e 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 215-B/75, de 30 de abril. Inconformada, a A. interpôs recurso para o pleno do Supremo Tribunal Administrativo.
O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 25 de março de 2003, negou provimento ao recurso jurisdicional:
«(…)
Na arguida violação daquela Base I, da Lei n.º 1/73, o que basicamente era invocado traduzia-se na circunstância de aquele normativo não contemplar como seus destinatários as associações sindicais, mas apenas, para o que aqui interessa, as empresas nacionais, sendo que era taxativa uma tal enumeração (cf. conclusões d) a i) das alegações do Ministério Público no recurso contencioso.
O acórdão recorrido acolheu tal invocação.
(…)
Vejamos então se o conceito de empresa que interessa surpreender para ajuizar da verificação do vício será aquele que vem propugnado pelos recorrentes, ou o consagrado no acórdão recorrido.
(...)
Adiante-se desde já que, reconhecendo embora o caráter controverso da questão, e pese embora as judiciosas ponderações expendidas nos autos em contrário, propende-se no sentido de que a UGT não configura uma empresa, concretamente, para os fins do ato de concessão de aval que está em causa nos autos.
A pedra de toque que fundamenta a conclusão para que se tende é conferida, desde logo, pela natureza de associação sindical da UGT e pelas finalidades que estatutariamente lhe são assinaladas.
Efetivamente, como é consignado no acórdão recorrido, de acordo com os respetivos estatutos a UGT é uma confederação constituída pelas associações sindicais democráticas (cf. art. 1.º), prosseguindo como fim geral, a edificação de uma sociedade mais justa, livre e igualitária, da qual sejam banidas todas as formas de opressão, exploração e alienação (cf. art. 9.º), e tendo como fins específicos, entre outros: a defesa das liberdades individuais e coletivas e os interesses e direitos dos trabalhadores, na perspetiva da consolidação da democracia pluralista e da democracia social e económica (…)
Antes de nos determos na Lei 1/73, e na linha do acórdão recorrido, importa realçar que, a empresa corresponde a uma noção económica cuja recuperação pelo Direito tem sido ciclicamente ensaiada, como modo de renovar a dogmática juscomercial. Assim, e encurtando o excurso doutamente levado a efeito no acórdão recorrido, deve dizer-se, em consonância com o parecer do C.C.P.G.R, inserto a fls 158 e segs., que, a empresa deve ser entendida como “uma organização de fatores de produção prosseguindo determinadas finalidades e com uma titulação própria, a qual pode revestir, no mundo jurídico, as mais diversas formas”, noção que pouco se afasta da que é dada pelo Prof. A. Menezes Cordeiro (in Manual do Direito do Trabalho, Almedina, reimpressão, pág. 117/8), “como unidades produtoras de bens, através de uma particular junção entre bens produtivas, trabalho humano e organização”.
Refira-se ainda que o legislador, embora no artº 230º do Código Comercial não forneça qualquer definição legal de empresa, fê-lo porém no artº. 1.º do Decreto-lei n.º 260/76, de 8 de abril (em vigor à data da concessão do aval e hoje revogado pelo Decreto-lei nº 558/99, de 17/DEZ) e bem assim, no art. 2º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de abril.
Assim, refere aquele art.º 1.º do Decreto-Lei nº 260/76 que “1º - São empresas públicas as empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, para a exploração de atividades de natureza económica ou social, tendo em vista a construção e desenvolvimento de uma sociedade democrática e de uma economia socialista.”
Por seu lado o referido art.º 2º do Decreto-Lei nº 132/93 (C.P.E.R.E.F) reza que:
«Considera-se empresa, para efeito do disposto no presente diploma, toda a organização dos fatores de produção destinada ao exercício de qualquer atividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços.»
Parece assim ressaltar do exposto que, pese embora seja temerário afirmar um conceito unitário de empresa, pode no entanto, na linha do decidido, e em contrário do que os recorrentes sustentam, afirmar-se que à mesma preside efetivamente um escopo principal – desenvolver uma atividade produtiva, ainda que de fim económico não lucrativo.
Ora, tendo em vista o que acima se disse sobre a natureza e finalidades da U.G.T. (cf. art.º 9º dos Estatutos e art. 4º do Decreto-Lei nº 215-B/75, de 30/abril), sendo certo que tal entidade não visa primordialmente desenvolver qualquer atividade produtiva mas, essencialmente, defender os trabalhadores da eventual ameaça do patronato (cf. o citado art. 9º dos Estatutos), e ainda a reconversão e a reciclagem profissional de molde a obstar ao desemprego tecnológico (cf. alínea m) do citado artigo), no que se inserem as ações de formação enunciadas no A.C.I. (a que tanto se apegam os recorrentes em abono da sua tese), deve concluir-se que a mesma não pode ser qualificada de empresa.
Atentando agora na Lei nº 1/73, o conceito de empresa – como resulta do articulado da lei e dos elementos interpretativos disponíveis, mais explicitamente, dos elementos teleológico, sistemático e histórico (como é sublinhado no acórdão recorrido e no aludido parecer do CCPGR) – pressupõe a conjugação de dois aspetos fundamentais: por um lado, a existência de uma organização integrada na atividade produtiva ou, na terminologia da lei, na «economia nacional»; e, por outro, uma certa forma de expressão ou enquadramento jurídicos dessa organização; numa aproximação que poderá aqui ser utilizada, as empresas são «as formas de organização com características substancial e formal (jurídica) de índole capitalista, normalmente contempladas, como objeto principal ou exclusivo, pelo Direito Comercial.
Ainda segundo aquela doutrina, não reveste estas características nem é abrangido pelo conceito de empresa contemplado na Lei nº 1/73, como já antes se aludiu, o desenvolvimento pontual de uma atividade eventualmente qualificável como comercial ou económica levada a cabo por entidades que não têm, nem podem ter, como objeto social o exercício de atividades comerciais.
Refira-se ainda que relativamente às tentativas de alteração do regime jurídico dos avales, na redefinição do elenco das entidades beneficiárias de tal garantia, nunca, em qualquer dos projetos e propostas de lei apresentados, se propôs o seu alargamento a associações sindicais. O que, aliás, bem se compreende, visto que tal questão contende com o auxílio a agentes económicos, sendo que aquelas associações não se encontram vocacionadas para intervirem de forma direta no sistema produtivo, como já antes se viu.
(…)
Donde deve concluir-se que andou bem o acórdão recorrido quando concluiu que no ato impugnado concorria o vício de violação da Base I da Lei 1/73.
O recorrente contencioso arguiu ainda o ato impugnado de violação do princípio da independência das associações sindicais relativamente ao Estado, decorrente do artº 55.º nº 4 da CRP e concretizado no Dec. Lei n.º 215-B/75 (art.º 60.º, n.º 1), e tendo em vista o disposto na Base X da Lei 1/73, tudo como fora invocado sob as conclusões i) a m) da alegação.
(…)
Ora, ainda segundo o aresto em análise, o estatuído na citada Base X, ao conceder ao Governo “o direito de fiscalizar a atividade da entidade beneficiária da garantia…”, mesmo que apenas restrita aos aspetos relacionados com a operação de crédito e com o destino da quantia concedida, não seria compatível com o princípio da independência, pois que teria sempre e necessariamente reflexos diretos na direção das Associações Sindicais.”
Será assim?
É indiscutível que o princípio da independência das associações sindicais relativamente ao Estado constitui um valor constitucionalmente consagrado, o qual radica na proteção da própria liberdade sindical.
Ora, tal princípio da independência e autonomia repele qualquer ingerência do Estado na organização e direção das associações sindicais.
(…)
Assim sendo, o direito de fiscalizar a atividade da entidade beneficiária da garantia, tanto do ponto de vista técnico e económico como do ponto de vista administrativo e financeiro, de acordo com o estatuído naquela base X da Lei nº 1/73, não se afigura compatível com o princípio da independência e da autonomia de que as mesmas gozam, e isto independentemente do aval do Estado deva ser considerado, quer como uma forma de apoio direto, quer como um mecanismo de crédito integrado nos tipos de auxílio por parte do Estado, quer ainda como ato de fomento da sua atividade.
Na verdade, passando o Estado, com a prolação do ACI, a deter o direito de fiscalizar a atividade da associação apoiada, naqueles termos, mais que o seu distanciamento em relação ao mesmo estado, fica legitimada alguma ingerência deste na sua organização e direção, com a consequente quebra da sua independência, assim afrontando o enunciado comando constitucional contido no citado n.º 4 do art.º 5.º da CRP e 6.º, n.º 2, do Dec. Lei 215-B/75.
Face ao que se deixou exposto, à referida conclusão não obsta o facto de tais poderes de fiscalização se deverem considerar, como vem alegado, circunscritos à atividade da entidade beneficiária que consubstancia o “empreendimento ou projeto de manifesto interesse para a economia nacional” justificativo da concessão do aval do Estado ou outras com ela diretamente conexionadas, e bem assim que no âmbito das ações de formação profissional quer o Estado, quer a Comissão Europeia detenham amplos poderes de fiscalização, e que tal atividade das entidades beneficiárias esteja devidamente autonomizada do ponto de vista funcional e contabilístico.
É que, precisamente a circunstância de dever controlar-se a afetação do apoio concedido à verificação da finalidade que lhe é legalmente imposta pelo nº 1 da citada Base II é que é de molde a deixar em aberto a legitimidade da aludida ingerência na organização e direção da entidade apoiada, com a consequente quebra da sua independência.
(…)»
3. Notificada para o efeito, veio a recorrente apresentar alegações, que concluiu do seguinte modo:
«(...)
1. Estando, embora, em causa nos presentes autos normas atualmente revogadas (as constantes da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro), há interesse processual no conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas.
2. A Base I da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, quando interpretada no sentido de conter um elenco taxativo de categorias de entidades suscetíveis de beneficiarem de avales do Estado, com desconsideração de outras entidades que desenvolvam atividades económicas de relevante interesse público, cuja prossecução eficiente dependa da obtenção dessa garantia.
3. Para o caso de se entender que o referido elenco é taxativo, só uma interpretação atualista e abrangente do conceito de “empresa” poderá salvar a referida norma da inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade.
4. Não existe qualquer fundamento sério para a interpretação restritiva e excludente da Base I da Lei n.º 1/73 adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo. Uma tal leitura está presa ao momento da emissão da norma e, sobretudo, ignora as múltiplas normas legais que conhecem que é arbitrário tomar à letra e restritivamente o preceito legal em causa.
5. O conceito atual de empresa, por influência do Direito Comunitário da Concorrência, basta-se com a presença de uma organização de pessoas e bens que tenha por objeto o exercício de uma atividade económica traduzida na oferta de bens e serviços em determinado mercado, independentemente do estatuto jurídico dessa entidade e do seu modo de funcionamento.
6. Nos autos está em causa a atividade de promoção de ações de formação profissional, disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 401/91 e pelo Decreto-lei n.º 405/91, ambos de 16 de outubro, em concretização da alínea a) do n.º 2 do artigo 58.º da Constituição. O regime jurídico instituído por estes diplomas demonstra i) que o legislador reconhece que a atividade de formação profissional é fundamental do ponto de vista económico e social; ii) que as associações sindicais podem, além das atividades sindicais “clássicas”, de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores perante as entidades patronais, ter um papel muito importante no cumprimento do objetivo constitucional da aposta na formação profissional; e que iii) a nossa ordem jurídico-legal conforma que, atuando os sindicatos no campo da formação profissional como verdadeiros agentes económicos, não existe qualquer fundamento sério para a exclusão das associações sindicais do âmbito de aplicação da norma que prevê o financiamento correspondente.
7. À UGT foi concedido um aval como garantia de empréstimo bancário para, dentro de condicionalismo legais, prosseguir objetivos sociais e económicos constitucionalmente estabelecidos, de relevante interesse público e integrantes dos seus fins estatutários. A interpretação normativa conducente à insusceptibilidade de a UGT integrar o conceito de empresa determina, pois, uma restrição injustificada e ilegítima dos meios de atuação da UGT para a prossecução dos seus fins, em manifesta violação do princípio da igualdade.
8. Contra este entendimento não procede a consideração de que a fiscalização da atividade beneficiária do aval, prevista na Base X da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, tem, sempre e necessariamente, reflexos diretos na direção da associação sindical e, por isso, contende com o princípio da independência das associações sindicais, consagrado no artigo 55.º, n.º 4 da Constituição.
9. Não tem, na verdade, justificação jurídico-constitucional o entendimento segundo o qual a Base X da mesma Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, em conjugação com o n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-lei n.º 215-B/75, de 30 de abril (Lei Sindical) tem, sempre e necessariamente, reflexos diretos na direção da associação sindical e, por isso, contende com o princípio da independência das associações sindicais (artigo 55.º, n.º 4, da Constituição).
(...)»
Já o Ministério Público contra-alegou considerando que «a norma constante da Base I da Lei nº 1/73, de 2 de janeiro, interpretada em termos de o conceito de “empresa”, nele previsto como delimitador da legitimidade da concessão de aval do Estado – resultando excluídas as associações sindicais, atenta a sua peculiar natureza e estatuto constitucional de independência e autonomia, mesmo quando exerçam, em termos acessórios e parcelares atividades de formação profissional - não viola o princípio constitucional da igualdade, já que tal dualidade de tratamentos tem fundamento material bastante, não se configurando a diversidade de regimes como solução legislativa “arbitrária” ou “discricionária”».
4. Os autos foram redistribuídos em 28 de junho de 2013.
5. Em face do despacho de fls. 1039, pelo qual se admitiu a possibilidade de o Tribunal não vir a conhecer da segunda questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de interposição de recurso, veio o Ministério Público dar o seu acordo aos motivos nele expendidos. Notificada, a recorrente – A. – não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A. Questão prévia
6. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
Ora, não é isso que sucede in casu no que concerne à segunda questão de constitucionalidade enunciada pelo recorrente, relativa “à inconstitucionalidade que decorre da violação dos princípios da proporcionalidade em sentido estrito, da adequação e imparcialidade, ao entender-se que os poderes de fiscalização da Base X da mesma Lei 1/73 e do n.º 2 do art. 6º do DL 215-B/75, de 30.04.75, contendem com a independência sindical da UGT”. Com efeito, tal norma não foi ratio decidendi da decisão recorrida, porquanto é patente que tal decisão não a aplicou, servindo-se dela a título meramente coadjuvante da interpretação da norma da Base I. Mesmo que assim não se entenda, é também evidente que, tendo o tribunal recorrido proferido uma decisão positiva de inconstitucionalidade a propósito daqueles normativos, deveria o recurso de constitucionalidade ter sido, nesta parte, interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC e não abrigo da mencionada alínea b).
B. Quanto à primeira questão de constitucionalidade
7. Resolvida a questão prévia, o objeto do presente recurso de constitucionalidade é integrado tão só pela norma constante da Base I, da Lei n.º 1/73, de 1 de janeiro, na dimensão perfilhada pelo tribunal recorrido, segundo a qual as associações sindicais, maxime, a UGT – União Geral dos Trabalhadores, não integram o seu âmbito de aplicação.
Deste resultado interpretativo, argumenta a recorrente, resulta uma violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
Da conformidade ou desconformidade de tal interpretação normativa com a Constituição depende, afinal, a validade do despacho proferido pelo Ministro das Finanças, em 7 de março de 1997, através do qual se concedeu o aval do Estado ao contrato de empréstimo a celebrar pela União Geral de Trabalhadores – UGT, com a A., S.A. (A.), até ao montante máximo de 600 000 contos. Assume a Base I, da Lei n.º 1/73, de 1 de janeiro, entretanto revogada pelo artigo 28.º, da Lei n.º 112/97, de 16 de setembro, a seguinte redação:
«(…)
CAPÍTULO I
Da concessão de avales do Estado por ato administrativo
BASE I
É autorizado o Ministro das Finanças a prestar, por uma ou mais vezes, o aval do Estado a operações de crédito interno ou externo a realizar pelas províncias ultramarinas, por institutos públicos ou empresas nacionais.
(…)»
8. A recorrente argumenta, fundamentalmente, atenta a dogmática estabilizada do princípio da igualdade e da proibição do arbítrio legislativo, que à exclusão das associações sindicais do âmbito de aplicação da Base I não está subjacente – como deveria – um fundamento material justificativo da diferenciação de tratamento e dador de sentido e de racionalidade a tal diferenciação. Para conclusão contribuem uma série de razões, entre as quais o facto de os sucessivos governos terem concedido avales a um conjunto alargado de entidades (v.g., municípios, regiões autónomas, grémios, comissões de trabalhadores, cooperativas, universidades, fundações, associações públicas e até bancos centrais de países estrangeiros), o que revela a prevalência que vem sendo conferida, nessa atribuição, ao critério objetivo do interesse nacional (cfr., em sentido idêntico, Eduardo Paz Ferreira, “O aval do Estado”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Raul Ventura, vol. II, Almedina, 2003, p. 1004); mas também a circunstância de as associações sindicais, para efeitos do direito europeu e do direito da concorrência, poderem ser tratadas como “empresas”, na medida em que desenvolvam uma atividade económica e de, no domínio da formação profissional, ascenderem a verdadeiros “agentes económicos”, como demonstram os Decretos-Lei n.ºs 401/91 e 405/91, de 16 de outubro.
Este arrazoado não vinga, a nosso ver, pelas razões que seguidamente se sobrelevam.
Em primeiro lugar, de pouco ou nada serve aos recorrentes invocar o critério mais ou menos alargado seguido pela prática administrativa em matéria de concessão de avales. Isso relevaria, hipoteticamente, para efeitos de controlo da atividade administrativa, mormente ao nível dos princípios da igualdade ou da segurança jurídica, mas não quando o que está em causa é a apreciação do arbítrio do legislador na construção da hipótese ou previsão do preceito (cfr., por exemplo, o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 15 de março de 1988).
Cumpre precisar, ainda, que ao Tribunal Constitucional não incumbe apurar da bondade do iter hermenêutico percorrido pelo Supremo Tribunal Administrativo ou do caráter taxativo ou meramente exemplificativo do elenco constante da Base I, nem tampouco da admissibilidade de uma interpretação extensiva ou analógica suscetível de incluir naquele elenco entidades nele não expressamente mencionadas. Na verdade, a tarefa que se impõe é a de, a partir do produto de tal percurso, sobrelevar o critério de seleção dos beneficiários dos avales e ajuizar da razoabilidade e racionalidade de tal critério à luz da teleologia do tratamento jurídico que se pretende outorgar com o instrumento normativo em causa (assim, Maria Glória Garcia, Estudos sobre o Princípio da Igualdade, Almedina, 2005, p. 15).
Isso mesmo evidenciam a doutrina e a jurisprudência constitucionais sobre o tema. Esta última vem reiteradamente avançando que “o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diferentes forem as situações que as disposições normativas visam regular”. Por outras palavras, “o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (...), ou sem qualquer justificação objetiva e racional” (cfr. o acórdão n.º 186/90, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
O princípio da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, é antes um critério negativo que implica uma limitação do poder de controlo do juiz.
Destarte, o princípio da igualdade só será violado quando “o critério valorativo que permite a qualificação da igualdade das situações se não conexiona com o fim que se pretende atingir, ou ainda quando, havendo conexão, ela é manifestamente insuficiente ou desrazoável para atingir o fim em vista” (Maria Glória Garcia, op. cit., p. 57). As insuficiências deste entendimento, que abre a porta à materialização do princípio mas não contém uma orientação concreta sobre o seu conteúdo, justificaram alguns desenvolvimentos jurisprudenciais mais intrusivos, vertidos, entre muitos outros, no acórdão n.º 330/93 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se esclareceu que “para se poder reconhecer um fundamento material ao desigual tratamento normativo de situações essencialmente iguais, deve aquele prosseguir um fim legítimo, ser adequado e necessário para realizar tal fim e manter uma relação de equitativa adequação com o valor que subjaz ao fim visado”.
9. Ora, o aval deve ser entendido como “o ato unilateral pelo qual o Estado garante o cumprimento de dívidas de outras entidades, assumindo em caso de incumprimento as respetivas responsabilidades perante os credores” (cfr. Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 1992, p. 142).
Recorde-se que a Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, veio revogar o regime jurídico introduzidos pelos Decretos-leis n.ºs 43710, de 24 de maio de 1961, e 46261, de 29 de março de 1965. Através destes, admitiu-se um recurso genérico à figura do aval, pretendendo-se com isso que o permitir que o Estado garantisse dívidas de empresas nacionais que contraíssem empréstimos internacionais, desde que tal se justificasse em razão da natureza e importância do objeto dessas empresas e da segurança que elas oferecessem ao Estado (cfr. artigo 1.º, do Decreto-lei n.º 43710, de 24 de maio de 1961). Aliás, como esclarece o preâmbulo de tal diploma, “é natural que esta garantia do Estado só seja concedida naqueles casos em que o vulto e a natureza do empreendimento se revistam da maior importância para a estabilidade e o progresso económico do país e as empresas a que o financiamento externo for feito reúnam todas as condições que o Governo julgar necessárias”.
Do exposto resulta que a concessão do aval obedecia a uma política seletiva, sujeita a determinados máximos, e que permitia ao Estado transformar, até ao ano seguinte ao pagamento de qualquer prestação por ele efetuada, o crédito daí resultante em ações da empresa devedora (cfr. o n.º 3 do artigo 4.º e o artigo 5.º, do Decreto-lei n.º 43710, de 24 de maio de 1961).
A inovação trazida pela Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, foi a de autorizar o Ministério das Finanças a conceder igualmente o aval do Estado a operações de crédito interno, no sentido de acelerar o desenvolvimento económico e social do país, outorgando ao Governo, em contrapartida, um elenco de garantias mínimas, entre as quais se destaca o direito de fiscalizar o exercício das entidades avalizadas durante o período em que o aval produzir os seus efeitos, e a instituição de um fundo de garantia constituído com o produto de uma taxa especial exigível aos beneficiários do aval do Estado, a fim de prevenir a cobertura de eventuais prejuízos do Tesouro (cfr. as bases X e XI da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro). Como se deteta, o diploma permanece totalmente alheio ao potencial conflito entre o aval e as questões da distorção da concorrência (Eduardo Paz Ferreira, “O aval do Estado”, cit., p. 1002).
Às empresas nacionais, que já figuravam no âmbito de aplicação do Decreto-lei n.º 43710, de 24 de maio de 1961, acrescentam-se agora as províncias ultramarinas e os institutos públicos (cfr. Base I da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro), continuando a estar em causa tão-só “empreendimentos e projetos de manifesto interesse para a economia nacional ou em que o Estado tenha participação que justifique a prestação dessa garantia e, em qualquer caso, se verifique não poder o financiamento realizar-se satisfatoriamente sem o referido aval” (cfr. a Base II da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro). Aliás, o n.º 2 da Base II avança que, sendo a operação de crédito proposta por empresa privada, o aval só poderá ser concedido após verificação de que a empresa oferece segurança suficiente para fazer face às responsabilidades que pretende assumir, designadamente pelas suas características económicas, estrutura financeira e orgânica administrativa.
O regime jurídico instituído pela Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, viria a ser revogado pela Lei n.º 112/97, de 16 de setembro, que introduziu o novo regime jurídico da concessão de garantias pessoais pelo Estado ou por outras pessoas coletivas de direito público. Tal regime reitera o caráter excecional dessas garantias pessoais (cfr. o artigo 1.º, n.º 2), permitindo a sua concessão tão-somente em situações de manifesto interesse para a economia nacional, e desde que respeitados os princípios da igualdade e as regras da concorrência nacionais e comunitárias. Na verdade, a nova lei de alguma forma alarga o âmbito subjetivo dos beneficiários das garantias pessoais (fiança ou aval), estatuindo que as mesmas se destinam a realizar operações financeiras, nacionais ou internacionais, de que sejam beneficiárias entidades públicas, empresas nacionais ou outras empresas que legalmente gozem de igualdade de tratamento (cfr. o artigo 6.º). Vale a pena atentar no artigo 9.º deste diploma, pelo qual se fixam as condições cumulativas de que está dependente a concessão de garantia pessoal. São elas:
«(...)
a) Ter o Estado participação na empresa ou interesse no empreendimento, projeto ou operação financeira que justifique a concessão de garantia;
b) Existir um projeto concreto de investimento ou um estudo especificado da operação a garantir, bem como uma programação financeira rigorosa;
c) Apresentar o beneficiário da garantia características económicas, financeiras e organizacionais que ofereçam segurança suficiente para fazer face às responsabilidades que pretende assumir;
d) A concessão de garantia se mostre imprescindível para a realização da operação de crédito ou financeira, designadamente por insuficiência ou inexistência de outras garantias.
(...)»
O n.º 2 daquele preceito estipula que àquelas condições cumulativas acresce ainda um pressuposto funcional, na medida em que os projetos e empreendimentos fomentados devem visar pelos menos um dos seguintes objetivos:
«(...)
a) Realização de investimentos de reduzida rentabilidade, designadamente tendo em conta o risco envolvido, desde que integrados em empreendimentos de interesse económico e social;
b) Realização de investimentos de rentabilidade adequada, mas em que a entidade beneficiária, sendo economicamente viável, apresente, contudo, deficiência transitória da sua situação financeira.
c) Manutenção da exploração enquanto se proceda, por intermédio de qualquer entidade designada pelo Governo, ao estudo e concretização de ações de viabilização;
d) Concessão de auxílio financeiro extraordinário.
(...)»
Portanto, considerando a sucessão de regimes jurídicos, tudo se conjuga no sentido de que a teleologia subjacente à Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro – afinal, essencial para apurar da racionalidade do critério escolhido pelo legislador na definição dos potenciais beneficiários da prestação de garantias – foi a de implementar um expediente extraordinário vocacionado para assegurar a realização de operações de crédito às quais estivessem subjacentes projetos de manifesto interesse nacional, ou seja, atividades económicas de troca de bens e serviços de dimensão ou projeção consideráveis para a economia nacional, que, independentemente de serem dirigidas à obtenção de lucro, tenham implícito um risco económico que inviabilize o seu financiamento sem a prestação de uma garantia pessoal por parte do Estado.
10. Quanto às associações sindicais, basta recordar que constituem um grupo significativamente vasto, onde se incluem os sindicatos, as federações, as uniões e as confederações (cfr. o artigo 440.º, n.º 3, do Código do Trabalho, na sua versão atual), e que visam a defesa e promoção dos interesses socioprofissionais dos trabalhadores que as compõem. Concretamente, entre os direitos das associações sindicais integra-se a faculdade de “prestar serviços de caráter económico e social aos seus associados” (cfr. o artigo 443.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, na sua versão atual), algo que evidencia que o seu perfil funcional não se esgota na melhoria das condições de trabalho dos trabalhadores, assentando igualmente na colocação às sua disposição de instrumentos fomentadores de uma maior realização pessoal (cfr. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 16.ª ed., Almedina, 2012, pp. 703 e ss.). É neste âmbito que se incluem variadas ações de interesse público desenvolvidas pelas associações sindicais, principalmente no campo da formação profissional.
Atento o que já foi veiculado, a opção legislativa de excluir as associações sindicais do âmbito subjetivo dos beneficiários dos avales do Estado, prestados ao abrigo da Lei n.º 1/73, de 2 de janeiro, não se afigura desrazoável nem tampouco ilegítima. A sua eventual inclusão é vista, aliás, com algum receio por parte da doutrina (Bernardo da Gama Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, vol. I, 3.ª ed., 2004, p. 166), em boa medida por força do princípio da autonomia sindical (cfr. o artigo 55.º, n.º 4, da CRP), que se traduz numa exigência de independência das associações sindicais relativamente ao Governo. Sublinhe-se, ainda assim, que a independência dos sindicatos não veda a atribuição estadual de subsídios conexos com determinadas funções, entre as quais as dirigidas à formação profissional dos trabalhadores (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, 2007, p. 736).
No entanto, visto que boa parte da atividade sindical é exercida contra o governo, que é quem toma as decisões fundamentais em matéria económico-social, percebe-se que a relação entre este e as associações sindicais seja altamente sensível (Bernardo da Gama Lobo Xavier, op. cit., pp. 164 e ss.). Independentemente da resposta à questão de saber se o sistema de garantias previsto no diploma em crise – maxime, o direito de fiscalizar a atividade da entidade beneficiária - lesa o princípio da autonomia sindical, certo é que as dúvidas que a esse propósito se levantam acabam por constituir um bom arrimo para a opção legislativa de excluir as associações sindicais do leque de beneficiários dos avales e de enquadrar o apoio estadual à formação profissional por elas desenvolvida através de outro regime jurídico, mormente o vertido nos Decretos-leis n.ºs 401/91 e 405/91, ambos de 16 de outubro, vigentes à data da concessão do aval à UGT e entretanto revogados pelo Decreto-lei n.º 396/2007, de 31 de dezembro.
Destarte, a interpretação normativa sufragada nos autos não merece censura à luz do princípio da proibição do arbítrio, porquanto o tratamento diferenciado oferecido às associações sindicais tem subjacente um fundamento sério e razoável e um fim legítimo. Avulta, com efeito, a razoabilidade do critério mobilizado pelo legislador, que assim pretendeu canalizar o aval para projetos ou empreendimentos envolvendo significativo risco económico, de dimensão ou importância consideráveis ou nos quais o Estado tivesse interesse direto, por banda dos institutos ou empresas públicas. Acresce que o sistema de garantias associado à prestação do aval poderia comprometer o estatuto constitucional das associações sindicais, sendo de admitir, atenta a liberdade de conformação do legislador, que o fomento estadual de certas atividades de prestação de serviços por elas desenvolvidas pudesse servir-se de instrumentos de outro tipo, menos agressivos para o princípio da autonomia sindical.
III. Decisão
11. Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) – Não conhecer do objeto do recurso no que concerne à segunda questão de inconstitucionalidade suscitada, ou seja, referente “à inconstitucionalidade que decorre da violação dos princípios da proporcionalidade em sentido estrito, da adequação e imparcialidade, ao entender-se que os poderes de fiscalização da Base X da mesma Lei 1/73 e do n.º 2 do art. 6º do DL 215-B/75, de 30.04.75, contendem com a independência sindical da UGT”;
b) – Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 19 de novembro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Joaquim de Sousa Ribeiro.