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Processo n.º 915/2013
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificada nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do despacho proferido pelo Tribunal Judicial de Oeiras, que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 68).
2. A reclamação para a conferência assume o seguinte teor:
«(…)
1 – O recurso interposto pela reclamante foi indeferido com o fundamento:
Nos termos do art.º 678.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Civil, é sempre admissível recurso para a Relação independentemente do valor da causa ou da sucumbência, nas ações em que se aprecie a validade e subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção de arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios.
O objeto dos presentes autos é a cessação de contrato de arrendamento para fins não habitacionais.
Notificada da decisão que não aceitou a oposição ao procedimento especial de despejo a Recorrente apresentou requerimento em que pediu a reforma da decisão, arguindo a título subsidiário a inconstitucionalidade das normas aplicadas.
Não estando em causa contrato de arrendamento para habitação não permanente ou fins especiais transitórios, é admissível recurso ordinário da referida decisão (art.º 678.º, 3, a), do Código de Processo Civil), que não foi interposto.
Nestes termos, por não se mostrarem reunidos os pressupostos estabelecidos no art.º 70.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro, não admitido o recurso.
2 – Tal fundamentação é no mínimo contraditória: No 2º parágrafo refere-se que o contrato dos presentes autos é a cessação do contrato de arrendamento para fins não habitacionais. Mais à frente (4º parágrafo) contradiz-se referindo-se “não estando em causa contrato de arrendamento para habitação não permanente ou fins especiais transitórios, é admissível recurso da referida decisão”. Em que ficamos?
3 – E por considerar que a decisão admitia recurso ordinário, o Tribunal decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional.
4 – Na verdade, a decisão em causa não admite recurso ordinário.
5 – O objeto do contrato de arrendamento é uma garagem (contrato de arrendamento para fins não habitacionais).
6 – O presente contrato de arrendamento está enquadrado na exceção prevista no artigo 678º, nº 3, alínea a) in fine do Código de Processo Civil, que exclui a admissibilidade do recurso nos casos de arrendamento para habitação permanente ou para fins especiais transitórios, e considerando que a presente ação tem um valor de 1.900,00 € não tem alçada para interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
7 – Assim, considerando que a decisão recorrida não era suscetível de recurso ordinário e estando reunidos os demais pressupostos ínsitos no artigo 70º da LTC, o recurso deverá ser admitido.
(…)»
3. A reclamante, que viu ser contra si intentada uma ação especial de despejo, ao abrigo dos artigos 15.º-A e seguintes da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, deduziu oposição, com pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo. Em despacho com data de 10 de julho de 2013, o Tribunal Judicial de Oeiras, constatando que a ré não juntara à oposição o documento comprovativo do pagamento da caução devida ao abrigo do artigo 15.º-F, n.º 3, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (na sua atual redação), declarou a oposição como não deduzida.
Inconformada, veio a ora reclamante pedir a reforma do despacho, ao abrigo do preceituado no artigo 666.º e 669.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, argumentando do seguinte jeito:
«(…)
6º
Com efeito, o artigo 15º-G, nº 3 da Lei nº 31/2012 de 14/08 dispõe: “Com a oposição, deve o requerido proceder à junção da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos nºs 3 e 4 do artigo 1083º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça” (sublinhado nosso).
7º
Por outro lado, o artigo 10º, nº 1 e 2 da Portaria nº 9/2013 de 10 de janeiro prevê o seguinte:
1 – O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
2 – O documento comprovativo referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
8º
O nº 2 do artigo 10º da Portaria nº 9/2013 de 10 de janeiro contraria o disposto no artigo 15º-E da Lei nº 31/2012 sendo que o Tribunal deu prevalência à primeira.
9º
Ora, uma Portaria não pode contrariar ou revogar uma Lei, mesmo quando se destina a regulamentar a mesma, sob pena de violação da hierarquia das leis tal como esta está plasmada na nossa Lei fundamental (artigo 112º da CRP).
10º
Assim existiu um notório lapso do Tribunal na determinação da norma aplicável pois o artigo 10º, nº 1 e 2 da Portaria nº 9/2013 de 10 de janeiro não pode prevalecer sobre o disposto no artigo 15º-E da Lei nº 31/2012 que prevê a isenção da prestação da caução nos casos em que foi requerido o benefício do apoio judiciário.
11º
Caso assim não se entendesse a interpretação dada ao artigo 10º, nº 1 e 2 da Portaria nº 9/2013 de 10 de janeiro na aplicação do direito ao caso concreto (indeferimento da oposição ao despejo) padeceria de inconstitucionalidade por violação do artigo 112º da CRP, designadamente os nºs 1, 2, 3, 5 e 6.
(…)»
Em despacho de fls. 54, considerou o Tribunal Judicial de Oeiras o seguinte:
«(...)
Estatui o artigo 666º nº 1 do Código de Processo Civil que Proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, norma aplicável aos despachos por força do disposto no n.º 3 do mesmo preceito.
Contudo, é lícito ao juiz, nesse caso, retificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas e reformar a sentença ou os despachos (cfr. artigo 666º, n.º 2 do Código de Processo Civil), podendo, ainda, as partes requerer a reforma da sentença ou dos despachos quando tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou constem do processo documentos ou elementos que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja considerado.
Por outro lado, sempre se dirá que sendo admissível, in casu, recurso da decisão proferida – meio que teria permitido à ré ver sindicada a decisão proferida – nunca poderia ser requerida a sua reforma nos termos em que foi formulada (cfr. artigo 669º, nº 3 do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 678.º, n.º 3, alínea a) do mesmo diploma legal e 15º Q do NNRAU).
Termos em que, face ao exposto, se indefere o requerido.
(...)»
A recorrente veio então deduzir pedido de aclaração do referido despacho, em requerimento de fls. 57, com o seguinte teor:
«(...)
2 – Ora, acontece que o objeto do contrato de arrendamento é uma garagem (fins não habitacionais) como aliás muito bem consta do requerimento apresentado pelos requerentes.
3 – Acresce que a requerida nunca viveu ou habitou na supra referida garagem.
4 – Assim e considerando que o presente contrato de arrendamento está enquadrado na exceção prevista no artigo 678.º, n.º 3, alínea a) in fine que exclui a admissibilidade do recurso nos casos de arrendamentos para habitação não permanentes ou para fins especiais transitórios, e considerando que a presente ação tem um valor de 1.900,00€, requer-se a V. Ex.ª que se digne a esclarecer qual o dispositivo legal que permite no presente caso recurso para o Tribunal da Relação, sem prejuízo da requerida recorrer para o Tribunal Constitucional.
(...)»
Interpôs então a ré recurso para o Tribunal Constitucional, em requerimento de fls. 62, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do “artigo 10º, nº 1 e 2 da Portaria nº 9/2013 de 10 de janeiro, interpretadas no sentido de prevalecer sobre o disposto no artigo 15º-E da Lei nº 31/2012 que prevê a isenção da prestação da caução nos casos em que foi requerido o benefício do apoio judiciário”, por violação do princípio da hierarquia das leis, constante do artigo 112.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 6 da CRP. O Tribunal Judicial de Oeiras, em despacho de fls. 68, não admitiu o recurso de constitucionalidade, por considerar que, não estando em causa contrato de arrendamento para habitação não permanente ou fins especiais transitórios, seria admissível recurso ordinário da referida decisão, ao abrigo do artigo 678.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Civil.
Seguiu-se, finalmente, a reclamação para a conferência que ora se aprecia.
4. Notificado, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação deduzida.
5. Notificada para se pronunciar sobre a possibilidade de o Tribunal Constitucional indeferir a reclamação apresentada, com fundamento na circunstância de não estar em causa uma questão de constitucionalidade, veio a reclamante deduzir o seguinte:
«(…)
1 - Salvo o devido respeito pela opinião contrária, no entender da reclamante a questão suscitada na decisão recorrida é uma questão de inconstitucionalidade e não de mera legalidade.
2 - Com efeito, o objeto do recurso é a não conformação pelo indeferimento da oposição com o fundamento de que não teria sido feita prova do pagamento da caução.
3 - O Tribunal de Oeiras sustentou o indeferimento aplicando o nº 2 do artigo 10º da Portaria n.º 9/2011, de 10 de janeiro, que contraria o disposto no artigo 15º-E da Lei nº 31/2012 que versa sobre a mesma matéria.
4 – O que o Tribunal fez na prática foi aplicar uma portaria em detrimento de uma lei quando ambas são contraditórias.
5 – Ora, uma Portaria não pode contrariar ou revogar uma Lei, mesmo quando se destina a regulamentar a mesma, sob pena de violação da hierarquia das leis tal como está plasmada na nossa Lei Fundamental (artigo 112º da CRP).
6 – Reitera-se que o artigo 10º, nº 1e 2 da Portaria nº 9/2013 de 10 de janeiro não pode prevalecer sobre o disposto no artigo 15º-E da Lei n.º 31/2012 que prevê a isenção da prestação da caução nos casos em que foi requerido o benefício do apoio judiciário.
7 – Caso assim não se entendesse a interpretação dada ao artigo 10º, nº 1 e 2 da Portaria n.º 9/2013 de 10 de janeiro ao caso concreto (indeferimento da oposição ao despejo) padeceria de inconstitucionalidade por violação do artigo 112º da CRP, designadamente os nºs 1, 2, 3, 5 e 6.
8 – Em conclusão, a questão sub-judice é uma questão de inconstitucionalidade e não de mera ilegalidade.
II. Fundamentação
6. Sendo o recurso de constitucionalidade não admitido interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se verifica que se achem preenchidos uma série de pressupostos processuais – a saber, o esgotamento dos recursos ordinários, aliado à arguição tempestiva e adequada de uma questão de constitucionalidade incidente sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi da decisão recorrida. Considerou o tribunal recorrido que a recorrente não esgotara os recursos ordinários tolerados pela decisão (cfr. o artigo 70.º, n.º 2, da LTC), recusando, em consonância, o recurso interposto.
Com razão, como se verá. De facto, a contradição que a recorrente afirma estar subjacente ao despacho de não admissão de recurso não existe, visto não ter ficado demonstrado que o contrato efetivamente celebrado entre as partes – qualificado como um um contrato de arrendamento para fins não habitacionais – seja subsumível em alguma das exceções elencadas na parte final da alínea a), do n.º 3, do artigo 678.º do Código de Processo Civil, a saber, os contratos de arrendamento para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios.
Mesmo concedendo que o despacho prolatado não admite recurso ordinário, caindo por terra o fundamento de não admissão do recurso em que se estribou o tribunal recorrido, sempre os elementos constantes dos autos reforçariam aquele juízo de inadmissibilidade. Com efeito, a questão levantada pela recorrente seja no requerimento de reforma, seja no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, não é subsumível a uma questão de constitucionalidade de que este Tribunal possa e deva conhecer. Como a jurisprudência constitucional vem reiteradamente aduzindo (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 113/88, 247/93 e 404/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, mormente a violação de uma lei por um ato regulamentar – como sucede in casu - existe um vício de ilegalidade, pelo que, não se reintegrando tais situações nos casos de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado expressamente previstos na Constituição (cfr. o artigo 280.º, n.º 2, alíneas a), b), c), e d), da CRP), não há que delas conhecer no quadro dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
III. Decisão
6. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, proferido pelo Tribunal Judicial de Oeiras.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 19 de novembro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.