Imprimir acórdão
Processo n.º 916/13
Plenário
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Requerente e pedido
O Presidente da República vem requerer, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como do n.º 1 do artigo 51.º e n.º 1 do artigo 62.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, quando conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5.º do Anexo da Lei n.º 74/2013, publicada no Diário da República de 6 de setembro de 2013, com fundamento na violação das normas do n.º 1 do artigo 20.º e do n.º 4 do artigo 268.º, conjugadas com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, na medida em que as normas impugnadas podem restringir, de forma desproporcional, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
2. Fundamentação do pedido
O Requerente fundamenta o pedido nos seguintes termos:
«(…)
1º
A Assembleia da República aprovou, pela Lei n.º 74/2013, a criação do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD).
2º
A Lei em causa inscreve-se no processo que havia conduzido à pronúncia de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n° 230/2013, relativamente ao Decreto da Assembleia da República n° 128/XII.
3º
No processo que deu lugar ao Acórdão mencionado no número anterior requeria-se a fiscalização preventiva da constitucionalidade da norma constante da segunda parte do n.º 1 do artigo 8º do Anexo do Decreto nº 128/XII quando conjugada com as normas dos artigos 4º e 5º do mesmo Anexo, com fundamento:
a) Na violação das normas do nº 1 do artigo 20º e do nº 4 do artigo 268º, conjugadas com o disposto no nº 2 do artigo 18º da CRP, na medida em que a norma impugnada restringia, de forma desproporcional, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva;
b) Na violação das normas do artigo 13º da CRP, na medida em que a norma sindicada feria o principio da igualdade, por discriminar infundadamente, no plano garantístico, os cidadãos cujos litígios se encontrem sujeitos à arbitragem necessária do TAD em relação a cidadãos cujos litígios se encontrem também submetidos a outras formas de arbitragem necessária.
4º
Devolvido o diploma à Assembleia da República, sem promulgação, na sequência da decisão de inconstitucionalidade, o Parlamento aprovou a lei cuja fiscalização de constitucionalidade ora se requer.
5º
É a seguinte a nova formulação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 8º:
“1 - São passíveis de recurso, para a câmara de recurso, as decisões dos colégios arbitrais que:
a) Sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis;
b) Estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso.
2 - Das decisões proferidas pela câmara de recurso, pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista.”
6º
Por outro lado, mantém-se inalterada a redação dos artigos 4º e 5º do Anexo da Lei nº 74/2013, o que significa que a arbitragem em causa permanece necessária, devendo os litígios previstos na lei ser a ela submetidos, independentemente da vontade das partes.
7º
Ora, foi justamente esta articulação – arbitragem necessária e ausência de recurso das decisões arbitrais para os tribunais estaduais – que conduziu à pronúncia de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
8º
Importa agora verificar se a nova formulação adotada supera a violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, tal como decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 230/2013.
9º
A alteração introduzida na lei permite agora dois tipos de recurso: um, em casos limitados, para a câmara de recurso – instância interna do próprio Tribunal arbitral que não substitui os tribunais estaduais; outro, das decisões desta câmara, que constitui um recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo e que se reveste de particular excecionalidade.
10º
Assim, só é possível recorrer para a câmara de recurso das decisões que sancionem infrações disciplinares ou que estejam em contradição com outra decisão.
11º
Por sua vez, das decisões da câmara de recurso poderá haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
12°
Verifica-se, pois, que a recorribilidade das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto para os tribunais estaduais só ocorre em casos excecionais: é necessário que passem o crivo do recurso interno para a câmara de recurso e, subsequentemente, que demonstrem possuir relevância exigida para o recurso de revista.
13º
Sucede, porém, que a vontade de recurso pode resultar de uma decisão arbitral que não satisfaça uma parte e esta deseje, legitimamente, ver a sua pretensão apreciada por um tribunal estadual, sem que tal pretensão possua a exigida relevância jurídica ou social.
14º
Com efeito, considera-se legítimo que a parte decaída na decisão arbitral pretenda ver a decisão reapreciada, quanto ao fundo ou quanto à forma, por um tribunal estadual, tendo em conta que a submissão do litígio ao tribunal arbitral resultou de uma imposição da lei e não da sua vontade, limitando-se, por outro lado, essa decisão a ter relevância para as partes, sem, simultaneamente, exibir relevo coletivo ou social. Assim, por exemplo, uma determinada situação pode ser extremamente lesiva de direitos ou interesses legítimos de um cidadão e não se revestir, em termos objetivos, de relevância «social». Ora, o princípio constitucional do acesso ao Direito e aos tribunais visa tutelar, entre o mais, posições jurídicas subjetivas, a título individual, as quais não podem ser deixadas sem proteção a pretexto de serem social ou juridicamente «irrelevantes».
15º
Na verdade, o recurso de revista previsto no artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, para o qual remete a norma em causa, tem caráter verdadeiramente excecional. Com efeito, afirmou o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão de 4 de junho de 2013 (processo n.º 646/13) que “a jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excecionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efetivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, de uma «válvula de segurança do sistema» que apenas deve ser acionada naqueles precisos termos. Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, ou quando haja manifesta necessidade de uma melhor aplicação do direito, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador”.
16º
A propósito do mesmo preceito, afirma a doutrina que, não obstante o princípio ser o de não haver recurso das decisões do Tribunal Central Administrativo, “este artigo 150º admite, no entanto, a possibilidade de um excecional recurso de revista para o STA de decisões proferidas em segunda instância pelo TCA. Uma das especificidades deste recurso é que a sua admissibilidade não é determinada por um critério quantitativo (e, portanto, em razão da alçada), mas segundo um critério qualitativo (...). O Supremo tem de acatar, em princípio, a matéria de facto fixada pelas instâncias (...). Como se compreende, atenta a excecionalidade deste recurso, o STA não tem vindo a admitir a revista, por entender não estarem em causa questões de importância fundamental, em relação à esmagadora maioria dos recursos que lhe têm sido dirigidos (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2007).
17º
Cumpre, assim, questionar o Tribunal sobre se um recurso com a excecionalidade do agora previsto no quadro da arbitragem necessária se mostra conforme com o direito de acesso aos tribunais e com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente protegidos.
18º
Para esta apreciação, revela-se de fundamental importância verificar aquela conformidade à luz do afirmado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 230/2013, segundo o qual, “o direito fundamental de acesso aos tribunais não pode conformar-se com a simples previsão de um dos mecanismos pelos quais é possível, nos termos gerais, impugnar jurisdicionalmente a decisão arbitral, impondo que as partes possam também discutir o mérito da decisão, pelo que sempre seria exigível uma maior abertura de possibilidade de recurso para um tribunal estadual.
A restrição do direito de acesso aos tribunais resulta, por conseguinte, da insuficiência dos mecanismos de acesso à justiça estadual, na medida em que não se contempla um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo”.
19º
Ora, em face da referida jurisprudência fixada no Acórdão n° 230/2013, a norma em apreciação, quer pelas limitações impostas aos recursos para a câmara de recurso, quer pela excecionalidade do recurso de revista, suscita fundadas dúvidas sobre a abrangência da recorribilidade das decisões arbitrais, em particular no que respeita à exigência de um “mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado”, o que pode comprometer a sua conformidade com os aludidos direitos e princípios constitucionais.»
3. Notificada para se pronunciar sobre o pedido, a Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos.
4. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação deste Tribunal sobre as questões a resolver, cumpre formulara a decisão em conformidade com o que se estabeleceu.
