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Processo n.º 673/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. e outros, melhor identificados nos autos, reclamam para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação para a conferência assume o seguinte teor:
«(...)
1. Indeferiu o Exmo. Juiz Relator o recurso interposto pelos Recorrentes por entender que o mesmo não respeita os requisitos legais de admissão;
2. Segundo se defende naquela decisão sumária “mesmo admitindo a questão de constitucionalidade enunciada pelos recorrentes reveste natureza normativa, certo é que ela não foi suscitada de forma processualmente adequada. Na reclamação apresentada ao abrigo do artigo 688.º, do Código do Processo Civil, invocaram os recorrentes diversos preceitos do CPTA sem nunca cuidarem de demonstrar cabalmente qual o sentido ou resultado interpretativo deles extraível que reputavam em desconformidade com a Constituição”.
3. Não se podem, no entanto, os ora reclamantes conformar com esta decisão, porquanto consideram que o recurso por si interposto preenche os requisitos legais de admissibilidade, porquanto:
4. Logo no n.º 4 daquela reclamação, relativamente ao despacho de não admissão do recurso ao abrigo dos artigos 27º., n.º 1, alínea i) e 29.º, n.º 1 do CPTA, os Recorrentes escreveram expressamente que:
“É deste despacho que se reclama por, no entender dos ora reclamantes, ser ilegal por representar uma completa dissonância com o sistema de recursos vertido no art. 142.º, n.º 1 do CPTA, e por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito e justiça vertidos nos artigos 2º e 20º da CRP”;
5. Tendo densificado essa sua alegação na matéria vertida nos números 16 a 24 dessa mesma peça processual, onde se pode ler:
“Ainda que se entenda que o n.º 2 do art. 27.º CPTA permite uma interpretação extensiva, ao ponto de abarcar sob o termo “despachos”, as sentenças, ou seja, usar o termo despachos, num sentido idêntico ao de “decisões” na alínea i) do n.º 1 do art. 27.º CPTA (...) é uma aplicação inconstitucional do n.º 2 do art. 27.º do CPTA e da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, aplicar os mesmos no sentido de considerar que apesar de um Tribunal apelidar certo ato seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete vara um regime de recurso jurisdicional, entender um Tribunal superior que a qualificação dada não estava, afinal, correta e que, como tal, as reações jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado;
“Esse entendimento atenta, designadamente, contra os princípios do Estado de Direito Democrático (art. 2.º CRP) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito (art. 2.º CRP), já que a confiança das partes processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, já que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais - órgãos de soberania com competência para administrar a justiça - fazem dos seus próprios atos;
“A enveredar-se pelo entendimento defendido no despacho de que se reclama, estar-se-ia «(...) perante a imposição de um ónus processual às partes no processo de ultrapassarem as qualificações que os próprios tribunais façam dos seus atos, obrigando a que, mesmo sem que essa qualificação tenha sido posta em causa por tribunal superior, as partes julguem e apurem o erro do julgador e enveredem por meio de reação em discordância com o que o próprio tribunal que terá de admitir o meio de reação dispôs em qualificação desse ato»”;
“Enveredar e consagrar tal imposição às partes no processo é claramente inconstitucional por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e justiça (art. 20.º CRP) e ulteriormente face à própria garantia da tutela jurisdicional efetiva (art. 268.º, n.º 4), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições colocadas às partes no processo, quanto às condições em que podem uti1izar os meios de reação;
(...) É claramente abusivo e coloca em causa o uso das garantias recursivas ou de reação, colocar a obrigação às partes de usarem meios contenciosos em discordância com a qualificação do ato que o próprio órgão de soberania que julga a questão impôs, quando o nosso sistema de reação contra decisões judiciais assente exclusivamente no pressuposto de qualificação do ato como “despacho” ou “sentença” para conduzir as partes no processo aos meios que poderão usar; (...)”;
“Defronta o princípio da confiança e da estabilidade jurídica do processo - o due process - definir em lei processual que a seleção de meios contenciosos se faz por apelo a um critério de nominação do ato pelo tribunal, para, posteriormente, quando o particu1ar se conforma com essa nominação não vincula e há mesmo o dever de contrariar uma qualificação jurisdicional”;
(...) a interpretação e aplicação das normas de processo e que é seguida pelo despacho reclamado, «leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito, em que os princípios pro actione não habilitam tais condutas processuais que promovam a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para a sua tutela»;
“Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não se pode deixar de se admitir o recurso jurisdiciona1 tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia da tute1a jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP”.
6. De tais referências resulta que, relativamente ao despacho de não admissão de recurso de decisão individualmente tomada pelo juiz de primeira instância, os ora reclamantes suscitaram concretamente a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas convocadas para a decisão da causa e por ela aplicadas, tendo-o feito de modo direto, explícito e percetível através da indicação das disposições legais sobre cuja interpretação se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade.
7. Os recorrentes colocaram, assim, o tribunal recorrido perante a exata e específica questão da inconstitucionalidade normativa que pretendem ver agora apreciada, ou seja: a apreciação da constitucionalidade da norma extraída do art. 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2 do CPTA, quando interpretada em qualquer uma das seguintes interpretações normativas:
a) no sentido de considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado;
b) no sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insusceptíve1 de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo despacho constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as sentenças.
8. Segundo defende, igualmente, o Sr. Relator naquela decisão sumária, [(...) a questão de constitucionalidade” identificada pelos recorrentes no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional não constitui fundamento determinante da decisão recorrida, logo, não foi ratio decidendi desta. O TCAS asseverou tão-só que, tendo sido a decisão do tribunal de 1.ª instância proferida ao abrigo do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, a forma de reação deveria passar por uma reclamação para a conferência e não pela interposição de recurso];
9. A verdade, porém, é que o que os ora reclamantes submeteram à apreciação do Tribunal Constitucional foi precisamente o conteúdo interpretativo atribuído ao art. 27.º, n.ºs 1, alínea i) e 2 do CPTA pela decisão recorrida;
10. Com efeito, o que os reclamantes questionam é a constitucionalidade daquelas normas quando interpretadas no sentido e alcance que lhe atribuiu a decisão recorrida;
11. O que os ora reclamantes impugnaram foi, efetivamente, a decisão judicial, mas por ela ter aplicado uma norma, de modo a ultrapassar o sentido possível das palavras da lei, uma vez que julgou que uma interpretação normativa do termo “despacho” referida no n.º 2 do art. 27.º abrange as “decisões” a que se refere a alínea i) do seu n.º 1;
12. Os ora reclamantes colocaram, assim, o tribunal recorrido perante a exata e específica questão da inconstitucionalidade normativa que pretendem ver agora apreciada, ou seja: a apreciação da constitucionalidade da norma extraída do art. 27.º, n.º 2 do CPTA, quando interpretada no sentido que o legislador ao usar aí o termo “despacho” pretendeu abarcar as decisões a que se refere a alínea i) do seu n.º 1;
13. E o Tribunal Central Administrativo Sul embora não se tenha pronunciado sobre a inconstitucionalidade expressamente suscitada pelos ora reclamantes, sufragou interpretação de que, do confronto da expressão “proferir decisão”, constante da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com a expressão despachos, contida no n.º 2 do mesmo artigo, não se pode retirar que o legislador utilizou tais conceitos em sentido diferente;
14. Pelo que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional tem por objeto a inconstitucionalidade da referida norma, quando aplicada e interpretada com aquele sentido e alcance;
15. Com efeito, o art. 27.º, n.º 1, alínea i) do CPTA, dispõe: “Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são conferidos neste Código: (...) proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada”;
16. E o n.º 2 do mesmo artigo dispõe: ”Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com exceção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos de acórdãos desse tribunal”;
17. No confronto da expressão “proferir decisão” constante da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com a norma contida no n.º 2 do mesmo artigo é evidente o uso deliberado do legislador de diferentes expressões para designar atos de decisão jurisdicional (numa usa-se a expressão vaga “decisão” - alínea i) do n.º 1 -, na outra a aceção concreta de “despachos” - n.º 2 - obrigando o n.º 2 a submeter a conferência os “despachos do relator”;
18. Ora, “despachos” e “sentenças” são atos proferidos pelos tribunais que se quadram no conceito de “decisão”, mas enquanto a “sentença” sempre decide, ou julga, a questão ou a causa trazida ao conhecimento do juiz, o “despacho” ordena factos relativos ao procedimento, determinando medidas, dispondo sobre atos que se devam praticar como necessários ao andamento do pleito;
19. Nada se refere no n.º 2 do art. 27.º do CPTA quanto à obrigação de atos que seja sentenças serem submetidos a conferência pela via da reclamação, o que se terá de assumir ter significado e ser opção legislativa ponderada;
20. Daí que não esteja em causa a validade formal da norma aplicada, mas a interpretação dada à norma pela decisão;
21. Assim, a questão da inconstitucionalidade em causa no presente processo não é a do n.º 1, alínea i) e n.º 2 do art. 27.º do CPTA, mas a interpretação que o Tribunal Central Administrativo Sul consagrou no seu Acórdão, por se entender claramente inconstitucional por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e à justiça (art. 20.º da CRP), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições às partes no processo, quanto às condições em que podem usar dos meios de reação;
22. A interpretação seguida é claramente abusiva e coloca em causa o uso das garantias recursivas e leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito, em que os princípios pro actione não habilitam tais condutas que promovem a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para sua tutela (art. 2.º da CRP);
23. Requer-se, deste modo, a revogação da decisão reclamada e, em consequência, que seja ordenado o prosseguimento dos autos.
(...)»
II. Fundamentação
3. A decisão sumária recorrida tem a seguinte redação:
«(...)
1. A. e outros, melhor identificados nos autos, recorrem para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 9 de maio de 2013.
2. Pretendem os recorrentes ver apreciada:
«(...)
10 – A inconstitucionalidade das normas conjugadamente contidas na alínea i) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 27.º do CPTA de que se fez aplicação, interpretadas no sentido de que não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”;
11 – Por se entender que ao enveredar e consagrar tal imposição é claramente inconstitucional por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e à justiça (art. 20.º da CRP) e à garantia de tutela jurisdicional efetiva (art. 268.º, n.º 4 da CRP), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições às partes no processo, quanto às condições em que podem usar dos meios de reação;
12 – E é claramente abusivo e coloca em causa o uso das garantias recursivas ou de reação, colocar a obrigação às partes de usarem meios contenciosos em discordância com a qualificação do ato que o próprio órgão de soberania que julga a questão impôs e defronta o princípio da proteção da confiança e da estabilidade jurídica do processo definir em lei processual que a seleção de meios contenciosos se faz por apelo a um critério de nominação pelo ato do tribunal, para, posteriormente, quando o particular se conforma com essa nominação que lhe empresta a própria instância que deve admitir o meio, poder essa instância ou a superior rejeitar o meio de reação com fundamento em que a nominação não vincula;
13 – A interpretação e aplicação das normas de processo e que é seguida pelo acórdão impugnado leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito, em que os princípios pro actione não habilitam tais condutas que promovem a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para a sua tutela (art. 2.º da CRP).
(...)»
3. Os recorrentes intentaram ação administrativa especial contra o Município de Elvas, julgada improcedente pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco. Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso para o TCAS, recurso esse não admitido com o fundamento em que a sentença fora proferida ao abrigo dos poderes conferidos ao relator pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), da mesma não cabendo recurso mas antes reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2 do citado preceito. Porém, in casu, a convolação do recurso em reclamação para a conferência revelava-se inadmissível, por se mostrar precludido o respetivo prazo de apresentação.
Deste despacho reclamaram os recorrentes, ao abrigo do artigo 688.º, do Código de Processo Civil, louvando-se nos seguintes argumentos:
«(...)
4 – É deste despacho que se reclama por, no entender dos ora reclamantes, ser ilegal por representar uma completa dissonância com o sistema de recursos vertido no art. 142.º, n.º 1 do CPTA, não ter qualquer apoio na letra da lei, nomeadamente no n.º 2 do art. 27º do CPTA, e por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 268.º, n.º 4 da CRP e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direitos e justiça vertidos nos artigos 2.º e 20º da CRP.
5 – O fulcro da presente reclamação reside, deste modo, na qualificação e notificação ao Recorrente de uma decisão como “sentença” e com o respetivo conteúdo tal com se encontra definido no art. 659.º do CPC, e qual o regime que as partes processuais sejam obrigadas a seguir nessa ocasião: um regime conforme a qualificação que o tribunal dá ao seu ato e que o leva em linha reta à necessidade de interposição do recurso; ou a um regime conforme um alegado ónus de perceção que existe um erro de qualificação e apelo à reclamação para a conferência.
6 – O Tribunal a quo estribou-se na alínea i) do n.º 1 do art. 27º do CPTA invocando a simplicidade da questão, a fim de a sentença ser proferida por juiz singular;
7 – Naquela alínea estabelece-se que os poderes conferidos ao relator são os de “proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples (...)”;
8 – Por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito obriga a submeter a conferência os “despachos do relator”;
9 – Para o Código do Processo Civil, sentença é o ato pelo qual o juiz profere decisão final sobre o processo. A sentença sempre decide, ou julga, a questão ou a causa trazida ao conhecimento do juiz;
10 – No despacho, quase sempre há uma ordem para que se faça qualquer coisa, sem intenção de a solucionar. A rigor, não configura uma decisão nem pode ser identificada como um julgamento;
11 – Sentença e despacho guardam, assim, figuras inconfundíveis: enquanto a sentença sempre decide, ou julga, a questão ou a causa trazida ao conhecimento do juiz, o despacho ordena factos relativos ao procedimento, determinando medidas, dispondo sobre atos que se devam praticar como necessários ao andamento do pleito;
12 – Ora, nada se refere no n.º 2 do art. 27.º CPTA quanto à obrigação de atos que seja sentenças serem submetidos a conferência pela via da reclamação, o que se terá de assumir ter significado e ser opção legislativa ponderada;
13 – Resulta, pois, dos referidos normativos que se reclama para a conferência dos despachos, não das sentenças. Destas recorre-se.
14 – Logo, não podia a conferência conhecer do mérito da causa, como se defende no despacho reclamado.
(...)
21 – Em favor do uso do recurso jurisdicional no caso vertente as normas do CPTA que regulam a matéria dos recursos jurisdicionais e que se estribam na qualificação do ato jurisdicional pelo tribunal que profere a decisão, dispondo-se claramente no seu art. 142.º, n.º 1, que das decisões de mérito cabe recurso jurisdicional;
22 – Continuando a louvar-nos no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul supra referido, diz-se neste aresto que “no sistema de recursos expresso no CPTA é a qualificação de sentença aposta no ato jurisdicional que leva a parte a conhecer a natureza definitiva e final da intervenção judicial na composição dos interesses no litígio, obrigando à conformação dos meios de reação posteriores, com essa natureza emprestada ao ato pelo texto decisório”;
23 – Assim o impõe, aliás, os princípios antiformalistas “pro actione” e “in dúbio pro favoritate instanciae” que, como constitui jurisprudência pacífica, “impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva” consagrada no art. 268.º, n.º 4 da CRP (Acórdão do STA de 30-04-2008, processo n.º 0850/07), pois que o particular não pode ficar constrangido por ter confiado na qualificação que o Tribunal empresta ao ato, conformando-se com o uso de meios recursivos em face dessa qualificação imposta na decisão recorrida;
24 –Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não pode deixar de se admitir o recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia da tutela jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP;
(...)»
O TCAS, em acórdão com data de 9 de maio de 2013, julgou improcedente a reclamação deduzida, tendo para o efeito aduzido os seguintes argumentos:
«(...)
No caso dos autos, a ação proposta pelos autores tem efetivamente valor superior à alçada do tribunal, pelo que, não tendo sido decidida em formação de três juízes, mas por juiz singular, o que foi de acordo com a previsão do citado artigo 27º, nº1, alínea i), facto aliás que o Senhor Juiz “a quo” expressamente invocou antes de proferir decisão, ao referir que: “A simplicidade justifica a decisão pelo relator” (cfr. fls. 13 dos autos).
Assim sendo, dessa decisão de mérito cabe reclamação para a conferência, nos termos do nº 2 do artigo 27º do CPTA e não recurso jurisdicional, como tem vindo a ser entendimento uniforme neste TCAS e no STA (...).
Significa isto que a interposição de recurso da decisão proferida nos autos com expressa invocação do disposto no artigo 27º, nº 1, alínea i) do CPTA consubstancia opção por um meio processual inadequado, situação que deveria ter merecido não um despacho de não admissão de recurso, mas de outro que ordenasse que o processo seguisse a forma processual adequada – reclamação para a conferência – nos termos do artigo 199º, nº 1 do CPCivil, desde que se mostrassem reunidos os respetivos pressupostos (...).
Porém, como refere o Senhor Juiz “a quo” no despacho que não admitiu o recurso interposto pelos autores, não era já possível convolar o requerimento de interposição de recurso em reclamação para a conferência, uma vez que à data de entrada do mesmo em juízo já tinha decorrido o prazo de 10 dias que a parte tinha para reclamar para a conferência (cfr. art. 29º, nº 1 do CPTA).
Dir-se-á, ainda, que a posição constante no despacho reclamado e aqui também sufragada, não viola qualquer preceito constitucional, designadamente os invocados pelos reclamantes, na medida em que a reclamação para a conferência é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não limita – antes acrescenta – as formas de reação contra decisões desfavoráveis (cfr. nesse sentido o Ac. do STA – Pleno de 05.06.2012).
Aliás, é irrelevante o nome dado à decisão – sentença ou outro qualquer – na medida em que aquilo que foi emitido foi sempre e só a “decisão” a que alude a referida alínea i) do nº 1 do artigo 27º do CPTA, que foi invocada, desde o início, como fundamento para decidir por juiz singular aquilo que estava previsto na lei, como regra geral (cfr. artigo 40º, nº 3 do ETAF), para ser adotado por tribunal coletivo.
(...)»
Seguiu-se, finalmente, o recurso de constitucionalidade que agora se aprecia.
4. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
5. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
In casu, porém, tais pressupostos não se encontram preenchidos. Com efeito, mesmo admitindo que a questão de constitucionalidade enunciada pelos recorrentes reveste natureza normativa, certo é que ela não foi suscitada de forma processualmente adequada. Na reclamação apresentada ao abrigo do artigo 688.º, do Código de Processo Civil, invocaram os recorrentes diversos preceitos do CPTA sem nunca cuidarem de demonstrar cabalmente qual o sentido ou resultado interpretativo deles extraível que reputavam em desconformidade com a Constituição.
Resulta ainda dos autos que a “questão de constitucionalidade” identificada pelos recorrentes no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional não constituiu fundamento determinante da decisão recorrida, logo, não foi ratio decidendi desta. O TCAS asseverou tão-só que, tendo sido a decisão do tribunal de 1.ª instância proferida ao abrigo do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, a forma de reação deveria passar por uma reclamação para a conferência e não pela interposição de recurso. Não se afigura, portanto, que aquele tribunal tenha empreendido uma “interpretação extensiva” do artigo 27.º, n.º 2, do CPTA, como sugerem os recorrentes no requerimento de recurso submetido, até porque, mesmo que o houvesse feito, nunca poderia tal operação hermenêutica ser objeto de controlo por este Tribunal, por não consubstanciar uma questão de constitucionalidade normativa.
A isto acresce que verdadeiramente determinante para o sentido vertido na decisão recorrida foi o facto de a convolação do recurso em reclamação para a conferência não ser possível, por já ter decorrido o prazo legalmente previsto para o efeito – uma questão que não integra o objeto de recurso, não obstante a sua relevância para o acórdão prolatado.
Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – o qual, note-se, diz respeito a decisões “que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)” - é patente não estarem verificados os respetivos pressupostos objetivos. De facto, os recorrentes não avançaram, ao longo de toda a sua intervenção processual, qualquer violação de lei com valor reforçado, estatuto da região autónoma ou lei geral da República; limitaram-se a invocar a ilegalidade do despacho de não admissão de recurso, algo que, bem entendido, não só não integra o objeto de controlo do nosso modelo de fiscalização da constitucionalidade, como em nada viabiliza o acesso ao recurso previsto na alínea f) do mencionado preceito.
Há que concluir, portanto, no sentido de que não se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo das alíneas b) e f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
6. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)»
4. A reclamação apresentada pela reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir das alíneas b) e f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Com efeito, entre outros fundamentos, assentou a decisão sumária de não conhecimento do objeto de recurso no facto de os recorrentes não terem suscitado de forma processualmente adequada a questão ou questões de constitucionalidade que pretendiam ver apreciadas pelo tribunal recorrido e (a jusante) pelo Tribunal Constitucional, e de a interpretação normativa por eles imperfeitamente delimitada não ter sido ratio decidendi – entenda-se, fundamento determinante – da decisão recorrida. Invocam os reclamantes, no requerimento de reclamação apresentado, que a questão de constitucionalidade foi objeto de um levantamento claro e percetível, esclarecendo, adicionalmente, que a norma cuja apreciação se requer é o artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do CPTA, quando interpretada em qualquer uma das seguintes interpretações normativas:
«(...)
a) no sentido de considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado;
b) no sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo despacho constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as sentenças.
(...)»
Ora, talqualmente se asseverou na decisão sumária reclamada, as proposições avançadas pelos reclamantes dificilmente permitem antecipar qual o sentido normativo, extraível dos preceitos em causa, cuja inconstitucionalidade pretendem ver sufragada. Efetivamente, não se percebe se o objeto da controvérsia radica na alteração, pelo tribunal superior, da qualificação outorgada pelo tribunal recorrido ao ato decisório prolatado, ou no facto de se interpretar extensivamente o termo “despachos”, constante do artigo 27.º, n.º 2, do CPTA, no sentido de o mesmo abarcar “sentenças” ou até quaisquer outras “decisões” proferidas pelo Relator ao abrigo da alínea i), do n.º 1 do mesmo preceito (cfr. ponto 12 da reclamação). A reclamação apresentada, ao invés de dissipar estas dúvidas, limita-se a adensá-las (cfr. ponto 21 da reclamação).
É, aliás, evidente que esta ambiguidade não deixou de afetar o tribunal recorrido na determinação do concreto recorte da questão de constitucionalidade arguida nos autos, tendo aquele concluído tão-só, a esse propósito, que “a reclamação para a conferência é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não limita – antes acrescenta – as formas de reação contra decisões desfavoráveis”.
Em todo o caso, como também foi sublinhado, nenhuma das interpretações normativas debilmente enunciadas pelos reclamantes exprime rigorosamente os fundamentos normativos da decisão recorrida. Na verdade, esta não se pronunciou nem alterou a qualificação do ato decisório veiculada pelo TAF de Castelo Branco, assumindo abertamente ter sido aquele proferido ao abrigo da alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, do CPTA (fls. 73). Depois, tampouco decorre dos autos que o TCAS tenha levado a cabo uma interpretação extensiva do artigo 27.º, n.º 2, do CPTA, ao considerar que, para além dos despachos, a letra do preceito ainda tolerava a inclusão do termo “sentenças”. Este segmento interpretativo resulta já de uma extrapolação da decisão recorrida, não tendo nesta qualquer respaldo.
Destarte, há que reiterar não estarem preenchidos os pressupostos processuais de que se acham dependentes os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC. Semelhante juízo vale também para o recurso interposto nos termos da alínea f), do mesmo preceito, algo que, aliás, não foi objeto de contestação na reclamação apresentada.
III. Decisão
5. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 19 de novembro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.