Imprimir acórdão
Processo n.º 386/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. e B. vieram interpor, cada um deles, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do objeto de cada um dos recursos.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) Não obstante os recorrentes dirigirem o respetivo requerimento de interposição de recurso ao Tribunal da Relação do Porto, o despacho de recebimento, a que alude o artigo 76.º, n.º 1, da LTC, é proferido pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Os recorrentes não identificam, de forma inequívoca, a decisão recorrida – referindo, contraditoriamente, que pretendem recorrer da decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. ponto 38 do articulado respetivo) e, mais adiante, da decisão do Tribunal da Relação do Porto (cfr. ponto 43 do mesmo articulado).
Ainda que, numa visão benevolente, consideremos que a decisão recorrida é, de facto, a decisão da reclamação, proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, encontrando-se assim cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 76.º da LTC, sempre teremos de concluir pela inadmissibilidade dos recursos interpostos, pelas razões que exporemos de seguida.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Assim, importa apreciar se tais requisitos se verificam, no presente caso.
Começando a nossa análise pela natureza do objeto do recurso, enfatizamos que a mesma terá necessariamente de ser normativa.
De facto, o Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
Nestes termos, impende sobre o recorrente o ónus de enunciar uma norma ou interpretação normativa, reportando-a, de forma certeira, a uma concreta disposição ou conjugação de disposições legais, em cuja literalidade o critério normativo enunciado encontre um mínimo de correspondência.
Acresce que tal enunciação deverá ser apresentada em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Ora, no presente caso, os recorrentes não enunciam qualquer norma ou interpretação normativa, no requerimento de interposição de recurso.
Na verdade, na referida peça processual, ambos os recorrentes reportam a violação de normas e princípios constitucionais ao acórdão uniformizador de jurisprudência, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o n.º 4/2009 e, aparentemente, à própria decisão jurisdicional que não admitiu o recurso, assim violando “os artigos 13.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa” (cfr. pontos 28 e 35 de cada um dos requerimentos de interposição de recurso).
Mesmo quando os recorrentes referem pretender “a apreciação da constitucionalidade das normas jurídicas em causa” (no ponto 41), não especificam e enunciam os concretos critérios normativos a que se reportam, sendo certo que tal referência remissiva, – que apenas pode considerar-se ser preenchida pela alusão, dispersa, a vários preceitos legais (conceito que não corresponde ao de norma) – manifestamente, não cumpre a função delimitadora do objeto do recurso que está cometida ao respetivo requerimento de interposição.
Acresce que a não definição inequívoca do objeto do recurso, no requerimento de interposição, não legitima que se faculte aos recorrentes a possibilidade de suprirem tal deficiência mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º A da LTC, porquanto, ainda que os mesmos aperfeiçoassem, de forma satisfatória, o respetivo requerimento de interposição de recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, por falta de pressupostos de admissibilidade, como melhor analisaremos.
De facto, desde logo, impendia sobre cada um dos recorrentes o ónus de suscitarem a questão de constitucionalidade, que pretendem ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma, deveriam os recorrentes, na reclamação apresentada nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, ter problematizado ou renovado a problematização da questão normativa de constitucionalidade que pretendiam ver ulteriormente sindicada.
Ora, analisada tal peça processual, conclui-se que, em nenhum momento, os recorrentes antecipam e enunciam, de forma clara e adequada, qualquer questão de constitucionalidade de natureza normativa, reportada às disposições legais difusamente indicadas no requerimento de interposição de recurso.
Na verdade, na referida peça processual, os recorrentes apresentam a sua tese em moldes semelhantes aos plasmados no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Em consonância, a decisão recorrida refere que “apenas as normas, e não as decisões judiciais que as aplicam, são suscetíveis de impugnação por inconstitucionalidade, face ao disposto nos arts. 204.º e 280.º, n.º 1, da CRP, pelo que não se conhece desta questão.”
Ainda assim, não deixa a decisão recorrida de fazer referência à jurisprudência do Tribunal Constitucional – plasmada nos acórdãos 263/2009, 551/2009 e 645/2009 - contrária à tese de inconstitucionalidade difusamente defendida por cada um dos recorrentes, apesar de nenhum deles ter suscitado – como já se referiu – uma verdadeira questão normativa, selecionando os preceitos legais pertinentes e enunciando o critério normativo, dos mesmos extraível, em termos de o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela inconstitucionalidade, poder reproduzir tal enunciação, de forma a tornar inequívoco o concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Pelo exposto, não tendo os recorrentes cumprido o aludido ónus de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa, sempre estaria definitivamente prejudicada a admissibilidade de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, ainda que, no respetivo requerimento de interposição, os recorrentes tivessem apresentado, como objeto do recurso, uma questão normativa perfeitamente clara e delimitada, o que – reitera-se – não sucedeu.
Atenta a demonstrada não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, face à natureza cumulativa dos mesmos, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade de cada um dos recursos apresentados e consequente não conhecimento do respetivo objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Em peças processuais autónomas, mas de idêntico conteúdo substancial, os reclamantes manifestam discordância, relativamente ao não conhecimento do recurso interposto por cada um deles, defendendo que a decisão reclamada “colide frontalmente com os princípios constitucionais da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, da aplicação da lei penal mais favorável, previsto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, da mínima restrição dos direitos liberdades e garantias, previsto no artigo 18.º, n.º 2 e 3 da C.R.P., e com os direitos de defesa do arguido em processo penal, in casu, o recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P., este último visto em conjugação com o princípio da lei penal mais favorável, da proibição da retroatividade desfavorável e imposição da retroatividade favorável, e com o princípio da igualdade”.
Acrescentam que as normas dos artigos 400.º e 432.º do Código de Processo Penal devem ser aplicados, na redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto, “para total cumprimento do princípio da igualdade”, mais referindo que o acórdão uniformizador, referenciado no respetivo requerimento de interposição de recurso, colide com tal princípio.
Argumentam igualmente que “a lei processual, no que concerne aos recursos, com a nova redação do artigo 400.º, n.º 1 alínea f), que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto, traduz um “agravamento sensível (…) da situação processual do arguido, nomeadamente mediante uma limitação do seu direito de defesa face à anterior redação que lhe permita o recurso ao STJ, que será “ainda evitável” mediante a aplicação daquelas normas na redação que lhes era dada anteriormente à alteração ao processo penal”.
Concluem, nestes termos, que “ao não admitir o recurso em causa foram violados os artigos 13.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa”
4. O Ministério Público, notificado da reclamação de cada um dos recorrentes, pugna pelo respetivo indeferimento, referindo que os reclamantes “nada dizem de concreto e de novo” que infirme o conteúdo da decisão sumária reclamada, correspondendo a peça processual que apresentam, em grande parte, a uma “reprodução integral daquilo que já haviam afirmado anteriormente”.
Nestes termos, sendo certo que a argumentação aduzida já foi considerada aquando da prolação da decisão sumária, conclui pela manutenção desta última.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelos reclamantes – como bem salienta o Ministério Público – correspondem a uma reposição da tese esgrimida no requerimento de interposição de recurso, não infirmando a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida, consubstanciando-se sobretudo numa manifestação de discordância face ao sentido de tal decisão.
Nestes termos, não tendo sido aduzido qualquer novo argumento, sendo certo que a decisão reclamada merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
6. Pelo exposto, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 2 de setembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de outubro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.