II. Fundamentação
5. Explicitação do objeto do pedido
O Presidente da República requer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, quando conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5.º do Anexo da Lei n.º 74/2013, publicada no Diário da República de 6 de setembro de 2013.
A Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, cria o Tribunal Arbitral do Desporto (artigo 1.º) e aprova, em anexo, a Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (artigo 2.º). Esta lei, na qual se inserem as normas impugnadas, só entrará em vigor 90 dias após a instalação do Tribunal Arbitral do Desporto, a qual incumbe ao Comité Olímpico de Portugal promover (artigo 5.º da Lei n.º 74/2013 e n.º 4 do artigo 1.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto), o que não impede, no entanto, a apreciação do pedido porquanto a fiscalização abstrata sucessiva incide sobre normas publicadas, mesmo que estas ainda não tenham entrado em vigor (neste sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, p. 796-797; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II vol., 4ª edição revista, p. 964).
Os artigos 4.º, 5.º e 8.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, têm a seguinte redação:
«Artigo 4.º
Arbitragem necessária
1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.
2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 - O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas referidas no n.º 1, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos atos ou omissões referidos no n.º 1 e previstos nos termos da lei ou de norma estatutária ou regulamentar.
4 - Cessa o disposto no número anterior sempre que a decisão do órgão jurisdicional federativo ou a decisão final de outra entidade desportiva referida no n.º 1 não haja sido proferida no prazo de 30 dias úteis, sobre a autuação do correspondente processo, caso em que o prazo para a apresentação do requerimento inicial junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final daquele prazo.
5 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.»
«Artigo 5.º
Arbitragem necessária em matéria de dopagem
Compete ao TAD conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.»
«Artigo 8.º
Recurso das decisões arbitrais
1 - São passíveis de recurso, para a câmara de recurso, as decisões dos colégios arbitrais que:
a) Sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis;
b) Estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso.
2 - Das decisões proferidas pela câmara de recurso, pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista.
3 - No caso de arbitragem voluntária, a submissão do litígio ao TAD implica a renúncia aos recursos referidos nos números anteriores.
4 - Fica salvaguardada, em todos os casos, a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão com os fundamentos e nos termos previstos na LAV.
5 - São competentes para conhecer da impugnação referida no número anterior o Tribunal Central Administrativo do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, no tocante a decisões proferidas no exercício da jurisdição arbitral necessária, ou o Tribunal da Relação do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, no tocante a decisões proferidas no exercício da jurisdição arbitral voluntária, previstas nesta lei.
6 - O recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, bem como a ação de impugnação da decisão arbitral, não afetam os efeitos desportivos validamente produzidos pela mesma decisão.»
Como resulta da fundamentação do pedido, para o Requerente, a inconstitucionalidade determinada pela restrição, de forma desproporcional, do direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, atinge as normas que determinam que, no âmbito da arbitragem necessária, a recorribilidade das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto para os tribunais estaduais só ocorra em casos excecionais, por ser necessário que passem o crivo do recurso interno para a câmara de recurso e, subsequentemente, demonstrem possuir a relevância exigida para o recurso de revista.
Defende o Requerente que o princípio constitucional do acesso ao Direito e aos tribunais visa tutelar, entre o mais, posições jurídicas subjetivas, a título individual, as quais não podem ser deixadas sem proteção a pretexto de serem social ou juridicamente irrelevantes.
O que o Requerente questiona é se o recurso das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto para os tribunais do Estado com a excecionalidade do previsto no quadro da arbitragem necessária se mostra conforme com o direito de acesso aos tribunais e com o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
Para o Requerente, em face da jurisprudência fixada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013, «a norma em apreciação, quer pelas limitações impostas aos recursos para a câmara de recurso, quer pela excecionalidade do recurso de revista, suscita fundadas dúvidas sobre a abrangência da recorribilidade das decisões arbitrais, em particular no que respeita à exigência de um “mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado”, o que pode comprometer a sua conformidade com os aludidos direitos e princípios constitucionais.»
Integram, assim, o objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade as normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todas da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, das quais resulta que, no âmbito da jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto, só são passíveis de recurso para os tribunais do Estado as decisões proferidas pela câmara de recurso em recursos de decisões dos colégios arbitrais que sancionem infrações disciplinares ou que estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, e quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
6. A apreciação preventiva da constitucionalidade (Decreto n.º 128/XII)
A Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, que cria o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) e aprova, em anexo, a Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, foi aprovada na sequência da reapreciação pela Assembleia da República do Decreto n.º 128/XII, o qual lhe fora devolvido pelo Presidente da República depois de o ter vetado, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 279.º da CRP, por o Tribunal Constitucional se ter pronunciado, no Acórdão n.º 230/2013, pela inconstitucionalidade da «norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao Decreto n.º 128/XII, na medida em que delas resulte a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária.»
Os artigos 4.º, 5.º e 8.º do Anexo do Decreto n.º 128/XII tinham a seguinte redação:
«Artigo 4.º
Arbitragem necessária
1 — Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.
2 — Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 — O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas referidas no n.º 1, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos atos ou omissões referidos no n.º 1 e previstos nos termos da lei ou de norma estatutária ou regulamentar.
4 — Cessa o disposto no número anterior sempre que a decisão do órgão jurisdicional federativo ou a decisão final de outra entidade desportiva referida no n.º 1 não haja sido proferida no prazo de 30 dias úteis, sobre a autuação do correspondente processo, caso em que o prazo para a apresentação do requerimento inicial junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final daquele prazo.
5 — É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.»
«Artigo 5.º
Arbitragem necessária em matéria de dopagem
Compete ao TAD conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.»
«Artigo 8.º
Natureza definitiva das decisões arbitrais
1 — Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as decisões proferidas, em única ou última instância, pelo TAD são insuscetíveis de recurso, considerando-se que a submissão do litígio ao Tribunal implica, no caso de arbitragem voluntária, a renúncia ao mesmo.
2 — São passíveis de recurso, para a câmara de recurso, as decisões dos colégios arbitrais que:
a) Sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis;
b) Estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso.
3 — Fica salvaguardada, em todos os casos, a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão com os fundamentos e nos termos previstos na LAV.
4 — São competentes para conhecer da impugnação referida no número anterior o Tribunal Central Administrativo do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, no tocante a decisões proferidas no exercício da jurisdição arbitral necessária, ou o Tribunal da Relação do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, no tocante a decisões proferidas no exercício da jurisdição arbitral voluntária, previstas nesta lei.
5 — A ação de impugnação da decisão arbitral não afeta os efeitos desportivos validamente produzidos pela mesma decisão.»
A pronúncia de inconstitucionalidade, pelo Acórdão n.º 230/2013, da norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao Decreto n.º 128/XII, fundou-se na violação do direito de acesso aos tribunais consagrado no n.º 1 do artigo 20.º, e na violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa.
7. As alterações ao Decreto n.º 128/XII
Como foi referido, a Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, foi aprovada na sequência da reapreciação pela Assembleia da República do Decreto n.º 128/XII, o qual lhe foi devolvido pelo Presidente da República depois de o ter vetado, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 279.º da CRP. Decorre da discussão parlamentar que as alterações propostas visaram «expurgar a inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional encontrou» mantendo-se, no entanto, o «desiderato de dotar o desporto nacional de uma justiça mais célere, mais pronta e especializada».
Reapreciado o Decreto n.º 128/XII foram aprovadas alterações na redação dos artigos 8.º, 9.º, 11.º, 21.º, 28.º, 29.º, 31.º, 41.º, 48.º e 59.º do Anexo (a discussão e votação das alterações teve lugar na Reunião Plenária n.º 116: Diário da Assembleia da República, I série, de 30 de julho de 2013, pág. 5-11 e 16-20).
Para além da simples introdução de emendas (artigos 9.º, 11.º, 21.º, 48.º e 59.º) e da alteração ao artigo 29.º, o qual regula a designação dos árbitros no âmbito da arbitragem voluntária, com interesse para a presente decisão, por terem aplicação no âmbito da arbitragem necessária, foram as seguintes as alterações aprovadas (destacam-se as variantes de redação de cada artigo):
«Artigo 8.º
Recurso das decisões arbitrais
1 — (Anterior n.º 2).
2 ? Das decisões proferidas pela câmara de recurso, pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista.
3 - No caso de arbitragem voluntária, a submissão do litígio ao TAD implica a renúncia aos recursos referidos nos números anteriores.
4 - (Anterior n.º 3).
5 - (Anterior n.º 4).
6 - O recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, bem como a ação de impugnação da decisão arbitral, não afetam os efeitos desportivos validamente produzidos pela mesma decisão.»
«Artigo 28.º
(…)
1 - ……………………………………………………………………………………………
2 - …………………………………………………………………………………………….
3 - Se uma parte não designar o árbitro ou se os árbitros designados pelas partes não acordarem na escolha do árbitro presidente, a designação do árbitro em falta é feita, a pedido de qualquer das partes, pelo presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul.
4 - …………………………………………………………………………………………….
5 - Se os demandantes ou os demandados não chegarem a acordo sobre o árbitro que lhes cabe designar, cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul, a pedido de qualquer das partes, fazer a designação do árbitro em falta.
6 - No caso previsto no número anterior, pode o presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul, caso se demonstre que as partes que não conseguiram nomear conjuntamente um árbitro têm interesses conflituantes relativamente ao fundo da causa, nomear a totalidade dos árbitros e designar de entre eles quem é o presidente, ficando nesse caso sem efeito a designação do árbitro que uma das partes tiver entretanto efetuado.
7 - Das decisões proferidas pelo presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul ao abrigo dos números anteriores não cabe recurso.
8 - ……………………………………………………………………………………………..»
«Artigo 31.º
(…)
1 - ……………………………………………………………………………………………
2 - Quando haja lugar à substituição de árbitro, consoante a natureza do litígio, o presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul ou o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa decide, ouvidas as partes e os árbitros, se e em que medida os atos processuais já realizados e os que eventualmente venham a realizar-se na pendência da substituição, por motivos de celeridade do procedimento, devem ser aproveitados.»
«Artigo 41.º
(…)
1 - ……………………………………………………………………………………………
2 - ……………………………………………………………………………………………..
3 - …………………………………………………………………………………………….
4 - ……………………………………………………………………………………………..
5 - …………………………………………………………………………………………….
6 - ……………………………………………………………………………………………..
7 - Consoante a natureza do litígio, cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul ou ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a decisão sobre o pedido de aplicação de medidas provisórias e cautelares, se o processo não tiver ainda sido distribuído ou se o colégio arbitral ainda não estiver constituído.
8 - …………………………………………………………………………………………….
9 - …………………………………………………………………………………………….. »
A comparação da redação dos artigos do Anexo do Decreto n.º 128/XII, submetido à apreciação preventiva do Tribunal Constitucional, com os da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, revela que não foram alteradas as normas dos artigos 4.º e 5.º, cuja conjugação com a norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º foi tida em conta na decisão de inconstitucionalidade desta, e que, por outro lado, foram alterados artigos que não foram objeto da decisão de inconstitucionalidade (artigos 28.º, 31.º e 41.º), não obstante o respetivo regime ter sido considerado na fundamentação do acórdão e contribuído para o juízo de inconstitucionalidade.
A alteração da redação dos artigos 28.º, 31.º e 41.º visou atribuir ao presidente do Tribunal Central Administrativo Sul ou ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa competências relativas à designação e substituição de árbitros e ao procedimento cautelar que, na redação do Anexo do Decreto n.º 128/XII, estavam cometidas ao presidente do Tribunal Arbitral do Desporto.
Quanto aos preceitos em que se estabelece o âmbito da jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto - os artigos 4.º e 5.º do Anexo do Decreto n.º 128/XII, que correspondem aos artigos 4.º e 5.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto -, só foram incluídos no objeto da decisão de inconstitucionalidade por serem necessários para a completa formulação da norma considerada inconstitucional, a qual era principalmente expressa na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º do mesmo Anexo.
A 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, na qual se estabelecia que «as decisões proferidas, em única ou última instância, pelo TAD são insuscetíveis de recurso» foi eliminada. Por outro lado, o n.º 1 deste artigo passou a ter a redação do anterior n.º 2, no qual se estabelece quais as decisões dos colégios arbitrais passíveis de recurso para a câmara de recurso, e o n.º 2 passou a ter uma nova redação, nos termos da qual das decisões proferidas pela câmara de recurso pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista.
A alteração introduzida pela Assembleia da República, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 8.º, foi, assim, suficiente para expurgar a norma tida por inconstitucional – a norma de que resultava a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária – expressa na anterior redação da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º.
O que o Requerente pretende, agora, é que o Tribunal Constitucional verifique se a nova formulação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 8.º, conjugada com os artigos 4.º e 5.º, da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, supera a violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, tal como se decidiu no acórdão n.º 230/2013 relativamente ao Decreto n° 128/XII.
Cumpre, então, apreciar as normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todas da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, das quais resulta que, no âmbito da jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto, só são passíveis de recurso para os tribunais do Estado as decisões proferidas pela câmara de recurso, em recursos de decisões dos colégios arbitrais que sancionem infrações disciplinares ou que estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, e quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, normas estas que não foram objeto de pronúncia no acórdão n.º 230/2013 e que são questionadas no presente pedido de declaração de inconstitucionalidade.
Como fundamento das dúvidas sobre a constitucionalidade das normas impugnadas, o pedido invoca a jurisprudência do Tribunal Constitucional fixada no acórdão n.º 230/2013, em particular a afirmação de que o direito fundamental de acesso aos tribunais impõe que «as partes possam (...) discutir o mérito da decisão» sendo «exigível uma maior abertura de possibilidade de recurso para um tribunal estadual» e de que a «restrição do direito de acesso aos tribunais resulta (…) da insuficiência dos mecanismos de acesso à justiça estadual, na medida em que não se contempla um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo».
Considera o Requerente que, face à jurisprudência do referido acórdão, a norma em apreciação, quer pelas limitações impostas aos recursos para a câmara de recurso, quer pela excecionalidade do recurso de revista, suscita fundadas dúvidas sobre a abrangência da recorribilidade das decisões arbitrais, em particular no que respeita à exigência de um «mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado», o que pode comprometer a sua conformidade com o direito de acesso aos tribunais e com o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
São estas as questões que cabe apreciar.
8. A jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto
8.1. A Lei do Tribunal Arbitral do Desporto estabelece a natureza, a competência, a organização e os serviços do TAD e as regras dos processos de arbitragem e de mediação a submeter ao TAD (artigo 2.º da Lei n.º 74/2013).
O TAD é apresentado, no artigo 1.º da Lei do TAD, como uma entidade jurisdicional independente, nomeadamente dos órgãos da administração pública do desporto e dos organismos que integram o sistema desportivo, o qual tem competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto.
O TAD exerce a sua jurisdição em todo o território nacional, tem sede no Comité Olímpico de Portugal e goza, no julgamento dos recursos e impugnações, de jurisdição plena, em matéria de facto e de direito (artigos 2.º e 3.º da Lei do TAD).
São elementos integrantes da organização e funcionamento do TAD o Conselho de Arbitragem Desportiva, o presidente, o vice-presidente, os árbitros, o conselho diretivo, o secretariado e a câmara de recurso (artigo 9.º da Lei do TAD).
O TAD é integrado, no máximo, por 40 árbitros constantes de uma lista aprovada pelo Conselho de Arbitragem Desportiva, sendo os árbitros que a integram designados, em parte, de entre os árbitros propostos pelas entidades referidas no n.º 1 do artigo 21.º da Lei do TAD (federações desportivas, Confederação do Desporto de Portugal, ligas profissionais, organizações socioprofissionais de praticantes, treinadores e árbitros e juízes, Comissão de Atletas Olímpicos, Confederação Portuguesa das Associações dos Treinadores, associações representativas de outros agentes desportivos, Associação Portuguesa de Direito Desportivo, Comissão Executiva do Comité Olímpico de Portugal) e, noutra parte, por livre escolha do Conselho de Arbitragem Desportiva.
Podem integrar a lista de árbitros juristas de reconhecida idoneidade e competência e personalidades de comprovada qualificação científica, profissional ou técnica na área do desporto, de reconhecida idoneidade e competência, devendo pelo menos metade dos árbitros designados ser licenciados em Direito (n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º e artigo 21.º da Lei do TAD).
As competências do TAD são desenvolvidas em duas vertentes: a arbitragem necessária (artigos 4.º e 5.º da Lei do TAD) e a arbitragem voluntária (artigos 6.º e 7.º da Lei do TAD). No âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, é atribuída ao TAD competência para conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina (n.º 1 do artigo 4.º da Lei do TAD) e para conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto (artigo 5.º da Lei do TAD).
A competência para conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina abrange, salvo disposição em contrário, as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis (n.º 2 do artigo 4.º da Lei do TAD) mas o acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas e ligas profissionais, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos atos ou omissões previstos nos termos da lei ou de norma estatutária ou regulamentar (n.º 3 do artigo 4.º da Lei do TAD).
A obrigatoriedade de acesso ao TAD em via de recurso cessa sempre que a decisão do órgão jurisdicional federativo ou a decisão final de outra entidade desportiva ou liga profissional não haja sido proferida no prazo de 30 dias úteis, sobre a autuação do correspondente processo, caso em que o prazo para a apresentação do requerimento inicial junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final daquele prazo (n.º 4 do artigo 4.º da Lei do TAD).
É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3 do artigo 4.º da Lei da TAD, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva (n.º 5 do artigo 4.º da Lei do TAD).
A jurisdição do TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, é exercida por um colégio de três árbitros, de entre os constantes da lista do Tribunal sem prejuízo de, no caso de serem indicados contrainteressados, estes designarem conjuntamente um árbitro (n.ºs 1 e 8 do artigo 28.º da Lei do TAD).
Cada parte designa um árbitro e os árbitros assim designados devem escolher outro que atua como presidente do colégio de árbitros. Se uma parte não designar o árbitro ou se os árbitros designados pelas partes não acordarem na escolha do árbitro presidente, a designação do árbitro em falta é feita, a pedido de qualquer das partes, pelo presidente do Tribunal Central Administrativo Sul (n.ºs 2 e 3 do artigo 28.º da Lei do TAD).
Em caso de pluralidade de demandantes ou de demandados, os primeiros designam conjuntamente um árbitro e os segundos designam conjuntamente outro. Se os demandantes ou os demandados não chegarem a acordo sobre o árbitro que lhes cabe designar, cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, a pedido de qualquer das partes, fazer a designação do árbitro em falta (n.ºs 4 e 5 do artigo 28.º da Lei do TAD).
O TAD pode decretar providências cautelares adequadas à garantia da efetividade do direito ameaçado, quando se mostre fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, ficando o respetivo procedimento cautelar sujeito ao regime previsto no artigo 41.º da Lei do TAD sendo, ainda, aplicáveis, com as necessárias adaptações, os preceitos legais relativos ao procedimento cautelar comum constantes do Código de Processo Civil (n.ºs 1 e 9 do artigo 41.º da Lei do TAD). No âmbito da arbitragem necessária, a competência para decretar as providências cautelares pertence em exclusivo ao TAD mas cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo Sul a decisão sobre o pedido de aplicação de medidas cautelares se o processo não tiver ainda sido distribuído ou se o colégio arbitral ainda não estiver constituído (n.ºs 2 e 7 do artigo 41.º da Lei do TAD).
São passíveis de recurso, para a câmara de recurso, as decisões dos colégios arbitrais que sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis ou que estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso (n.º 1 do artigo 8.º da Lei do TAD).
A câmara de recurso é constituída, além do presidente, ou, em sua substituição, do vice-presidente do TAD, por oito árbitros, de entre os da lista do Tribunal, designados pelo Conselho de Arbitragem Desportiva (n.º 1 do artigo 19.º da Lei do TAD).
Das decisões proferidas pela câmara de recurso, pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista (n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD).
8.2. Como se deixou referido, ao TAD é atribuída, no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, competência exclusiva para conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina, bem como para conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto (n.º 1 do artigo 4.º e artigo 5.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto).
As federações desportivas são pessoas coletivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respetiva modalidade, se propõem, designadamente, promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática de uma modalidade desportiva ou um conjunto de modalidades afins ou associadas (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, diploma que estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva).
Não obstante serem pessoas coletivas privadas, às quais é aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro e, subsidiariamente, o regime jurídico das associações de direito privado (artigo 4.º), a concessão do estatuto de utilidade pública desportiva confere às federações desportivas competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública (artigo 10.º). O artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008 afirma expressamente que têm natureza pública os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respetiva modalidade que, para tanto, lhes sejam conferidos por lei.
As federações unidesportivas (as que englobam pessoas ou entidades dedicadas à prática da mesma modalidade desportiva, incluindo as suas várias disciplinas, ou a um conjunto de modalidades afins ou associadas) em que se disputem competições desportivas de natureza profissional integram uma liga profissional, de âmbito nacional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira, a qual exerce, por delegação da respetiva federação, as competências relativas às competições de natureza profissional, cabendo-lhe exercer as competências da federação em matéria de organização, direção, disciplina e arbitragem, nos termos da lei (n.º 2 do artigo 26.º e n.ºs 1 e 4 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro).
Nestes termos, às ligas profissionais cabe exercer, por delegação da respetiva federação, poderes de natureza pública conferidos à federação pela concessão do estatuto de utilidade pública desportiva.
Do exposto resulta que o legislador atribuiu ao TAD competência exclusiva para conhecer dos litígios emergentes de atos e omissões das federações e ligas profissionais no âmbito do exercício de poderes públicos de autoridade. Como se observou no acórdão n.º 230/2013, o que o n.º 1 do artigo 4.º da Lei do TAD estabelece é «a arbitragem necessária como único meio de resolução dos litígios e não contém qualquer exceção relativamente aos atos administrativos que poderão ser objeto de apreciação em tribunal arbitral, na medida em que abrange todos os atos praticados no exercício de poderes de autoridade, incluindo os atos sancionatórios (…)».
Também as deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto, de cujos recursos compete ao TAD conhecer no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária (artigo 5.º da Lei do TAD), são deliberações adotadas no exercício de poderes públicos de autoridade.
A Lei do TAD atribui, assim, em exclusivo, ao TAD a competência para conhecer de litígios que envolvem o exercício de poderes de natureza pública, em especial litígios que decorrem da prática ou omissão de atos de autoridade, subtraindo-os às regras do contencioso administrativo e à competência dos tribunais administrativos, onde até aqui se encontravam.
Com efeito, atenta a natureza pública dos poderes conferidos às federações desportivas e às ligas profissionais estabelece o n.º 1 do artigo 18.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro) que os litígios emergentes dos atos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, o que é reafirmado no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, normas estas que são revogadas pela Lei n.º 74/2013 (artigo 4.º).
Também na lei antidopagem no desporto, aprovada pela Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que adotou na ordem jurídica interna as regras estabelecidas no Código Mundial Antidopagem, se estabeleceu, na norma transitória do n.º 3 do artigo 77.º, que «até à criação e funcionamento do Tribunal Arbitral do Desporto, a impugnação das decisões de aplicação de coima ou de sanção disciplinar é feita para o tribunal administrativo competente.»
8.3. Sobre a atribuição à jurisdição arbitral necessária do TAD de competência para conhecer litígios que têm por objeto atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, concedidos por efeito da delegação de poderes efetuada pela atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva e para conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem (litígios antes sujeitos à jurisdição administrativa), pronunciou-se o Tribunal Constitucional no já referido acórdão n.º 230/2013, aquando da apreciação preventiva da constitucionalidade de norma do Decreto n.º 128/XII.
Entendeu o Tribunal Constitucional que «a criação de tribunais arbitrais não pode deixar de se encontrar preordenada a outros princípios constitucionais e, de entre estes, à garantia de acesso aos tribunais e à garantia de reserva de jurisdição» e que a submissão de litígios a uma jurisdição arbitral, como prevê o n.º 2 do artigo 209º da CRP, «não significa que o recurso a um tribunal estadual não seja ainda a principal via de acesso ao direito e que não possam ser estabelecidos, com base nessa reserva de jurisdição, certos limites à constituição de tribunais arbitrais.»
Sublinhou, por outro lado, que embora no domínio do contencioso administrativo a possibilidade de recurso à arbitragem não seja inteiramente estranha aos litígios que envolvam o exercício de poderes de autoridade da Administração, a solução preconizada na Lei do TAD distingue-se porque prevê «a arbitragem necessária como único meio de resolução dos litígios e não contém qualquer exceção relativamente aos atos administrativos que poderão ser objeto de apreciação em tribunal arbitral, na medida em que abrange todos os atos praticados no exercício de poderes de autoridade, incluindo os atos sancionatórios (…)».
Admitindo que, fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o direito de acesso aos tribunais poderá ser assegurado apenas em via de recurso, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição ou reserva de tribunal, o Tribunal identificou especiais dificuldades porque «estamos perante uma forma de arbitragem necessária e a autoridade administrativa implicada no processo arbitral é uma entidade privada que apenas intervém na execução de uma tarefa de interesse público por efeito da transferência do exercício de poderes pertencentes a uma entidade pública e que, apesar da transferência, se mantêm na sua titularidade».
Considerou o Tribunal Constitucional não ser «aceitável, num primeiro relance, que o Estado delegue poderes de autoridade numa entidade privada, operando por essa via uma privatização orgânica da Administração relativamente ao exercício de uma certa tarefa pública, e simultaneamente renuncie também a qualquer controlo jurisdicional de mérito, através de tribunais estaduais, quanto às decisões administrativas que sejam praticadas no quadro jurídico dessa delegação de competências.»
E que, em tese geral, «a exigência de previsão de um meio de recurso para um tribunal estadual, no quadro da arbitragem necessária, torna-se mais evidente, no plano jurídico-constitucional, quando não estão em causa meras relações de direito privado, nem meras relações jurídicas administrativas em que as partes se encontrem em situação de paridade, mas antes relações jurídicas que decorrem do exercício de poderes de autoridade.»
Entendeu-se que, para além disso, a circunstância de estarem «implicados poderes de autoridade que resultam de uma transferência de responsabilidade no exercício de uma certa tarefa pública, de que o Estado é ainda o titular e por cuja execução continua a ser o garante, justifica que se invoque uma reserva relativa de juiz que proporcione aos tribunais estaduais a última palavra na resolução de litígios que resultem dessa intervenção administrativa delegada.»
E que «ainda que os tribunais arbitrais constituam uma categoria de tribunais e exerçam a função jurisdicional, não pode perder-se de vista que essa é uma forma de jurisdição privada, que, no caso do Tribunal Arbitral do Desporto, é imposta obrigatoriamente aos potenciais lesados por decisões unilaterais praticadas por entidades desportivas no exercício de poderes de autoridade.»
Concluiu o Tribunal Constitucional que o «direito fundamental de acesso aos tribunais constitui tendencialmente uma garantia de acesso a tribunais estaduais em resultado da necessária conexão entre esse direito e a reserva de jurisdição, que apenas poderá caracterizar uma reserva de jurisdição arbitral quando o acesso ao tribunal arbitral seja livre e voluntário. Ademais, a intervenção de órgãos judiciais do Estado torna-se particularmente exigível quando se trate de assegurar, no quadro regulatório da atuação de entidades privadas investidas em poderes públicos, a sua vinculação à lei e aos princípios materiais de juridicidade administrativa, e, desse modo, também, a adequada fiscalização do desempenho da tarefa pública que lhes incumbe.»
Concluiu, ainda, que neste contexto a irrecorribilidade das decisões arbitrais «representa uma clara violação do direito de acesso aos tribunais, não apenas por se tratar de decisões adotadas no âmbito de uma arbitragem necessária, mas também pela natureza dos direitos e interesses em jogo e pelo facto de estar em causa o exercício de poderes de autoridade delegados.»
Clarificando, depois, que o direito fundamental de acesso aos tribunais impõe que as partes possam discutir num tribunal estadual o mérito da decisão arbitral e que a restrição do direito de acesso aos tribunais resulta «da insuficiência dos mecanismos de acesso à justiça estadual, na medida em que não se contempla um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo».
Decorre, assim, da jurisprudência do Acórdão n.º 230/2013 que pode ser atribuída à jurisdição arbitral necessária do TAD competência para conhecer litígios que têm por objeto atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, concedidos por efeito da delegação de poderes efetuada pela atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva e para conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, desde que se contemplem mecanismos que proporcionem aos tribunais estaduais a última palavra na resolução desses litígios.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se, na Lei do TAD, se contemplam mecanismos que proporcionem aos tribunais estaduais, com suficiente abrangência para salvaguardar os valores constitucionais em presença, a última palavra na resolução dos litígios submetidos à jurisdição arbitral necessária do TAD. Dito de outro modo: se são suficientes os mecanismos de acesso à justiça estadual, em especial se se contemplou um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral.
9. Recurso das decisões proferidas no âmbito da jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto
9.1. Encontram-se previstos no artigo 8.º da Lei do TAD três mecanismos de acesso à justiça estadual para «discussão» de uma decisão adotada no âmbito da jurisdição arbitral necessária do TAD: o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, o recurso para o Tribunal Constitucional e a ação de impugnação da decisão arbitral. Nenhum destes meios de recurso ou impugnação afeta os efeitos desportivos validamente produzidos pela mesma decisão (n.º 6).
É facultada a possibilidade de impugnação da decisão arbitral através de uma ação com os fundamentos e nos termos previstos na LAV (n.º 4 do artigo 8.º). Nesta ação, como decorre do disposto no artigo 46.º da LAV, as partes só podem pedir a anulação da decisão arbitral e esta só pode ser anulada «por nulidade de sentença ou com fundamento em violação de lei processual ou outras questões formais» (acórdão n.º 230/2013), não se possibilitando ao tribunal estadual a pronúncia sobre o mérito da decisão arbitral.
O recurso para o Tribunal Constitucional também não permite às partes a discussão sobre o mérito da decisão arbitral, porquanto o objeto do recurso de constitucionalidade não é a decisão arbitral em si mesma considerada mas uma norma ou interpretação normativa e este recurso «é sempre restrito a uma questão de constitucionalidade, que consiste em saber se uma norma aplicável a uma causa pendente é ou não inconstitucional, limitando-se, por isso, à apreciação de uma questão jurídico-constitucional, que poderá resultar da aplicação pelo tribunal arbitral de norma que tenha sido arguida de inconstitucionalidade ou de recusa de aplicação de norma por motivo de inconstitucionalidade» (acórdão 230/2013).
Nenhum destes mecanismos de acesso a um tribunal estadual constitui, pois, como se considerou no acórdão n.º 230/2013, um mecanismo de reexame da decisão arbitral perante um órgão judicial do Estado.
Assim, a questão colocada ao Tribunal residirá em saber se o mecanismo de acesso aos tribunais estaduais previsto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD, o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, é um mecanismo de reexame que permite ao particular discutir a decisão arbitral que se pronunciou sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, pôs termo ao processo arbitral, em termos tais que permitam afirmar que a última palavra na resolução dos litígios submetidos à jurisdição arbitral necessária do TAD cabe ao Supremo Tribunal Administrativo.
9.2. A Lei do TAD prevê a possibilidade de interposição de recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo das decisões proferidas pela câmara de recurso quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista (n.º 2 do artigo 8.º).
A possibilidade de recurso para um tribunal do Estado, no caso o Supremo Tribunal Administrativo, depende, assim, de (i) se tratar de uma decisão proferida pela câmara de recurso (instância de recurso do TAD) e (ii) de estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou da admissão do recurso ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Como se referiu, a jurisdição do TAD, no âmbito arbitragem necessária, é exercida por um colégio de três árbitros, de entre os da lista do Tribunal, a quem compete conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina e dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.
Ora, das decisões proferidas pelos colégios arbitrais, no âmbito dos litígios submetidos à jurisdição arbitral necessária do TAD, só são passíveis de recurso para a câmara de recurso as decisões que sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis ou que estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso (n.º 1 do artigo 8.º do TAD).
Daqui decorre, desde logo, que para muitos dos litígios submetidos à apreciação do TAD se encontra prevista uma única instância – a que é exercida pelos colégios arbitrais. Com efeito, fora dos casos identificados no n.º 1 do artigo 8.º da Lei do TAD, as decisões dos colégios arbitrais não são passíveis de recurso nem para a instância de recurso do TAD nem para os tribunais estaduais.
Por seu turno, das decisões proferidas pela câmara de recurso (nos limitados casos em que é admissível recurso para esta instância) só pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Também o artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que regula o recurso de revista no âmbito do contencioso administrativo, para cuja aplicação remete o n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD, faz depender a possibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo, de estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou da admissão do recurso ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Com efeito, do confronto do disposto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto com o disposto no n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, resulta que os requisitos de admissão do recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo das decisões proferidas pela câmara de recurso do TAD, no âmbito da jurisdição arbitral necessária do TAD, são iguais aos requisitos de admissão do recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo de decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo. Acresce que ao recurso de revista das decisões proferidas pela câmara de recurso do TAD se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista, ou seja o referido artigo 150.º.
Ora, no âmbito do contencioso administrativo é unânime, quer na doutrina quer na jurisprudência, o entendimento de que o recurso de revista previsto no artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos é um recurso excecional, o que é de resto afirmado expressamente pelo legislador quando estabelece que das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo (n.º 1).
A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos de admissão do recurso de revista compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Administrativo (Para uma síntese dos critérios essenciais que têm sido seguidos na prática jurisprudencial quanto à admissão do recurso de revista excecional cfr. Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição revista, Coimbra, p. 988-989).
Quanto aos pressupostos do recurso de revista, o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido (cfr., entre muitos outros, o acórdão de 3 de outubro de 2013, processo n.º 1244/13, disponível para consulta em www.dgsi.pt) que a «intervenção do STA é considerada justificada apenas em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se desvirtuarem os fins tidos em vista pelo legislador.»
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a considerar que «a relevância jurídica fundamental, exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA, se verifica tanto em face de questões de direito substantivo, como de direito processual, sendo essencial que a questão atinja o grau de relevância fundamental. Nos termos daquela jurisprudência, o preenchimento do conceito indeterminado verifica-se, designadamente, quando se esteja perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a sua solução envolve a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou ao nível da doutrina.»
E tem «considerado que estamos perante assunto de relevância social fundamental quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode ser um paradigma ou orientação para se apreciarem outros casos, ou quando tenha repercussão de grande impacto na comunidade.»
Já quanto à admissão do recurso de revista para uma melhor aplicação do direito esta «tem tido lugar relativamente a matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, impondo-se a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como condição para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula certa situação, vendo-se a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objetivo, isto é, que o recurso não visa primariamente a correção de erros judiciários.»
Desta jurisprudência decorre que o recurso de revista para Supremo Tribunal Administrativo é um recurso excecional só sendo justificada a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo «em matérias de assinalável relevância e complexidade».
Resulta, ainda, que «o objetivo principal desta revista não será tanto a defesa do recorrente quanto a realização de interesses comunitários de grande relevo, designadamente, a boa aplicação do direito» (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 12.ª edição, Coimbra, 2012, p. 413). Também neste sentido, Elizabeth Fernandez observa que «a construção deste sistema de revista acaba por determinar que a satisfação do interesse do recorrente em ver a decisão que lhe foi desfavorável reapreciada está diretamente dependente e condicionada pela utilidade de que a impugnação se reveste e que ultrapassa o exclusivo núcleo de interesses do mesmo, só sendo admitida na exata medida em que, concomitantemente aos interesses defendidos pelo recorrente, da admissão da mesma possa resultar, igualmente, uma utilidade para o sistema jurídico ou para a comunidade» (Notas sobre a excecionalidade da revista no processo administrativo, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 60, p. 26-27).
O recurso (excecional) de revista tem, pois, uma função predominantemente objetiva, porquanto não está orientado principalmente para a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, mas sim para a defesa de interesses comunitários.
Deverá, no entanto, ter-se presente que, na jurisdição administrativa, o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo corresponde a uma segunda instância de recurso nos tribunais estaduais e a um triplo grau de jurisdição, enquanto no âmbito da jurisdição arbitral necessária do TAD o recurso de revista, embora consista também num duplo grau de recurso, porquanto as decisões recorríveis são decisões proferidas pela instância de recurso do TAD, constitui o primeiro (e único) grau de acesso à justiça estadual.
Deverá, ainda, ter-se em atenção que, se a Constituição não impõe a existência de um terceiro grau de jurisdição para a resolução dos litígios submetidos aos tribunais administrativos (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2009), impõe, de acordo com a orientação fixada no Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, a existência de um mecanismo de acesso aos tribunais do Estado para a apreciação dos litígios submetidos à jurisdição arbitral necessária do TAD.
Assim, se no âmbito do contencioso administrativo se pode justificar a previsão de um recurso com pendor objetivo, por se tratar de um segundo grau de recurso jurisdicional, já no âmbito da jurisdição arbitral do TAD a previsão de um (único) recurso aos tribunais do Estado, que não visa, à partida, a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, viola o direito fundamental de acesso aos tribunais, pois este visa tutelar, entre o mais, posições jurídicas subjetivas, a título individual, as quais não podem ser deixadas sem proteção por não serem social ou juridicamente relevantes.
Com o recurso de revista, tal como ele se encontra previsto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD, não é possibilitado ao particular (que viu o seu litígio emergente do exercício de poderes públicos de autoridade submetido ao tribunal arbitral por imposição da lei e não por sua vontade) o acesso ao tribunal estadual, a não ser em casos excecionais, quando se trate de uma decisão relativa a infrações disciplinares ou se tenha verificado oposição de julgados e a sua pretensão possua a exigida relevância jurídica ou social.
Com efeito, exceto em algumas «matérias de assinalável relevância e complexidade», a última palavra na resolução dos litígios submetidos à jurisdição arbitral necessária do TAD continua a não caber aos tribunais estaduais, mantendo-se a insuficiência dos mecanismos de acesso à justiça estadual, por não se contemplar «um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo».
Neste contexto, a recorribilidade das decisões arbitrais para os tribunais do Estado, tal como se encontra prevista nas normas impugnadas, representa uma violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da CRP, quer pelas limitações impostas quanto às decisões recorríveis, quer pela excecionalidade dos requisitos de admissão do recurso de revista.
9.3. Uma outra questão que se coloca prende-se com os poderes de cognição do tribunal de revista.
Como se referiu, o n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD, no qual se estabelece a possibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo das decisões proferidas pela câmara de recurso, determina a aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto no artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista.
Dispõe este preceito que a revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual (n.º 2) e que, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado (n.º 3). Dispõe, ainda, que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (n.º 4).
De acordo com o regime do recurso de revista, previsto no artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Supremo Tribunal Administrativo apenas tem competência para conhecer questões de direito, porquanto se limita a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, estando, à partida, excluído o recurso com base em erro de julgamento quanto à matéria de facto (neste sentido Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição revista, Coimbra, p. 984).
Observam estes Autores que o «Supremo tem de acatar, em princípio, a matéria de facto fixada pelas instâncias (n.º 3), tendo aí uma função meramente residual, destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material (n.º 4) ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, quando esta não constitua base suficiente para a decisão de direito ou ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica – 729.º, n.º 3, do CPC.» (n.º 3 do artigo 682.º do Novo CPC).
No recurso de revista não é possibilitada às partes a discussão sobre o mérito da decisão da matéria de facto adotada pela jurisdição arbitral. Assim, em regra, a última palavra quanto ao julgamento da matéria de facto caberá à jurisdição arbitral e não ao Supremo Tribunal Administrativo pelo que, também nesta medida, o recurso de revista, previsto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD, não veio suprir a insuficiência de mecanismos de acesso à justiça estadual, apontada no acórdão n.º 230/2013.
9.4. Acresce que, não obstante a reformulação do Decreto n.º 128/XII tenha diminuído o grau de autonomia da justiça desportiva, em termos que já não permitem qualificá-la como uma autonomia plena, mantêm-se inteiramente válidos, face aos termos em que é configurado o recurso de revista, os fundamentos que levaram o Tribunal Constitucional a considerar, no acórdão n.º 230/2013, verificada a restrição do direito fundamental de acesso aos tribunais em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade.
Com efeito, a criação do Tribunal Arbitral do Desporto foi justificada pela «necessidade de o desporto possuir um mecanismo alternativo de resolução de litígios que se coadune com as suas especificidades de justiça célere e especializada». O «desiderato de dotar o desporto nacional de uma justiça mais célere, mais pronta e especializada» veio, depois, a ser reafirmado aquando da reapreciação pela Assembleia da República do Decreto n.º 128/XII, na sequência da devolução pelo Presidente da República.
Ora, é «questionável, à luz do princípio da necessidade (como pressuposto material da restrição legítima de direitos, liberdades e garantias), que a prossecução desse objetivo, para além da submissão imediata dos litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo a um tribunal arbitral» justifique também a previsão do recurso para o tribunal estadual apenas em casos excecionais «tendo em consideração que a justiça desportiva contempla tradicionalmente o caso julgado desportivo, que permite, relativamente aos litígios emergentes dos atos dos órgãos das federações desportivas que fiquem sempre “salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos”», o que é reconhecido no n.º 6 do artigo 8º da Lei do TAD em relação ao recurso para o Tribunal Constitucional, ao recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo e à ação de impugnação da decisão arbitral.
Como se entendeu no acórdão n.º 230/2013:
«Esta circunstância impede naturalmente que a eventual demora na resolução definitiva do litígio, provocada pela intervenção de um tribunal estadual em sede de recurso, produza quaisquer efeitos negativos na organização e funcionamento das provas desportivas que às federações desportivas cabe especialmente dirigir e regulamentar. Mas ainda que assim não fosse, o risco de protelamento da resolução de litígios no âmbito da justiça desportiva sempre ocorreria em consequência da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão arbitral, a que se refere o n.º 3 daquele artigo 8º.
A solução mostra-se também excessiva e desrazoável quando é certo que o interesse de celeridade, uniformidade e eficiência que se pretende assegurar, tem a desvantajosa consequência de limitar o direito de acesso aos tribunais estaduais, em via de recurso, numa matéria em que está em causa o controlo jurisdicional da legalidade de atos administrativos, incluindo atos sancionatórios, e, portanto, a própria verificação da atuação das federações desportivas segundo um regime de direito administrativo.
Sendo que a relevância dos interesses em jogo, que poderão justificar a medida, se encontram já suficientemente salvaguardados, quer pelo mecanismo da arbitragem necessária, que obriga a uma apreciação do litígio no âmbito do tribunal arbitral, quer por via do já falado caso julgado desportivo, que impede a invalidação de efeitos desportivos que resultem de decisões proferidas na ordem interna.»
Haverá assim que concluir, como no acórdão n.º 230/2013, que as normas impugnadas, na medida em que permitem o recurso para um tribunal estadual apenas em casos excecionais, violam o direito de acesso aos tribunais, quando entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade, nas referidas vertentes de necessidade e justa medida.
III. Decisão
10. Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º, em articulação com o princípio da proporcionalidade, e por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição, das normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todas da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro.
Lisboa, 20 de novembro de 2013 – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro –Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha - Ana Guerra Martins – Pedro Machete - Maria João Antunes (vencida, pelas razões constantes da declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 230/2013– Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida nos termos da declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Fiquei vencida na decisão do presente acórdão.
Entendo que as normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, não violam o direito de acesso aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição e o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
2. Dissenti do decidido no presente acórdão, essencialmente por não acompanhar a tese da reserva de jurisdição estadual em matéria de justiça desportiva agora claramente reconhecida pelo Tribunal na fundamentação da presente decisão, no seu n.º 9. Aceitando alguma margem de preferência da Constituição por uma justiça tendencialmente estadual, designadamente quando está em causa o controlo judicial do exercício de poderes de autoridade delegados, não subscrevo, todavia, a conclusão, agora assumida pelo Tribunal, de que só é admissível a imposição de tribunais arbitrais (arbitragem necessária) se for acautelada a possibilidade de recurso das suas decisões para os tribunais estaduais.
3. Diferentemente do entendimento sufragado pela maioria, entendo que não permanecem “inteiramente válidos” os fundamentos que levaram o Tribunal a considerar verificada a restrição do direito fundamental de acesso aos tribunais em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, no Acórdão n.º 230/2013 (n.º 9.4. do Acórdão).
No Acórdão n.º 230/2013, que votei favoravelmente, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade do Decreto n.º 128/XII, que veio a ser promulgado como Lei, ora sob escrutínio, após alteração pela Assembleia da República. O Tribunal partiu das seguintes premissas: i) não é «aceitável (…) que o Estado delegue poderes de autoridade numa entidade privada, operando por essa via uma privatização orgânica da Administração relativamente ao exercício de uma certa tarefa pública, e simultaneamente renuncie também a qualquer controlo jurisdicional de mérito, através de tribunais estaduais, quanto às decisões administrativas que sejam praticadas no quadro jurídico dessa delegação de competências»; e ii) «O direito fundamental de acesso aos tribunais constitui tendencialmente uma garantia de acesso a tribunais estaduais em resultado da necessária conexão entre esse direito e a reserva de jurisdição, que apenas poderá caracterizar uma reserva de jurisdição arbitral quando o acesso ao tribunal arbitral seja livre e voluntário» (n.º 13 do Acórdão, realce da minha autoria).
Por considerar excessiva a solução então prevista no Decreto n.º 128/XII, acompanhei a decisão de inconstitucionalidade das normas ali estabelecidas, na medida em que delas resultava a total irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária.
Ora o mesmo fundamento não se verifica agora. O diploma ora em análise, Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada em anexo à Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, não restringe totalmente o acesso aos tribunais do Estado.
4. Das decisões dos colégios arbitrais cabe recurso para a câmara de recurso, quando estas sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis ou que estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso (artigo 8.º, n.º 1, da Lei do TAD). De qualquer decisão do Tribunal Arbitral do Desporto está aberta a via de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão nos termos da LAV para o Tribunal Central Administrativo (artigo 8.º, n.º 4, da Lei do TAD). E das decisões proferidas pela câmara de recurso, pode haver recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto ao recurso de revista (artigo 8.º, n.º 2, da Lei do TAD). Esta última possibilidade foi introduzida após a fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Ora, sendo assim, não é possível continuar a ver no regime instituído uma concessão (excessiva e desnecessária) de «autonomia plena à justiça desportiva, em termos de não ser possível, fora do âmbito de questões estritamente desportivas, qualquer interação com a organização judiciária estadual, com incidência sobre decisões de mérito» (n.º 11 do Acórdão n.º 230/13, realces da minha autoria). O regime atual consagra uma via de acesso dos cidadãos à justiça estadual, pelo que existe uma diferença substancial face à realidade sujeita a análise no âmbito da fiscalização preventiva.
Reconheço que o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo das decisões proferidas pela câmara de recurso é limitado às situações em que «esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito» (artigo 8.º, n.º 2, da Lei do TAD). Independentemente dessa limitação, certo é que o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo não deixa de assegurar um elo de ligação, também ao nível da apreciação de mérito, à justiça exercida pelos tribunais do Estado. Diga-se, aliás, que caberá à organização judiciária do Estado definir se esta possibilidade de recurso assume um carácter mais estrito ou mais amplo. Será, com efeito, um tribunal do Estado (Supremo Tribunal Administrativo) a decidir sobre a verificação dos pressupostos de admissão do recurso: a “importância fundamental” da questão e a sua “relevância jurídica ou social” ou a necessidade do recurso “para uma melhor aplicação do direito”.
Em conformidade, a interação com a justiça estadual estabelecida pelo regime do TAD instituído pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, só pode continuar a ser considerada insuficiente para assegurar o direito de acesso à justiça, num entendimento demasiadamente restritivo, que não subscrevo, do direito de acesso aos tribunais. De acordo com aquele entendimento, o direito de acesso à justiça, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, constituiria, já não uma mera garantia de acesso tendencial aos tribunais estaduais (como entendido no Acórdão n.º 230/13), mas um direito a poder sempre recorrer para aqueles tribunais (órgãos do Estado) – em situação de arbitragem necessária. Ora, uma tal interpretação ignora que os tribunais arbitrais também são tribunais, e exercem a função jurisdicional, de acordo com a Constituição (artigo 209.º), resultando neste caso de uma opção do legislador democraticamente legitimado, de confiar num sistema de arbitragem necessária.
Como o Tribunal afirmou no Acórdão n.º 52/92 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), «não valem neste plano da arbitragem necessária as teses contratualistas de certa doutrina, segundo as quais, o fundamento da auctoritas arbitral residirá na autonomia da vontade das partes (…). O tribunal arbitral necessário é um instituto distinto, pela sua origem, do tribunal arbitral voluntário; surge em virtude de ato legislativo e não como resultado de negócio jurídico de Direito privado. Daí, o seu carácter tipicamente publicístico».
5. A circunstância de o recurso de revista não possibilitar às partes a discussão da decisão da matéria de facto apreciada na jurisdição arbitral - argumento igualmente usado no Acórdão em reforço da tese da inconstitucionalidade -, não deve impressionar. A instituição da arbitragem visa confiar a julgadores especialmente habilitados o julgamento de litígios referentes a matérias que, pela sua própria natureza, requerem conhecimentos técnicos especiais. Assim, a sujeição da apreciação da matéria de facto, confiada a árbitros especializados, ao subsequente controlo pelos tribunais comuns, além de, em teoria, nada poder acrescentar à qualidade da decisão, frustra a própria razão de ser da instituição da arbitragem.
6. A tutela jurisdicional efetiva, assegurada na Constituição (artigos 20.º e 268.º, n.º 4) não se reconduz necessariamente a uma tutela assegurada por tribunais do Estado. A nossa Constituição não garante um monopólio estadual da função jurisdicional, ou qualquer exclusividade à justiça pública. As principais garantias constitucionais que o princípio da tutela jurisdicional efetiva postula, como todas as garantias inerentes à independência do julgador (artigo 203.º), o processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4), a fundamentação das decisões (artigo 205.º, n.º 1), o respeito pelo caso julgado (artigo 282.º, n.º 3) ou mesmo a disponibilização de medidas cautelares adequadas (artigo 268.º, n.º 4), não constituem privilégio exclusivo da justiça estadual. Fundamental é, pois, que a jurisdição exercida, seja por juízes ou por árbitros, ofereça garantias orgânicas, estatutárias e processuais da independência do julgamento.
A possibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo em casos de relevância jurídica ou social, com importância fundamental, ou nas situações em que a admissão do recurso se revele indispensável (“claramente necessária”) para uma melhor aplicação do direito, não permitem o desinteresse e alheamento do Estado da forma como é administrada a justiça pelas entidades desportivas, a quem aquele delegou o exercício de poderes de autoridade, salvaguardando a reapreciação de mérito nos casos relevantes.
Por estas razões não acompanhei o agora decidido.
Maria de Fátima Mata-Mouros