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Processo n.º 77/2012
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. No processo executivo que A. instaurou contra B., Lda, e que corre termos na Vara de Competência Mista do Funchal, o Ministério Público veio reclamar, em representação da Fazenda Nacional, nos termos do artigo 865º, n.º 2, do Código de Processo Civil, créditos referentes ao IVA dos anos de 2007, 2008 e 2009.
A exequente impugnou a reclamação, defendendo que tais créditos, reportando-se a dívidas posteriores ao arresto convertido em penhora, que ocorreu em 21 de julho de 2006, deveriam ser graduados posteriormente ao seu crédito.
Por sentença de 4 de maio de 2011, foi julgada improcedente a impugnação, e, consequentemente, ordenou-se a graduação do crédito exequendo após os créditos reclamados pelo Estado, invocando-se como fundamento que o privilégio creditório de que beneficia o Estado é inerente ao imposto de IVA, vigorando independentemente da sua constituição.
Dessa decisão a exequente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, além do mais, que a norma do n.º 1 do artigo 736.º do Código Civil, conferindo privilégio mobiliário geral ao Estado para garantia de créditos por impostos indiretos, deve ser interpretada no sentido de que esse privilégio tem como limite que o crédito se constitua ou seja inscrito para cobrança até ao ano da data da penhora/arresto, por ser essa a única interpretação compatível com o princípio da segurança jurídica ínsito na Constituição da República. Concluindo, desse modo, que a sentença recorrida violou as disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 735.º e do n.º 1 do artigo 736.º do Código Civil, os artigos 622.º, n.º 2, e 822.º do mesmo Código, e ainda o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático previsto no artigo 2.º da Constituição.
Por acórdão de 6 de dezembro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que a norma do artigo 736.º, n.º 1, do Código Civil, interpretada no sentido de não estabelecer como limite temporal para a existência de crédito privilegiado do Estado por impostos indiretos a data da penhora, viola o princípio constitucional da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição, e, nesses termos, considerou que os créditos reclamados pelo Estado relativamente aos anos 2007, 2008 e 2009, sendo posteriores à penhora, não gozam de privilégio mobiliário geral por forma a poderem ser pagos preferentemente ao crédito da exequente, vindo a julgar procedente a apelação e a revogar a sentença recorrida para ser substituída por outra que gradue o crédito exequente à frente do crédito do Estado.
Dessa decisão, o magistrado do Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, por considerar ter havido recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
Tendo o processo prosseguido para apreciação do fundo, o Procurador-Geral adjunto apresentou alegações, em que conclui do seguinte modo:
1º- Não viola o princípio constitucional da confiança, ínsito no art. 2º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do art. 736º, nº 1, do Código Civil, no sentido de não estabelecer, como limite temporal para a existência de crédito privilegiado do Estado por imposto indireto, a data da penhora.
2º- Na verdade, a natureza e origem de tais créditos fiscais – e a relevância constitucional atribuída ao «sistema fiscal» – justificam e legitimam a quebra da regra da «par conditio creditorum», determinada pela oponibilidade do privilégio ao credor comum, que figura como exequente.
3º- Termos em que deverá proceder o presente recurso de constitucionalidade, revogando-se, em conformidade, o Acórdão recorrido, de 6 de dezembro de 2012, do Tribunal da Relação de Lisboa.
Não houve contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
2. O presente recurso de constitucionalidade, interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objeto a alegada desaplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 736º, n.º 1, do Código Civil, que prescreve o seguinte:
O Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indiretos, e também pelos impostos diretos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou ato equivalente, e nos dois anos anteriores.
A questão que competia ao tribunal recorrido dirimir era a de saber se o privilégio mobiliário geral instituído por essa disposição relativamente a impostos indiretos poderá determinar a preferência do Estado em relação ao crédito do exequente quando as dívidas por impostos indiretos (no caso respeitantes ao pagamento do IVA) que ainda se não tinham constituído na data em que se deve considerar realizada a penhora.
Partindo de uma interpretação sistemática do preceito, em que se toma por referência o disposto nos artigos 604º, n.º 2, e 822º do Código Civil, e considerando que a preterição do credor comum em relação a créditos inexistentes à data da penhora é suscetível de pôr em causa o princípio da confiança constitucionalmente garantido, o acórdão recorrido acabou por concluir que o n.º 1 do artigo 736.º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que o privilégio mobiliário geral do Estado por créditos de imposto indireto tem como limite que o mesmo se constitua até à data da penhora ou seja referente a essa data.
Neste contexto, a subsequente declaração de que a norma viola o princípio constitucional da confiança quando interpretada «no sentido de não estabelecer como limite temporal para a existência de crédito privilegiado do Estado por imposto indireto a data da penhora», surge como um mero obter dictum destinado a servir, na economia do acórdão, como reforço argumentativo para a adoção de uma interpretação que não se mostre conflituante com a Lei Fundamental.
Na verdade, o acórdão recorrido efetuou uma interpretação conforme à Constituição escolhendo um dos sentidos possíveis da norma quer à luz do seu teor literal quer com base no recurso a outros elementos de interpretação. E, nestes termos, o acórdão recorrido aplicou a norma sindicada com um certo sentido, que é ainda perfeitamente plausível, e que afasta o vício de inconstitucionalidade que lhe pudesse ser imputado.
Não existe, neste caso, uma verdadeira recusa de aplicação de norma por inconstitucionalidade, o que só se verificaria se o tribunal recorrido tivesse adotado, a pretexto de uma interpretação conforme, um sentido inteiramente incomportável em face da literalidade do preceito, e que implicasse, na prática, a desaplicação de qualquer dos sentidos possíveis que pudessem ser atribuídos à norma.
Não se verifica, deste modo, um dos pressupostos de que depende a interposição do recurso ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea a), da LTC, pelo que não é de conhecer do recurso.
3. Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso por falta de um dos seus pressupostos processuais.
Sem custas.
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Carlos Fernandes Cadilha – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.