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Proc. nº 507/01 TC – 1ª Secção REL.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - J..., identificado nos autos, foi pronunciado como autor material de um crime de corrupção passiva para acto lícito previsto e punido no artigo 373º nº 1 do Código Penal.
No despacho de pronúncia tecem-se as seguintes considerações:
'Segundo Germano Marques da Silva 'no Código de Processo Penal/87 a fase de instrução não visa um juízo sobre o mérito, mas tão só a apreciação judicial da legalidade da acusação' (Curso de Processo Penal III p. 168).
O Juízo de indiciação subjacente ao despacho de pronúncia apoia-se nos elementos de prova recolhidos, quer no inquérito quer na instrução, quando se constata que estes são suficientes para gerar a convicção da probabilidade do arguido poder vir a ser condenado em julgamento pela infracção que lhe foi imputada.
Na apreciação de tais elementos de prova não entra o princípio 'in dubio pro reo', que só se torna actuante e relevante no momento da decisão final e quando nesta se tem de optar pela absolvição ou pela condenação (cfr. Ac RE de
15/10/01, in BMJ 410, pg. 903), nem se exige a força e solidez da valoração concreta da prova em julgamento, obtida com recurso ao contraditório e ao princípio da imediação, os quais permitem estabelecer com mais rigor a ocorrência dos pressupostos da condenação do arguido, na apreciação de tais elementos de prova não entra o princípio in dubio pro reo' e que 'basta apenas nesta fase processual a formulação do juízo que com a submissão do arguido a julgamento não resulte daí um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto
A suficiência indiciária constitui, pois, pressuposto, não da decisão sobre o mérito da causa, mas apenas da decisão de prossecução dos autos para julgamento, que não visa, obviamente, alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas apenas e tão só espelhar os indícios de que os factos foram praticados pelo arguido.
In casu dir-se-á que a apreciação crítica da prova produzida na fase do inquérito não foi posta em causa pela prova produzida na fase de instrução.
Por conseguinte, considero que se encontram reunidos os indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, pelo que nos termos do artº 308º nº
1 do Código de Processo Penal e considerando a prova indiciária produzida, cumpre decidir'
O ora reclamante interpôs recurso do despacho de pronúncia para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 286º nº 1, 298º, 303º e 308º do Código de Processo Penal com a interpretação que lhes teria sido dada no despacho impugnado.
O recurso não foi admitido pelo despacho ora reclamado pela seguinte ordem de razões:
- Quanto às normas constantes dos artigos 286º nº 1, 298º e 308º do CPP, por a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo, não sendo insólita ou inesperada a interpretação normativa feita no despacho recorrido;
- Quanto á norma do artigo 303º nº 1 do CPP, no ponto em que o arguido teria sido pronunciado por factos que não constavam da acusação, sem que lhe tivesse sido dada oportunidade para sobre eles se pronunciar, por o recorrente poder ter arguido a nulidade do despacho e recorrido de um eventual despacho de indeferimento nos termos do artigo 310º nº 2 do CPP, não se verificando, assim, o requisito previsto no artigo 70º nº 2 da LTC.
É deste despacho que vem a presente reclamação, concluindo o reclamante, nos seguintes termos:
'1 – A falta de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade na interpretação que foi feita de princípios fundamentais no despacho de pronúncia antes de este ser proferido, bem como a inexistência de um ónus de avaliação antecipado, no caso seguramente inexigível, conduzem à dispensa do assinalado pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade que, assim deve ser recebido, independentemente da verificação daquele requisito processual, como é jurisprudência uniforme desse Alto Tribunal.
2 – É por demais evidente que a legalidade de todo o processo passa sempre pela exigência indeclinável da garantia do princípio da presunção de inocência, não podendo este deixar de ser convocado para a resolução de uma qualquer questão, independentemente da fase processual em que o processo se encontrar.
3 – E, do princípio da presunção de inocência se retira imediatamente a proibição de fazer recair sobre o arguido o ónus de alegação e prova da sua inocência, já que na verdade ele já não tem que alegar e provar, pelo simples facto de, em consequência da integração da estrutura acusatória, pelo princípio da investigação, nos termos do artº 340º nº 1 do CPP, inexistir, no processo penal, ónus da prova para a defesa.
4 – A doutrina e a jurisprudência tem entendido que o Juiz de Instrução só pronuncia o arguido se existir uma possibilidade razoável do mesmo vir a ser condenado, devendo essa possibilidade ser mais positiva do que negativa e ser aferida através da análise dos elementos de prova recolhidos nos autos.
5 – No caso sub judice não foi cometida a nulidade do artº 309º do CPP, mas tão somente foi violado o princípio das garantias de defesa (maxime, o princípio do contraditório enunciado no nº 5 do artº 32º da Constituição) ao não ter sido dada oportunidade ao Reclamante para se pronunciar sobre este novo entendimento que a Mma Juíza a quo faz ao referir a existência de um possível
'acordo' entre o Reclamante e outros delegados de informação médica, atento o disposto no artº 303º nº 1 do CPP.
6 – Pelo que, deverá entender-se que, no caso sub judice, não se poderá considerar que tenha havido uma alteração substancial dos factos constantes da acusação de modo a ser permitido interpor recurso ordinário do despacho de pronúncia nos termos do artº 310º do CPP, se bem que tenha existido uma alteração dos factos, relevante em termos da defesa do arguido, relativamente aos quais não foi assegurado o exercício do contraditório,'
Neste Tribunal, o Exmo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência parcial da reclamação, sustentando, em síntese, que:
- Configurando a questão respeitante à norma do artigo 303º nº 1 do CPP uma nulidade processual, tinha o reclamante oportunidade de arguir essa nulidade e em tal arguição colocar à apreciação do tribunal 'a quo' a questão de constitucionalidade normativa em causa;
- No que concerne às restantes normas, não seria exigível ao reclamante a suscitação antecipada da questão de constitucionalidade em termos de com ela confrontar, durante o processo, o tribunal recorrido:
- Esta última questão não se pode qualificar, numa análise puramente liminar, como 'manifestamente infundada'.
Cumpre decidir.
2 – No que concerne à segunda questão de constitucionalidade é manifesto que o reclamante não tem qualquer razão, embora por fundamentos não coincidentes com os expostos no despacho reclamado.
A inconstitucionalidade arguida reporta-se, aqui, ao disposto no artigo 303º nº 1 do CPP.
A norma contida neste preceito legal prevê a hipótese de resultar dos actos de instrução ou do debate instrutório 'alteração dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura de instrução', caso em que o juiz deve comunicar a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela e concede, a requerimento, um prazo para preparação de defesa..
Não qualifica esta norma, expressamente, o tipo de alteração em causa, ou seja se se trata de uma alteração substancial ou não.
A verdade, porém, é que, dado o disposto no nº 3 do artigo 303 e no artigo 309º nº 1 do CPP, não pode reportar-se aquele nº 1 à alteração substancial da acusação, pois se trata de uma situação em que não é legalmente viável a pronúncia (ela seria nula, ex vi cit. artigo 309º nº 1), devendo o Ministério Público abrir obrigatoriamente inquérito quanto aos factos que representam um alteração substancial (cit. artigo 303º nº 3, in fine').
Embora o reclamante considere a alteração 'relevante', certo é que, ao aludir à norma do artigo 303º nº 1, quer significar uma alteração não substancial da acusação.
Mas, neste enquadramento, não pode chamar-se à colação o disposto no artigo 309º nºs 1 e 2 e 310º nº 2 que dispõem apenas para a pronúncia com alteração substancial dos factos, para se concluir que o reclamante deveria ter arguido a nulidade (onde suscitaria a inconstitucionalidade) e recorrer depois de um eventual despacho de indeferimento.
Contudo, dúvidas não subsistem de que a suposta omissão do procedimento prescrito no artigo 303º nº 1 do CPP, constitui uma irregularidade processual, considerando o disposto nos artigos 118º nºs 1 e 2 e 123º do CPP, já que aquela não é fulminada por lei com a sanção de nulidade, nem a mesma se encontra contemplada nos artigos 119º e 120º do mesmo Código.
Sendo assim, deveria essa irregularidade ser arguida nos termos do citado artigo 123º nº 1 do CPP, tendo aí plena pertinência a arguição de inconstitucionalidade da norma do artigo 303º nº 1, de que o juiz 'a quo' deveria conhecer.
Tinha, pois, o reclamante ao seu dispor um meio legal de impugnação que não utilizou, pelo que não se mostra preenchido o requisito previsto no artigo 70º nº 2 da LTC.
Quanto à arguição de inconstitucionalidade das restantes normas, não se vê que o reclamante dispusesse de oportunidade para suscitar a questão, antes do momento em que o fez. Não por a decisão instrutória se configurar, na interpretação questionada, como uma decisão-surpresa, insólita ou inesperada
(não se torna aqui sequer necessário qualificá-la). Com efeito, durante o debate instrutório e na ausência de um qualquer despacho judicial que defina (ou que, no caso, tenha definido) os termos em que seria apreciada a prova produzida em instrução – o arguido só poderá então (como, no caso, ocorreu), no momento previsto no artigo 302º nº 4 do CPP, sustentar a sua não pronúncia – apenas com a decisão instrutória o reclamante se confronta com o critério normativo à luz do qual é apreciada a prova e está em condições de questionar, em termos de constitucionalidade, esse mesmo critério.
Entende-se, assim, que o requerimento de interposição de recurso foi, no caso, o lugar legalmente adequado para a arguição da inconstitucionalidade.
O recurso não foi rejeitado no despacho reclamado por ser manifestamente infundado, facto que, dados os poderes de cognição do Tribunal Constitucional no conhecimento da reclamação, não obstaria a uma pronúncia de não admissão do recurso com tal fundamento.
A verdade é que, tal como sustenta o Exmo Magistrado do Ministério Público, o recurso não se configura como ostensivamente improcedente em termos que permitam uma tal solução.
Reconhece-se, é certo, que o despacho de pronúncia – ainda que iluminado com o despacho que não admitiu o recurso – não é modelarmente claro quanto ao critério normativo em causa, designadamante sobre se, perante um non liquet em matéria de prova, o juiz 'a quo' questionou, num momento subsequente, a maior ou menor probabilidade de o arguido vir a ser condenado ou se, perante a dúvida insolúvel, optou, sem mais, por sujeitar o arguido a julgamento.
De todo o modo, frases como 'na apreciação de tais elementos de prova não entra o princípio in dubio pro reo' e que 'basta apenas nesta fase processual a formulação do juízo que com a submissão do arguido a julgamento não resulte daí um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto' são susceptíveis de revelar o critério normativo que o reclamante considera contrário à Constituição, não sendo esta tese desprovida, pelo menos, manifestamente, de fundamento.
Deve, pois, nesta parte ser admitido o recurso.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se deferir parcialmente a reclamação, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que receba o recurso na parte em que o recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 286º nº 1, 298º e 308º do Código de Processo Penal.
Lisboa, 3 de Outubro de 2001 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa