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Proc.º n.º 516/2001.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 24 Setembro de 2001 o relator proferiu decisão sumária do seguinte teor:-
'1. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal de comarca de Almada veio, nos termos do artº 3º, nº 1, alíneas a) e i), da Lei nº
69/98, de 27 de Agosto, da Base V da Lei nº 2.036, de 9 de Agosto de 1949, e na Base XIX, nº 3, alínea c), da Lei nº 48/90, de 24 de Agosto, requerer o internamento compulsivo de J..., invocando, em síntese:-
- que, sendo este portador de tuberculose multi-resistente infecto-contagiosa e não obstante ter sido alertado pelo seu médico assistente e pelas autoridades sanitárias para a necessidade de efectuar um tratamento diário e prolongado, cumprindo um rigoroso programa de medicação, além de terem aquelas autoridades intentado o seu internamento em determinado sanatório, o mesmo não acedeu a esse internamento e não tem cumprido a medicação ministrada;
- assim, e dada a inserção na vida social e profissional do requerido, que utiliza transportes públicos, vai ao seu local de trabalho, frequenta restaurantes, locais de diversão, etc., o seu comportamento coloca em risco a saúde pública e cria grave perigo para a integridade física de terceiros.
O Juiz do 2º Juízo do indicado Tribunal, por despacho de
3 de Agosto de 2001, indeferiu liminarmente o solicitado internamento.
Nesse despacho, começou por analisar a constitucionalidade das normas constantes da Lei nº 2.036 com base nas quais vinha requerido o internamento, tendo concluído pela sua invalidade face ao preceituado no artigo 27º da Lei Fundamental.
Seguidamente, escreveu-se nesse despacho:-
‘................................................................................................................................................................................................................................. Ora, em conformidade com os princípios constitucionais fundamentais de protecção da saúde pública, da vida e da integridade física dos membros da comunidade, incriminam-se no artº 283 do C.P. todos aqueles que, a titulo doloso ou negligente, propaguem doença contagiosa. Entendeu o ex.mo magistrado do Ministério Público, com os fundamentos expostos no despacho de fls. 17, que se não mostravam verificados os pressupostos do tipo legal do crime previsto no artº 283 e consequentemente determinou o arquivamento dos autos. Fundamentou esta decisão no facto de os autos não permitirem imputar ao requerido a propagação da doença apenas pelo facto de dela ser portador e não se sujeitar a tratamento regular. Parece-nos, pois, com o devido respeito, que independentemente da referida inconstitucionalidade não haveria fundamento para o internamento compulsivo por não estarem reunidos os respectivos pressupostos legais., ou seja, o perigo imediato e grave de contágio.
................................................................................................................................................................................................................................’
É do despacho de que parte se encontra transcrita que, pelo Ministério Público, vem interposto recurso para este Tribunal, alicerçado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dado ‘ter sido recusada, com fundamento na sua inconstitucionalidade, face ao disposto no art.
27º, da Constituição, a aplicação das normas contidas na Base V da Lei nº 2036, de 9 de Agosto de 1949’.
O recurso foi admitido por despacho, proferido pelo aludido Juiz em
10 de Agosto de 2001.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende que o presente recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º- A da mesma Lei, a vertente decisão sumária, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto desta impugnação.
Na verdade, muito embora se descortine, no despacho sub iudicio, um juízo de inconstitucionalidade reportadamente a determinados normativos ínsitos na Lei nº 2.036, o que é certo é que a esse mesmo despacho foi carreada uma outra fundamentação que, de igual modo, conduziu à decisão dele constante.
E essa fundamentação consubstanciou-se, justamente - como resulta da transcrição acima levada a efeito - na circunstância de, no caso, não haver dados de facto que permitissem determinar o internamento compulsivo do requerido, independentemente do juízo de inconstitucionalidade que, antecedentemente, se fez em relação à Base V da aludida Lei nº 2.036.
Ora sendo isto assim, de concluir é que, mesmo que este Tribunal viesse a debruçar-se sobre a questão de invalidade com o Diploma Básico e concluísse que essa invalidade se não verificava, ainda assim manter-se-ia o decidido, com base no fundamento consistente na inexistência de matéria fáctica permissora do internamento compulsivo.
Vale isto por dizer, em suma, que a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional não se iria repercutir utilmente quanto à decisão tomada no 2º Juízo Criminal do Tribunal de comarca de Almada.
Sendo sabido, para se utilizarem as palavras do Acórdão nº 216/91 (in Diário da República, 2ª Série, de 14 de Setembro de 1991) que o julgamento das questões de inconstitucionalidade desempenha ‘uma função instrumental, só se justificando que a ele se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão de fundo. Ou seja: o sentido do julgamento da questão de constitucionalidade há-de ser susceptível de influir na decisão destoutra questão, pois, de contrário, estar-se-ia a decidir uma pura questão académica’, então haverá de reconhecer que, na situação sub specie, seria desprovido de utilidade o juízo que viesse a ser efectuado por este Tribunal quanto à validade ou invalidade constitucional da Base V da Lei nº 2.036.
Perante o exposto, não se toma conhecimento do objecto do recurso'.
Do transcrito despacho reclamou para a conferência o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, invocando, em síntese:-
- que se mantém o interesse no conhecimento do objecto do recurso, pois que a parte final do despacho do despacho de indeferimento liminar proferido no Tribunal de comarca de Almada, por um lado, é susceptível de recurso ordinário e, por outro, sendo evidente que a ausência de alegação, pelo requerente, de factos indiciadores e concretizadores do invocado 'perigo imediato e grave de contágio', deveria conduzir à prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição;
- que a inutilidade do recurso de constitucionalidade pressupõe que fundamentação alternativa se alicerce num juízo definitivo, sendo que, no caso, se houvesse uma 'provável interposição de recurso do despacho liminar', seria possível à Relação revogar ou substituir a parte final do aludido despacho de indeferimento liminar.
Cumpre decidir.
2. Entende o Tribunal que é de manter o despacho reclamado.
Na realidade, como se decidiu, verbi gratia, no Acórdãos nº 216/91
(citado na decisão reclamada), em que estava em questão uma situação de prolação, pelo Juiz do então Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto, de um despacho de não recebimento do recurso, alicerçado, por um lado, na ilegitimidade do então recorrente e, por outro, numa descortinada inconstitucionalidade de uma norma da qual se extraísse a legitimidade desse recorrente (e sendo certo que o despacho de não admissão de recurso era passível de impugnação, em sede ordinária, por meio de reclamação ou, como se disse nesse aresto, 'impugnável por via própria que não a presente'), este órgão de administração de justiça concluiu pela inutilidade no conhecimento da questão de constitucionalidade.
Aquela situação, então decidida por este Tribunal era, na óptica que ora se defende, semelhante à ora sub iudicio, sendo que, proferida que seja uma decisão de harmonia com a qual este órgão de administração de justiça não toma, por inutilidade, conhecimento do objecto do recurso, ficará aberta a possibilidade de, em sede própria, a haver impugnação ordinária, ser revista a decisão no que concerne a qualquer dos fundamentos em que se alicerçou.
A «definitividade» do juízo dos tribunais sobre a matéria da fundamentação que levou à decisão e que não foi estribada na questão de inconstitucionalidade tem, assim, de ser entendida como a motivação que, por si só, conduz à solução da causa independentemente daqueloutro juízo que repousou na contraditoriedade normativa com a Constituição.
Nestes termos, indefere-se a reclamação Lisboa, 3 de Outubro de 2001 Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa