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Processo n.º 81/2013
Plenário
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1.Um Grupo de Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores requereu a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e, subsidiariamente, da ilegalidade, dos n.ºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º; artigo 68.º; n.ºs 2 e 3 do artigo 149.º; n.º 3 do artigo 188.º e artigo 262.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro – Orçamento do Estado para 2013.
2. Os requerentes alegam, em síntese, o seguinte:
– No que respeita à redução de trabalhadores contratados e à limitação do recrutamento de trabalhadores para a Administração Pública Regional, o artigo 227.º da CRP reconhece as Regiões Autónomas como pessoas coletivas territoriais, estabelecendo-lhes um conjunto alargado de poderes, a definir nos respetivos Estatutos, destacando-se, concretamente, o poder de 'Exercer poder executivo próprio [cfr. alínea g) do n.º 1 do artigo 227.º]; o poder de “Superintender nos serviços, institutos públicos e empresas públicas e nacionalizadas que exerçam a sua atividade exclusiva ou predominantemente na região, e noutros casos em que o interesse regional o justifique” [cfr. alinea o) do n.º 1 do artigo 227.º]; o poder de “aprovar o plano de desenvolvimento económico e social, o orçamento regional e as contas da região e participar na elaboração dos planos nacionais' [cf. alínea p) do n.º 1 do artigo 227.º].
– Neste âmbito, refira-se que já há muito que a doutrina constitucionalista (vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in 'Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª edição') reconhece que o poder executivo próprio dos Governos Regionais '( ... ) aponta expressamente para a existência de um Governo ( ... ) com atribuições de condução política e de órgão superior da administração regional ( ... e, quanto ao conteúdo deste poder '( ... ) sempre terá de haver um conjunto mais ou menos vasto de funções que, cabendo ao Governo da República quanto ao território continental, hão de pertencer aos governos regionais quanto às respetivas regiões ( ... )'.
– Quanto ao poder de superintendência, refere-se que '( ... ) a Constituição transferiu do Governo da República para os governos regionais o poder de superintendência sobre a generalidade da administração indireta do Estado de âmbito regional ( ... ) pelo que “( ... ) os poderes de superintendência passam a ser exercidos pelos governos regionais nos termos em que o são no que respeita à própria administração indireta regional' e que os governos regionais” ( ... ) no âmbito da sua esfera própria se substituem ao Governo da República' (vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in 'Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª edição').
– Assim, atento este enquadramento constitucional, o Estatuto Político- Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) procedeu ao desenvolvimento dos poderes acima elencados, designadamente, através do artigo 90.º do EPARAA, o qual estabelece a 'Competência executiva do Governo Regional', e que determina ser da competência do Governo Regional, no exercício das suas competências administrativas, exercer poder executivo próprio [cf. alínea a)], bem como dirigir os serviços e atividades da administração regional autónoma [cf. alinea b)],
– Ademais, o EPARAA dispõe de um capítulo próprio que regula a Administração Regional Autónoma, o qual se materializa através dos artigos 125.º ('Organização administrativa da Região'), 126.º ('Serviços regionais') e 127.º ('Função pública regional') e que dispõem que “a organização administrativa da Região deve refletir a realidade geográfica, económica, social e cultural do arquipélago, de forma a melhor servir a respetiva população e, simultaneamente, a incentivar a unidade dos açorianos” e ainda que “a administração regional autónoma visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dos princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé;
– A organização da administração regional autónoma obedece aos princípios da descentralização e da desconcentração de serviços, tem em consideração os condicionalismos de cada ilha e visa assegurar uma atividade administrativa rápida, eficaz e de qualidade; o Governo Regional, com vista a assegurar uma efetiva aproximação dos serviços às populações, promove a existência em cada ilha de serviços dos seus departamentos ou de uma delegação do Governo Regional. Sobre a função pública regional dispõe o EPARAA que “a administração regional autónoma tem quadros próprios que devem obedecer a critérios de economia de meios, de qualificação e de eficiência profissional; as bases e o regime geral do recrutamento para a função pública nos serviços regionais, da formação técnica, do regime de quadros e carreiras, do estatuto disciplinar e do regime de aposentação são os definidos por lei para a Administração Pública do Estado; É garantida a mobilidade entre os quadros da administração regional autónoma, administração local e administração do Estado, sem prejuízo dos direitos adquiridos, designadamente em matéria de antiguidade e carreira'.
– Face ao exposto, conclui-se que é ao Governo Regional que compete definir, aferir e controlar os respetivos recursos humanos da administração regional, no estrito cumprimento dos princípios e realidade insular descrita nos artigos acima transcritos.
– Por outro lado, importa também referir que nos preceitos aqui em causa (artigos 59.° e 68.°) se coloca em causa o princípio da autonomia orçamental das Regiões Autónomas, o qual tem reconhecimento constitucional e estatutário e consubstancia-se na existência de orçamentos próprios aprovados pelas respetivas Assembleias Legislativas, bem como na competência exclusiva das Regiões Autónomas para dispor das suas receitas e decidir das suas próprias despesas, conforme resulta expressamente do n.º 1 do artigo 232.º da CRP e na alínea c) do artigo 34.º do EPARAA.
– Em conclusão, são os governos regionais, enquanto órgãos superiores das respetivas administrações regionais, que têm a competência para aplicar e controlar as medidas de gestão e racionalização que resultem da lei no que respeitar aos respetivos recursos humanos.
– Contudo, tal entendimento não significa, antes pelo contrário, que as Regiões Autónomas se pretendem eximir ao cumprimento do princípio da solidariedade, bem como ao inerente contributo para a melhoria do quadro económico-financeiro do Pais, mas apenas reiterar que, face à dimensão política, legislativa, orçamental e patrimonial adjacente ao princípio da Autonomia Regional, incumbe às Regiões Autónomas e não ao Estado decidir o modo concreto de o conseguir, isto é, os termos exatos e a forma concreta de alcançar os objetivos em causa (diminuição da despesa pública, diminuição do défice, aumento da competitividade, etc.).
– Assim, os artigos 59.º e 68.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro – Orçamento do Estado para 2013, no que respeita às Regiões Autónomas, dado colocarem em causa poderes que a CRP reconhece às Regiões, violam os artigos 112.º, alíneas g), o) e p) do n.º 1 do artigo 227.º, artigo 228.º e n.º 1 do artigo 232.º, todos da CRP.
– Simultaneamente, tais artigos padecem do vício de ilegalidade, já que violam o EPARAA (lei de valor reforçado), designadamente, a alínea c) do artigo 34.º, as alíneas a), b) e h) do artigo 90.º, bem como os artigos 125.º, 126.º e 127.º do referido EPARAA.
– Quanto à questão das receitas do Serviço Nacional de Saúde, o teor do artigo, nomeadamente o disposto no n.º 2, é uma mudança radical e inaceitável de paradigma na relação entre o Serviço Nacional de Saúde e os Serviços Regionais de Saúde existentes nas Regiões Autónomas, uma vez que se prevê que no caso de um utente fiscalmente residente na Região Autónoma recorrer a prestações de serviços efetuadas por entidades do Serviço Nacional de Saúde passarão os eventuais encargos desse tratamento a ser da responsabilidade do Serviço Regional de Saúde respetivo.
– Ora, tal preceito, não é compaginável com os conceitos de 'estado unitário [ ... ] e princípio da subsidiariedade' (cfr. artigo 6.° da Constituição da República Portuguesa), como também colide frontalmente com os princípios da universalidade (cf. artigo 12.° da CRP) e igualdade (cfr. artigo 13.° da CRP), bem como com o direito à proteção da saúde, 'através de um serviço nacional de saúde universal e geral', previsto no artigo 64.° da CRP.
– O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 731/95, sublinhou que 'a universalidade confere a todos o direito de recorrer ao serviço nacional de saúde, não impedindo naturalmente a existência e o recurso aos serviços particulares de saúde. A generalidade traduz a necessidade de integração de todos os serviços e prestações de saúde. '
– O direito à proteção da saúde é conferido a todos, incluindo, em virtude do princípio geral da equiparação (artigo 15.º, n.º 1, da Constituição), aos estrangeiros e aos apátridas 'que se encontrem ou residam em Portugal.' ( ... ) E, por força do princípio da equiparação, e do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, deve igualmente ser salvaguardado o conteúdo mínimo de gratuitidade quando as condições económicas e sociais dos estrangeiros ou apátridas em situação irregular não lhes permitam suportar as despesas com a prestação de cuidados de saúde.
– A universalidade e a generalidade não significam, no entanto, que, na concretização da norma constitucional, o legislador, com a sua liberdade de conformação constitucionalmente garantida, não possa optar por soluções seletivas, desde que as opções assumidas não contrariem o princípio do caráter universal e geral do serviço nacional de saúde, cubram as necessidades básicas em matéria de proteção da saúde e não sejam discriminatórias. (Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2006, p. 654 e 655).
– Por outro lado, importa referir que no artigo 12.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores, sob a epígrafe 'Princípio da solidariedade nacional', dispõe-se o seguinte: 'Nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, a Região tem direito a ser compensada financeiramente pelos custos das desigualdades derivadas da insularidade, designadamente no respeitante a comunicações, transportes, educação, cultura, segurança social e saúde, incentivando a progressiva inserção da Região em espaços económicos mais amplos, de dimensão nacional e internacional. Constitui obrigação do Estado assegurar os encargos para garantia da efetiva universalidade das prestações sociais quando não for possível assegurá-las na Região, nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas.'
– Por fim, refira-se que a lei de Bases da Saúde e o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde determinam que o Serviço Nacional de Saúde é financiado pelo Orçamento do Estado, não existindo qualquer base legal que fundamente uma eventual responsabilidade do Serviço Regional de Saúde pelo pagamento de cuidados de saúde prestados pelo SNS a utentes com residência na RAA.
– Os cidadãos portugueses residentes na Região Autónoma dos Açores apenas são referenciados para o Serviço Nacional de Saúde nas situações em que os cuidados de saúde de que necessitam não podem ser prestados pelo Serviço Regional de Saúde.
– Funcionam, assim, subsidiariamente os serviços do SNS sedeados no Continente, ao qual os cidadãos portugueses residentes nos Açores recorrem enquanto utentes de pleno direito do SNS.
– Pretender excluir a responsabilidade do Estado pelos cuidados prestados os cidadãos portugueses residentes nos Açores, que necessitam de cuidados de saúde que apenas podem ser prestados nos serviços do SNS sedeados no Continente, redundaria na demissão do Estado da responsabilidade pela saúde de todos os cidadãos portugueses e consubstanciaria um tratamento discriminatório e desigual dos cidadãos portugueses residentes no território da Região Autónoma.
– Assim sendo, é totalmente inadmissível - por desrespeito grosseiro do preceituado quer na Constituição da República Portuguesa, quer no Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores - o teor do presente artigo no que concerne às Regiões Autónomas, já que a Constituição da República Portuguesa atribuiu o direito à proteção da saúde e consagra um serviço nacional de saúde universal e geral, no qual cabe ao Estado, e não às Regiões Autónomas, garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde e garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde.
– Nestes termos, o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 149.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro – Orçamento do Estado para 2013, consubstancia uma inconstitucionalidade material por violação do disposto nos artigos 6.º, 12.°, 13.° e 64.° da CRP, bem como uma ilegalidade, por violação do artigo 12.º do EPARAA.
– Relativamente às disposições transitórias em sede de IRS, o n.º 3 do artigo 188.º da lei analisada dispõe expressamente que “a receita da sobretaxa reverte integralmente para o Orçamento do Estado'.
– Acresce que esta receita destina-se, conforme explicado publicamente pelo Governo da República, a pagar o subsídio que foi reposto aos funcionários públicos.
– Ora, na Região Autónoma dos Açores, a reposição do referido subsídio aos trabalhadores da administração pública regional será efetuada a expensas do orçamento regional, pelo que estamos na presença de uma dupla penalização para as finanças regionais, uma vez que a Região terá que suportar os encargos inerentes à reposição de um subsídio e, simultaneamente, fica desprovida da receita para o efeito.
– Ademais, não obstante tão incompreensível e inadmissível contradição, a presente norma, conforme resultará infra exposto, é, ainda, atentatória do regime constitucional e legalmente vigente.
– A Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.° que as Regiões Autónomas têm o poder de 'dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efetiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afetá-las às suas despesas.'
– Desta forma, resulta claro que o preceito acima vertido atribui às Regiões Autónomas o poder de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, tendo em vista a autonomia financeira regional.
– A norma constitucional supra '( ... ) outorga às regiões autónomas uma autêntica autonomia financeira, permitindo-lhes afetar as receitas próprias às suas despesas – no fundo, trata-se da liberdade de conformação de um orçamento próprio -, ao mesmo tempo que esclarece serem receitas próprias regionais as receitas fiscais cobradas [ou geradas] no respetivo território' (LOBO XAVIER, 'As receitas regionais e as receitas das outras parcelas do território nacional: concretização ou violação do princípio da igualdade?', Direito e Justiça, Vol. X, Tomo I, 1996, p. 177).
– Ademais, cumpre salientar que no entendimento dos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira 'As regiões autónomas têm direito a dispor de todas as receitas fiscais cobradas no respetivo arquipélago (n. o 1/j, 2.ª parte), o que abrange todos os impostos independentemente da sua natureza específica (impostos diretos ou indiretos, ordinários ou extraordinários, etc.)' (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 675).
– Por outro lado, o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (lei de valor reforçado), na redação da Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, estabelece no artigo 19.º, n.º 1 que 'A Região dispõe, para as suas despesas, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com o princípio da solidariedade nacional, bem como de outras receitas que lhes sejam atribuídas.'
– Acresce que o n.º 2, alínea b), do mesmo artigo refere que 'Constituem, em especial, receitas da Região: Todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no seu território, incluindo o imposto do selo, os direitos aduaneiros e demais imposições cobradas pela alfândega, nomeadamente impostos e diferenciais de preços sobre a gasolina e outros derivados do petróleo;'
– A Lei de Finanças das Regiões Autónomas - Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro - também 'lei com valor reforçado', dispõe no artigo 15.º, n.º 1 que 'De harmonia com o disposto na Constituição e nos respetivos Estatutos Político-Administrativos, as Regiões Autónomas têm direito à entrega pelo Governo da República das receitas fiscais relativas aos impostos que devam pertencer-lhes, nos termos dos artigos seguintes, bem como a outras receitas que lhes sejam atribuídas por lei.'
– Ainda em sede da lei de Finanças das Regiões Autónomas, cumpre mencionar o disposto no artigo 19.º alínea a), que estabelece que 'Constitui receita de cada Região Autónoma o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares: Devido por pessoas singulares consideradas fiscal mente residentes em cada Região, independentemente do local em que exerçam a respetiva atividade;'
– Refira-se, por último, o artigo 25.º da lei das Finanças das Regiões Autónomas, o qual tem como epígrafe 'Impostos extraordinários', e que estatui que 'Os impostos extraordinários liquidados como adicionais ou sobre matéria coletável ou a coleta de outros impostos constituem receita da circunscrição a que tenham sido afetados os impostos principais sobre que incidiram.'
– Assim, atendendo a que o ordenamento jurídico vigente consagra, expressamente, a atribuição às Regiões Autónomas das receitas de IRS nelas geradas, não se compreende, nem se pode aceitar que o Orçamento do Estado ouse dispor de receitas da titularidade exclusiva das Regiões Autónomas.
– Nestes termos, reiteram-se todos os argumentos aduzidos pela Exma. Senhora Conselheira Catarina Sarmento e Castro, em Declaração de Voto anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 412/2012, de 25 de setembro, onde manifestou a favor da declaração de inconstitucionalidade de norma de teor idêntico à presente.
– Deste modo, conclui-se que tal norma (n.º 3 do artigo 188.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro – Orçamento do Estado para 2013) consubstancia uma inconstitucionalidade material por violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.° da CRP, bem como uma ilegalidade, por violação do n.º 1 e alínea b) do n.º 2 do artigo 19.º do EPARAA.
– Finalmente, quanto à norma interpretativa final, dispõe-se expressamente que 'a participação variável de 5% no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma, devendo o Estado proceder diretamente à sua entrega ás autarquias locais.' Tal disposição, conforme resultará infra exposto, é atentatória do regime constitucional e legalmente vigente.
– A Constituição da República Portuguesa estabelece na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.° que as Regiões Autónomas têm o poder de 'dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efetiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afetá-las às suas despesas.'
– Concomitantemente, o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro) estabelece no artigo 19.º, n.º 1, que 'A Região dispõe, para as suas despesas, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei de Finanças das Regiões Autónomas, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com o princípio da solidariedade nacional, bem como de outras receitas que lhes sejam atribuídas.'
– Por outro lado, a lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro – dispõe, no artigo 15.º n.º 1, que 'De harmonia com o disposto na Constituição e nos respetivos Estatutos Político-Administrativos, as Regiões Autónomas têm direito à entrega pelo Governo da República das receitas fiscais relativas aos impostos que devam pertencer-lhes, nos termos dos artigos seguintes, bem como a outras receitas que lhes sejam atribuídas por lei.'
– Acrescentando ainda a Lei de Finanças das Regiões Autónomas, respetivamente, no artigo 19.º alínea a), que 'Constitui receita de cada Região Autónoma o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares: Devido por pessoas singulares consideradas fiscalmente residentes em cada Região, independentemente do local em que exerçam a respetiva atividade.'
– Por fim, cumpre referir que o n.º 3 do artigo 229.º da CRP dispõe que 'as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas através da lei prevista na alínea t) do artigo 164.º” [i.e. Regime de finanças das regiões autónomas]
– Acresce que o poder de disposição, 'nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas', das receitas fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas representa uma garantia mínima de autonomia financeira das regiões autónomas (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 499/2008) uma vez que tem o sentido de estabelecer aquilo que, em princípio, deverá ser o mínimo da contribuição do Estado (a «República») para as finanças regionais: os residentes das Ilhas não contribuem para as despesas gerais do Estado; os impostos estaduais por si pagos revertem para a respetiva região autónoma (nesse sentido, v. ANTÓNIO LOBO XAVIER, 'As receitas regionais e as receitas das outras parcelas do território nacional: concretização ou violação do princípio da igualdade?' in Direito e Justiça, vol, X, tomo 1,1996, p. 173 e seguintes, p. 177).
– Relativamente à Região Autónoma dos Açores, resulta claramente dos preceitos do respetivo Estatuto Político-Administrativo e da Lei das Finanças das Regiões Autónomas acima transcritos que a totalidade das receitas fiscais cobradas ou geradas nesta Região, incluindo as receitas de IRS, é deferida a essa mesma Região Autónoma.
– Assim, atento este quadro normativo, conclui-se que a definição do regime das finanças locais contida na norma aqui em causa do Orçamento de Estado para 2013 interfere no poder de disposição das receitas fiscais cobradas nas regiões autónomas, pelo que viola o artigo 227.º, n.º 1, alínea j) e n.º 3 do artigo 229.º da Constituição e artigos 15.º e 19.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas - Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro.
– Nestes termos e pelo exposto, requer-se a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade dos n.ºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º; artigo 68.º; n.ºs 2 e 3, do artigo 149.º; n.º 3, do artigo 188.º e do artigo 262.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013, por violação do disposto nos artigos 6.º; 12.º; 13.º; 64.º; 112.º; alíneas g), j), o) e p) do n.º 1 do artigo 227.º; 228.º; n.º 3 do artigo 229º e n.º 1 do artigo 232.º da Constituição da República Portuguesa.
– Subsidiariamente, na eventualidade do pedido de declaração de inconstitucionalidade não merecer acolhimento, o que apenas por mera hipótese académica se admite, requer-se a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade dos normativos acima referidos, por violação do disposto no artigo 12.°; no n.º 1 e alínea b) do n.º 2 do artigo 19.º; na alínea c) do artigo 34.°; nas alíneas a), b) e h) do artigo 90.°; no artigo 125.º; no artigo 126.º e no artigo 127.º, todos do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
3. Após discussão em Plenário do memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II – Fundamentação
A) Questão prévia: legitimidade processual dos requerentes
4. No presente processo, um Grupo de Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores vem requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e, subsidiariamente, da ilegalidade de um conjunto de normas da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a qual aprova o Orçamento do Estado para 2013.
Antes de avançar, cumpre averiguar se os requerentes têm legitimidade processual para requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e, subsidiariamente, da ilegalidade em relação a todas as normas.
O pedido foi formulado ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, a qual atribui a um décimo dos Deputados à Assembleia Legislativa das regiões autónomas dos Açores e da Madeira legitimidade para requerer a fiscalização da constitucionalidade de normas com fundamento na violação dos direitos das regiões autónomas, bem como a fiscalização da legalidade de normas com fundamento na violação dos respetivos Estatutos Político-Administrativos.
Ao contrário do que sucede com o poder de iniciativa atribuído aos demais órgãos enumerados no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, aquele que é conferido às entidades mencionadas na respetiva alínea g), não é geral, mas limitado, resultando essa limitação dos específicos requisitos a que se encontra sujeita a respetiva causa de pedir.
O poder de requerer a fiscalização abstrata da constitucionalidade de normas conferido a um décimo dos deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira pressupõe, na verdade, que esteja em causa uma eventual violação de direitos das regiões autónomas consagrados na Constituição, isto é, dos “direitos constitucionalmente reconhecidos às regiões face à República' (cf. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 2010, pg. 967).
Deste modo, 'não basta invocar simplesmente a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, uma vez que o poder de impugnação está constitucionalmente circunscrito e pressupõe uma legitimidade qualificada pela violação de direitos da região”, ou seja, “aqueles que, no próprio texto constitucional, configuram e concretizam o princípio da autonomia regional' (cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, pg. 807).
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de afirmar diversas vezes que, sendo o pedido de declaração de inconstitucionalidade, o poder de iniciativa conferido pela alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição aos Deputados à Assembleia da Região Autónoma se encontra circunscrito, para efeitos de legitimidade processual ativa, à violação dos “direitos que conformarem constitucionalmente de modo direto a autonomia político-administrativa das regiões” (cf. Acórdão n.º 634/2006. Vide igualmente Acórdãos n.ºs 403/89, 198/2000, 615/2003, 75/2004, 491/2004, 239/2005 e 411/2012).
Aliás, na sequência da perspetiva expressa pela Comissão Constitucional, no Parecer n.º 25/80 – de acordo com o qual o poder das assembleias legislativas das regiões autónomas “é um poder circunscrito na natureza e no objeto” que se destina, enquanto “poder instrumental de garantia dos poderes substantivos em que se traduz o regime político-administrativo dos Açores e da Madeira”, à “defesa das correspondentes normas constitucionais”, e apenas pode por essa razão incidir “sobre normas legislativas ou outras que com elas, porventura, colidam” (Pareceres da Comissão Constitucional, 13.º vol., pg. 143) –, este Tribunal vem entendendo que “o exercício pelos órgãos regionais da faculdade de impugnação da inconstitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania pressupõe uma legitimidade qualificada pela violação de direitos das regiões”: na medida em que o “critério de determinação do âmbito do pedido” é fornecido precisamente pela “circunstância de ser acionado, por esta via, um poder de garantia dos poderes das regiões”, apenas podem ser “consideradas as normas que […] violem direitos constitucionalmente conferidos às regiões [...]' (cf. Acórdão n.º 403/89).
Daí que, 'constituindo a norma constitucional uma atribuição de legitimidade para suscitar os mecanismos da fiscalização abstrata pelos deputados regionais, em função da defesa dos direitos constitucionais das regiões”, se não verifique “tal legitimidade quando as normas questionadas não interfiram diretamente com tal razão defensiva' (Acórdão n.º 198/2000).
Por conseguinte, só 'com fundamento em normas constitucionais que definam poderes jurídicos conferidos às regiões autónomas enquanto pessoas coletivas territoriais, em concretização do princípio da autonomia político-administrativa regional”, poderão “as entidades mencionadas no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição, requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas' (cf. Acórdão n.º 615/03).
5. No caso em apreço, os requerentes invocam, primeiramente, a inconstitucionalidade dos artigos 59.º, n.ºs 1, 2, 8 e 9 e 68.º, n.ºs 2 e 3, da mencionada Lei, por violação dos artigos 112.º, 227.º, als. g), o), e p), 228.º e 232.º, n.º 1, todos da CRP bem como a inconstitucionalidade do artigo 188.º, n.º 3, da mesma Lei, por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP e a inconstitucionalidade do artigo 262.º da referida Lei, por violação dos artigos 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3, ambos da CRP.
Incluído no Título dedicado à consagração dos princípios gerais em matéria de Organização do Poder Político, o artigo 112.º da Constituição, cuja epígrafe é atos normativos, enuncia, designadamente, os atos legislativos (n.º 1), estabelece a relação hierárquica entre eles (n.º 2), define leis de valor reforçado (n.º 3) e decretos legislativos regionais (n.º 4).
Em qualquer dos enunciados normativos que contempla, o artigo 112.º da Constituição é um preceito relativo aos atos normativos e não aos poderes ou direitos autonómicos das regiões autónomas.
Mesmo na parte em que se refere aos decretos legislativos regionais, o artigo 112.º da Constituição continua a ser uma norma geral de especificação dos atos normativos e não uma norma que defina qualquer parcela dos poderes jurídicos constitucionalmente conferidos às regiões autónomas, enquanto pessoas coletivas territoriais, em concretização do princípio da autonomia político-administrativa regional.
A sua alegada violação não integra, por isso, a causa de pedir a que se encontra constitucionalmente subordinada a legitimidade processual para a fiscalização abstrata dos deputados regionais.
6. Pelo contrário, os artigos 227.º, als. g), j), o), e p), 228.º, 229.º, n.º 3, e 232.º, n.º 1, da CRP inscrevem-se sistematicamente no Título que, no âmbito da Parte relativa à Organização do Poder Político, é dedicado às Regiões Autónomas. “O artigo 227.º, n.º 1, (…) enuncia um conjunto de poderes configurados em sede de contencioso constitucional como direitos das Regiões Autónomas” (cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, ob. cit., pg. 305). O artigo 228.º refere-se à autonomia legislativa das Regiões Autónomas, o artigo 229.º, n.º 3, diz respeito às relações financeiras entre a República e as Regiões Autónomas e o artigo 232.º, n.º 1, determina a competência legislativa exclusiva das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas. Ou seja, estes preceitos ou definem os poderes legislativos constitucionalmente conferidos às Regiões Autónomas, enquanto pessoas coletivas territoriais, ou remetem para a Lei a regulação das relações financeiras entre a República e as Regiões Autónomas, o que não pode deixar de se configurar como uma concretização do princípio da autonomia político-administrativa regional. Donde decorre que qualquer deles se afigura apto a consubstanciar a causa de pedir em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade por parte de um grupo de deputados regionais.
7. Já o mesmo não se verifica relativamente aos artigos 6.º, 12.º, 13.º e 64.º, todos da CRP invocados para fundamentar a inconstitucionalidade material do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da mesma Lei. Na verdade, o problema da eventual violação dos princípios da universalidade e da igualdade assim como a questão da eventual restrição do direito à proteção da saúde através da inscrição de limitações no acesso ao Serviço Nacional de Saúde não devem ser encarados como uma questão de autonomia regional, uma vez que não definem qualquer parcela dos poderes jurídicos constitucionalmente conferidos às regiões autónomas. Estes preceitos encontram-se inseridos na Parte I relativa aos direitos e deveres fundamentais no Título I que é dedicado aos princípios gerais (artigos 12.º e 13.º da CRP) e no Título III relativo aos direitos económicos, sociais e culturais, mais precisamente, no capítulo II, o qual enuncia os direitos e deveres sociais, pelo não podem constituir a causa de pedir de um requerimento de deputados regionais em sede de fiscalização abstrata da constitucionalidade.
Assim, não detendo os requerentes legitimidade processual para acionar a fiscalização da constitucionalidade no que toca ao artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da mencionada Lei, este Tribunal limitar-se-á a apreciar a sua eventual ilegalidade (cf. infra n.ºs 8 e 21).
8. No que à fiscalização da legalidade diz respeito, cumpre reafirmar que, como resulta claramente do artigo 281º, nº 2, alínea g) da CRP, os Deputados à Assembleia Legislativa de uma região autónoma, apenas podem suscitá-la quando “o pedido de declaração de ilegalidade se fundar em violação do respetivo estatuto”. Nestes termos, carecem os requerentes de legitimidade para um pedido de fiscalização da legalidade de normas baseado em desconformidade com a Lei de Finanças das Regiões Autónomas, bem como para o pedido de fiscalização da legalidade dos artigos 188.º, n.º 3, e 262.º da referida lei, com fundamento na violação do artigo 19.º, n.º 1, do EPARAA, o qual estabelece que “A Região dispõe, para as suas despesas, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com o princípio da solidariedade nacional, bem como de outras receitas que lhe sejam atribuídas”. Ora, se compararmos este preceito com o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, verificamos que se trata de reprodução quase literal. Ora, nos casos em que a norma estatutária alegadamente violada coincide com a norma constitucional, o Tribunal Constitucional tem entendido que o vício de inconstitucionalidade consome o de ilegalidade (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 499/08). Não se descortinando razões para alterar este juízo também não se vai conhecer da ilegalidade dos artigos 188.º, n.º 3, e 262.º da referida lei, por violação do artigo 19.º, n.º 1, do EPARAA.
9. Do exposto resulta que o Tribunal conhecerá, em primeiro lugar, da inconstitucionalidade das normas contidas nos nºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º, e das normas do artigo 68.º da Lei n.º 66-B/2012, por violação dos artigos 227.º, alíneas g), o) e p), e 228.º e 232.º, n.º 1, da CRP e da ilegalidade daqueles mesmos preceitos, com fundamento na violação da alínea c) do artigo 34.º, das alíneas a), b) e h) do artigo 90.º, bem como dos artigos 125.º, 126.º e 127.º do EPARAA. Em seguida, apreciar-se-á o pedido dos requerentes relativo à declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 149.º da Lei n.º 66-B/2012, por violação do artigo 12.º do EPARAA. Posteriormente, avaliar-se-á o pedido de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei n.º 66-B/2012, por violação do artigo 227.º, alínea j), da CRP, bem como o pedido de ilegalidade por violação do artigo 19.º, n.º 2, alínea b) do EPARAA. Por último, aferir-se-á da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 262.º Lei n.º 66-B/2012, por violação dos artigos 227.º, n.º 1, alínea j) e n.º 3 do artigo 229.º da Constituição bem como da ilegalidade da mesma norma, com fundamento na violação do artigo 12.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 19.º do EPARAA.
B) Questões de fundo
10. Os requerentes pedem, em primeiro lugar, a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade das normas contidas nos nºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º, e das normas do artigo 68.º da Lei n.º 66-B/2012.
As disposições legais em causa têm a seguinte redação:
“Artigo 59º
Contratos a termo resolutivo
1 – Até 31 de dezembro de 2013, os serviços e organismos das administrações, direta e indireta do Estado, regionais e autárquicas reduzem, no mínimo, em 50% o número de trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo e ou com nomeação transitória existente em 31 de dezembro de 2012, com exclusão dos que sejam cofinanciados por fundos europeus.
2 – Durante o ano de 2013, os serviços e organismos a que se refere o número anterior não podem proceder à renovação de contratos de trabalho em funções públicas a termo resolutivo e de nomeações transitórias, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
(...)
8 – No caso das administrações regionais, a violação do presente artigo determina ainda a redução nas transferências do Orçamento do estado para a região autónoma no montante equivalente ao que resultaria, em termos de poupança, com a efetiva redução de pessoal e ou no montante idêntico ao despendido com as renovações de contratos ou de nomeações em causa.
9 – No caso dos serviços e organismos das administrações regionais e autárquicas, a autorização a que se refere o n.º 3 compete aos correspondentes órgãos de governos próprios.”
“Artigo 68.º
Controlo do recrutamento de trabalhadores nas administrações regionais
1 – O disposto no artigo 9.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, alterada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, aplica-se, como medida de estabilidade orçamental, nos termos e para os eleitos do disposto nos artigos 7.º e 8.º da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis Orgânicas n.ºs 1/2010, de 29 de março, e 2/2010, de 16 de junho, imediata e diretamente aos órgãos e serviços das administrações regionais dos Açores e da Madeira.
2 – Os governos regionais zelam pela aplicação dos princípios e procedimentos mencionados nos números seguintes, ao abrigo de memorandos de entendimento celebrados e ou a celebrar com o Governo da República, nos quais se quantifiquem os objetivos a alcançar para garantir a estabilidade orçamental e o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado Português perante outros países e organizações.
3 – Para efeitos da emissão da autorização prevista no n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, alterada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, os dirigentes máximos dos órgãos e serviços das administrações regionais enviam ao membro do Governo Regional competente para o efeito os elementos comprovativos da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
a) Existência de relevante interesse público no recrutamento, ponderada a evolução global e a eventual carência dos recursos humanos no setor de atividade a que se destina o recrutamento;
b) Impossibilidade de ocupação dos postos de trabalho em causa nos termos previstos nos n.ºs 1 a 5 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64- B/2011, de 30 de dezembro, e pela presente lei, ou por recurso a pessoal colocado em situação de mobilidade especial ou a outros instrumentos de mobilidade;
c) Demonstração de que os encargos com os recrutamentos em causa estão previstos nos orçamentos dos serviços a que respeitam;
d) Cumprimento, pontual e integral, dos deveres de informação previstos na Lei n.º 57/2011, de 28 de novembro;
e) Demonstração do cumprimento das medidas de redução mínima, de 2% de pessoal, tendo em vista o cumprimento do PAEF considerando o número de trabalhadores do órgão ou serviço em causa no termo do ano anterior.
4 – Os governos regionais apresentam ao membro do Governo da República responsável pela área das finanças planos semestrais para a redução a que se refere a alínea e) do número anterior, com a indicação dos instrumentos para assegurar a respetiva monitorização.
5 – Os governos regionais remetem trimestralmente ao membro do Governo da República responsável pela área das finanças informação sobre o número e despesa com recrutamento de trabalhadores, a qualquer título, bem como a identificação das autorizações de recrutamento concedidas ao abrigo do disposto no n.º 3, sem prejuízo do disposto na alínea d) do mesmo número.
6 – Em caso de incumprimento do disposto nos n.ºs 4 e 5, é aplicável o disposto n.ºs 2 a 4 do artigo 16.º da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis Orgânicas n.ºs 1/2010, de 29 de março, e 2/2010, de 16 de junho.
7 – No caso de incumprimento dos objetivos de redução a que se refere a alínea e) do n.º 3 e ou dos planos a que se refere o n.º 4, pode haver lugar a uma redução nas transferências do Orçamento do Estado para as regiões autónomas no montante equivalente ao que resultaria, em termos de poupança, com a efetiva redução de pessoal no período em causa.”
Os requerentes fundamentam o seu pedido de inconstitucionalidade na violação do artigo 227.º, alíneas g), o), e p), da CRP. Ou seja, na ótica dos requerentes, as normas acabadas de referir põem em causa a autonomia político-administrativa da Região, bem como a repartição de competência em matéria administrativa entre os órgãos de governo regionais e o Governo da República.
Importa, pois, determinar se a Constituição permite que a definição, em relação aos serviços e organismos da administração regional, de metas quantitativas de redução de pessoal e limitações às novas contratações, nos termos acima previstos, possa ser efetuada pelos órgãos de soberania ou se, pelo contrário, reserva essa competência para as Regiões, através dos seus órgãos de governo próprios.
11. Note-se, antes de mais, que, à luz do artigo 227.º, alíneas g), da CRP, a Constituição garante a autonomia administrativa das regiões autónomas, sendo atribuído às regiões autónomas o exercício de um poder executivo próprio. Nos termos do artigo 227.º, n.º 1, alínea o), da CRP, as regiões autónomas dispõem do poder de “superintender nos serviços (…) que exerçam a sua actividade exclusiva ou predominantemente na região, e noutros casos em que o interesse regional o justifique” e, de acordo com a alínea p) do mesmo preceito constitucional, as regiões detêm igualmente o poder de “aprovar … o orçamento regional”.
Recorde-se que as normas em causa estabelecem metas quantitativas de redução do número de trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo e ou com nomeação transitória e proíbe a renovação de contratos de trabalho em funções públicas a termo resolutivo e de nomeações transitórias. Além disso, impõem condicionamentos que visam o controlo do recrutamento de trabalhadores nas administrações regionais, nomeadamente a proibição, salvo situações excecionais, de abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente constituída (artigo 9.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho). Quando a excecionalidade da situação e o interesse público regional tornem indispensável a contratação, os órgãos competentes das administrações regionais devem comprovar a existência de relevante interesse público no recrutamento, ponderada a evolução global e a eventual carência dos recursos humanos no setor de atividade a que se destina o recrutamento e a impossibilidade de ocupação dos postos de trabalho em causa por recurso a pessoal colocado em situação de mobilidade especial ou a outros instrumentos de mobilidade; demonstrar que os encargos com os recrutamentos em causa estão previstos nos orçamentos dos serviços a que respeitam e que está assegurado o cumprimento dos deveres de informação e das medidas de redução mínima, de 2% de pessoal. Em caso de incumprimento destes requisitos, poderá, entre outras sanções, haver lugar a uma redução nas transferências do Orçamento do Estado para as regiões autónomas no montante equivalente ao que resultaria, em termos de poupança, com a efetiva redução de pessoal no período em causa. Tudo isto é feito, nos termos da lei, tendo em vista os princípios da solidariedade nacional e da coordenação, previstos nos artigos 7.º e 8.º da Lei Orgânica n.º 1/2007 (Lei das Finanças das regiões autónomas).
12. O problema de constitucionalidade que aqui está em causa é o de saber se estas normas violarão, ou não, a autonomia administrativa regional, traduzida, neste caso, na liberdade de definição dos quadros de pessoal tendo em conta as necessidades específicas da administração regional e na liberdade de contratação, bem como a autonomia orçamental, cujo objetivo é garantir que a organização administrativa das regiões reflita a sua realidade geográfica, económica, social e cultural, de forma a melhor servir a respetiva população e a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Não definindo a Constituição quais as matérias que se incluem no poder executivo próprio das regiões, tem cabido à doutrina e à jurisprudência delinear os seus contornos.
Com efeito, a Constituição não se conforma com um modelo de administração único, isto é, a Constituição não admite um monopólio do poder administrativo nas regiões autónomas, seja ele do Estado ou das Regiões. A Constituição prevê, todavia, que o Estado exerça competências administrativas nas regiões autónomas, o que decorre do princípio do Estado unitário (artigo 6.º, n.º 1), do facto de a autonomia político-administrativa não poder afetar a integridade da soberania do Estado (artigo 225.º, n.º 3) e de o Governo ser o órgão de política geral do País e o órgão superior da Administração Pública (artigo 182.º), podendo delegar competências no Governo Regional (artigo 229.º, n.º 4). Além disso, existe uma reserva de competência administrativa estadual nos domínios em que estejam em causa poderes inerentes ao Estado soberano.
Mas a Constituição também não aceita o esvaziamento da competência administrativa regional (cfr. Rui Medeiros, “Âmbito e Limites da Autonomia Administrativa Regional”, in A Autonomia no Plano Jurídico – I Centenário da Autonomia dos Açores, Edição Jornal de Cultura, 1995), estando o poder executivo próprio associado, em certas matérias, “à existência de uma reserva de competência administrativa regional”. Em concreto, “a reserva de execução regional compreende a aplicação dos decretos legislativos regionais”, não se encontrando, todavia, balizada pelo âmbito da autonomia legislativa regional. Ao invés, pode igualmente abarcar a competência para a execução de legislação da República (cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, ob. cit., pgs. 314 e 315).
Seja qual for o recorte concreto que se aceite para a autonomia administrativa das regiões autónomas e a consequente margem de manobra admissível para interferências por parte dos órgãos de soberania, sempre há de ter que garantir-se a existência de um conteúdo mínimo de autonomia administrativa, correspondente a um verdadeiro autogoverno de cada região.
13. Trata-se, portanto, no caso presente, de indagar se uma intervenção legislativa, como a que se analisa, colide ou não com esse núcleo mínimo de autonomia administrativa das regiões autónomas, garantido pela Constituição.
Para levar a cabo esta avaliação, deve ter-se em mente que o conjunto das normas impugnadas se inscreve no âmbito da concretização de uma orientação estratégica comprometida com o prosseguimento do esforço de consolidação orçamental previsto no Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) acordado entre o governo português e o FMI, a Comissão Europeia e o BCE, que visa a redução do défice orçamental. Este esforço de consolidação orçamental concretiza-se, pelo lado da despesa, através da adoção de medidas que totalizam aproximadamente 2.700 milhões de euro (p. 135 do Relatório sobre o OE 2013), representando uma diminuição estimada de 0,6% do PIB face ao exercício anterior (Quadro II.3.1, p.47), entre as quais se incluem, entre outras, a manutenção do congelamento nominal de remunerações para os trabalhadores das administrações públicas e do setor empresarial do Estado, a manutenção das reduções entre 3,5% e 10% para salários superiores a 1500 euros/mês (artigo 26.º da Lei n.º 66-B/2012), a proibição, como regra geral, de quaisquer valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões (artigo 35.º da Lei n.º 66-B/2012). É, pois, neste contexto que devem entender-se as exigências colocadas pelas normas agora analisadas, nomeadamente as medidas de redução anual de efetivos em 2% e a redução do número de contratos de trabalho a termo resolutivo. A implementação destas soluções deve abranger todos os níveis de administração do Estado, incluindo as regiões autónomas, no cumprimento do princípio do Estado unitário e do princípio da solidariedade, sendo natural e exigível, no quadro jurídico-constitucional que estas sejam chamadas a dar o seu contributo para a melhoria do quadro económico-financeiro do País.
14. No fundo, o que é necessário determinar, face à dimensão política, legislativa, orçamental e patrimonial adjacente ao princípio da autonomia regional, é se o legislador nacional pode fixar, como fez nas normas questionadas, os termos exatos e a forma concreta de alcançar os objetivos em causa, a saber, diminuição da despesa e do défice orçamental, ou se apenas poderá determinar limites gerais de despesa pública, cabendo a definição das concretas medidas de poupança, em exclusivo, à administração regional. Ora, tendo em conta a indefinição constitucional da extensão da reserva do poder executivo regional, só poderia afirmar-se estarmos perante normas inconstitucionais, caso não se salvaguardasse um núcleo mínimo, essencial, da autonomia administrativa. Todavia, na presente situação, não parece lícito concluir-se que as normas questionadas constituam uma interferência de tal modo importante na esfera de autonomia administrativa regional, de forma a inviabilizá-la. De facto, resta ainda boa margem de manobra aos órgãos regionais, de determinação das situações concretas em que a redução de funcionários e as restantes medidas de consolidação orçamental deverão ser aplicadas, pelo que as normas em apreço não se afiguram contrárias às alíneas g), o) e p) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP.
15. Alegam ainda os requerentes a violação dos artigos 228.º e 232.º, n.º 1, que respeitam à competência legislativa das regiões autónomas. Contudo, o pedido não apresenta argumentos que sustentem a alegada contradição entre as normas em análise e os mencionados parâmetros constitucionais. Ora, não é, de facto, a competência legislativa das regiões que aqui poderia ser colocada em causa, mas sim a sua competência executiva e administrativa, já que são estes os poderes cuja atuação se revela condicionada pelas normas questionadas. As normas constitucionais acima citadas revelam-se, pois, desadequadas para se incluírem no parâmetro de fiscalização a ter em conta na presente análise.
16. Afastada a questão de constitucionalidade, resta, porém, o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral feito pelos requerentes, com fundamento na violação da alínea c) do artigo 34.º, das alíneas a), b) e h) do artigo 90.º, bem como dos artigos 125.º, 126.º e 127.º do referido EPARAA.
É, desde já, de afastar a hipótese de violação do artigo 34.º, que respeita à competência política da Assembleia Legislativa Regional, já que, nos termos acima avançados, não se vê de que maneira possam as normas em análise ser lesivas dessa competência, nem mesmo no que se refere à aprovação do plano de desenvolvimento económico-social e do orçamento regional.
A mesma conclusão vale para as alíneas a), b) e h) do artigo 90.º, que se referem à competência executiva do governo regional, designadamente, no que se reporta ao exercício de poder executivo próprio, à direção dos serviços e atividades da administração regional autónoma e ao poder de superintendência dos serviços, institutos ou empresas públicas que exerçam a sua atividade predominantemente na região. De facto, as metas quantitativas de redução de pessoal e as restantes condições impostas pelo legislador não impedem, a priori, que os órgãos regionais, no exercício da sua autonomia quer administrativa, quer legislativa, as adaptem às concretas condições económico-sociais, financeiras e politicas da respetiva região. O legislador nacional define uma meta, deixando aparentemente margem de conformação suficiente aos poderes regionais. As normas questionadas tornam, aliás, indispensável o exercício das competências de direção da administração regional autónoma e de superintendência, na medida em que só através desse exercício será possível levar a cabo as soluções de consolidação orçamental propostas pelo Governo nacional.
17. Resta, pois, confrontar o regime impugnado com o disposto nos artigos 125.º, 126.º e 127.º do EPARAA, que se referem à administração regional autónoma, estatuindo o primeiro que “a organização administrativa da Região deve refletir a realidade geográfica, económica, social e cultural do arquipélago, de forma a melhor servir a respetiva população e, simultaneamente, a incentivar a unidade dos açorianos”; seguem-se disposições normativas sobre os serviços regionais e a função pública regional, que preveem, entre outras exigências, que “a organização da administração regional autónoma obedece aos princípios da descentralização e da desconcentração de serviços, tem em consideração os condicionalismos de cada ilha e visa assegurar uma atividade administrativa rápida, eficaz e de qualidade” (artigo 126.º, n.º 2, do EPARAA), “a existência em cada ilha de serviços dos seus departamentos ou de uma delegação do Governo Regional” (artigo 126.º, n.º 3) e a existência de quadros próprios da administração regional autónoma (artigo 127.º).
Do bloco normativo indicado como parâmetro, é de excluir o disposto no artigo 127.º, pois as restrições impostas pelas normas questionadas não põem em causa a existência de quadros próprios da administração regional autónoma, nem a vigência dos critérios de recrutamento e gestão fixados nesse artigo.
A conformidade das normas em análise com o regime constante do artigo 125.º e, sobretudo, do artigo 126.º já se revela mais problemática, mas, não obstante as dúvidas que legitimamente a questão suscita, não se afigura evidente que tais normas tenham transposto o limiar da legalidade estatutária. É indiscutível que a imposição de uma redução mínima de 50% dos trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo e ou com nomeação transitória e a proibição de renovação desse tipo de contratos de trabalho em funções públicas, sob pena de redução das transferências orçamentais para a Região do valor potencialmente poupado com aquela redução de pessoal, são passíveis de colocar dificuldades ao cumprimento das diretrizes que devem reger a organização dos serviços regionais, mormente as de “ter em consideração os condicionalismos de cada ilha”, de assegurar “uma atividade administrativa rápida, eficaz e de qualidade”, bem como, ainda que em menor grau, de garantir “a existência em cada ilha de serviços ou de uma delegação do Governo Regional”. Todavia, não pode asseverar-se que o regime agora imposto represente uma constrição de tal ordem que impossibilite a administração regional de, com os recursos humanos que permanecem ao seu dispor, e com as reestruturações adaptativas que autonomamente entenda serem justificadas, satisfazer, em medida bastante, as exigências estatutárias.
Idênticas considerações se podem tecer quanto à imposição de uma redução de 2% do número de trabalhadores de cada órgão ou serviço, sob pena de uma redução nas transferências do Orçamento do Estado para as regiões autónomas no montante equivalente ao que resultaria, em termos de poupança, com a efetiva redução de pessoal no período em causa. Efetivamente, tendo em conta as características e necessidades específicas a cumprir pela administração pública regional, bem como as imposições estatutárias da presença de representação – através de delegações ou departamentos – do governo regional nas várias ilhas do arquipélago dos Açores, as metas fixadas pelo legislador nacional, em termos quantitativos e absolutos, não podem deixar de configurar um condicionamento significativo do exercício da competência executiva e administrativa dos órgãos regionais. Se se atentar nas especificidades e dificuldades levantadas pela dimensão, dispersão e descontinuidade do território da Região, não parece difícil admitir que, em várias situações, a compaginação das exigências colocadas pelo Estatuto com as reduções e proibições de contratação impostas se pode revelar uma tarefa espinhosa.
Não obstante, e ainda que limitadas, são possíveis soluções efetivas com vista ao cumprimento das metas impostas pelas normas em análise, não se atingindo, assim, o núcleo fundamental da autonomia administrativa. Os princípios retores da organização administrativa da Região admitem, dados os padrões utilizados, escalas gradativas de observância. Pode sustentar-se que as soluções impugnadas dificilmente deixarão de ter alguma repercussão negativa no grau de satisfação desses princípios, mas isso não impedirá que a organização administrativa continue a ainda a refletir a realidade geográfica, económica, social e cultural do arquipélago, nos termos impostos pelo EPARAA.
Nestes termos, o Tribunal não declara a ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.ºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º; artigo 68.º da Lei n.º 66-B/2012, por violação dos artigos 125.º, 126.º e 127.º do EPARAA.
18. Em segundo lugar, e atendendo à delimitação do objeto do recurso anteriormente efetuada (cf. supra n.ºs 4 a 8), apreciar-se-á somente o pedido dos requerentes relativo à declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 149.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro – Orçamento do Estado para 2013, por violação do artigo 12.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores, pois, como atrás se viu, os requerentes não têm legitimidade processual para a questão de inconstitucionalidade que suscitaram.
Assim sendo, as normas, cuja ilegalidade se invoca, têm o seguinte teor:
“Artigo 149º
Receitas do Serviço Nacional de Saúde
(...)
2 - O pagamento das prestações de serviços efetuadas pelas entidades do SNS a pessoas singulares fiscalmente residentes nas regiões autónomas é da responsabilidade do Serviço Regional de Saúde respetivo.
3 - As prestações de serviços do SNS a pessoas singulares fiscalmente residentes nas regiões autónomas são obrigatoriamente enquadradas pelo previsto no artigo 5.º da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, alterada pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, sendo responsabilidade do Serviço Regional de Saúde a emissão do número do compromisso previsto no n.º 3 do mesmo artigo.
(...).”
O artigo 5.º, n.º 3, da Lei n.º 8/2012, para o qual remete o n.º 3 do artigo 149.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013, ora analisada, estabelece que “os sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos”.
A ilegalidade do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, deve ser aferida por referência ao artigo 12.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores, o qual, sob a epígrafe, 'Princípio da solidariedade nacional', determina o seguinte:
'1. Nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, a Região tem direito a ser compensada financeiramente pelos custos das desigualdades derivadas da insularidade, designadamente no respeitante a comunicações, transportes, educação, cultura, segurança social e saúde, incentivando a progressiva inserção da Região em espaços económicos mais amplos, de dimensão nacional e internacional.
2. Constitui obrigação do Estado assegurar os encargos para garantia da efetiva universalidade das prestações sociais quando não for possível assegurá-las na Região, nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas.'
19. Para uma melhor compreensão do que está em causa, nos artigos 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012 e 5.º, n.º 3, da Lei n.º 8/2012, importa começar por um breve enquadramento da legislação subjacente ao Sistema Regional de Saúde.
O artigo 59.º do EPARAA atribui à Assembleia Legislativa Regional competências para legislar em matéria de politica de saúde, nela se englobando “o serviço regional de saúde, incluindo a sua organização, planeamento, funcionamento, financiamento e recursos humanos”.
Por sua vez, a Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro), nos termos da Base VIII, estabelece que nas “Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira a política de saúde é definida e executada pelos órgãos do governo próprio, em obediência aos princípios estabelecidos pela Constituição da República e pela presente lei”, cabendo-lhes “publicar regulamentação própria em matéria de organização, funcionamento e regionalização dos serviços de saúde”.
Por seu turno, o Estatuto do Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma dos Açores, o qual consta do Decreto Legislativo Regional n.º 28/99/A, de 31 de julho, no artigo 1.º, n.º 1, define o SRS como um conjunto articulado e coordenado de entidades prestadoras de cuidados de saúde, organizado sob a forma de sistema público de saúde (do diploma mencionado). Nos termos do referido Estatuto do Serviço Regional de Saúde dos Açores, “incumbe ao SRS a efetivação, na Região Autónoma dos Açores, da responsabilidade que a Constituição e a lei atribuem aos seus órgãos de governo próprio na promoção e proteção das condições de saúde dos indivíduos, famílias e comunidade” (artigo 3.º). Ou seja, o SRS não pretende substituir ou ser uma alternativa ao SNS, e não visa a efetivação das obrigações do Estado em matéria de direito à saúde. A instituição de serviços regionais de saúde corresponde à necessidade de dar aos órgãos de governo regional, no respeito pelo princípio da autonomia, liberdade de definição das regras de organização e funcionamento dos serviços públicos de saúde.
A completar este quadro legislativo, a Portaria n.º 66/2010, de 30 de junho, aprova o regulamento de deslocação de doentes do Serviço Regional de Saúde na Região Autónoma dos Açores, inter e intrailhas, para fora da região, ou para o estrangeiro, bem como a tabela de comparticipação diária na deslocação dos referidos doentes e seus acompanhantes.
Deste enquadramento legal parece decorrer a existência de uma relação de subsidiariedade entre o Serviço Nacional de Saúde e os serviços regionais de saúde, ou seja, o SNS delega tarefas nos SRS, sempre que estes estejam em condições de garantir a prestação dos cuidados de saúde necessários, atuando apenas quando aqueles serviços não possam garantir a atenção indispensável ao tratamento, em função da situação clínica concreta ou da localização do doente.
20. Em termos práticos, poderá verificar-se um conjunto de situações distintas nas quais cidadãos com residência fiscal nos Açores podem necessitar de cuidados médicos prestados pelo SNS. Desde logo, quando são referenciados pelo serviço regional de saúde para unidades de saúde do continente, devido a situações clínicas mais complexas ou à necessidade de tratamentos diferenciados inexistentes na região autónoma. Também poderão ver-se forçados a recorrer a instituições do SNS os cidadãos residentes nos Açores que estejam de passagem ou a viver temporariamente no continente, bem como pessoas que estejam em processo de transferência de residência da região para o continente, mas ainda estejam registadas como utentes do serviço regional de saúde.
À luz do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012, as prestações de serviços de saúde a cidadãos portugueses com residência fiscal nas regiões autónomas, por parte do SNS, deverão ser precedidas de um número de compromisso, constante de nota de compra ou documento equivalente, emitido pelo SRS, sem o qual será nula a obrigação de prestação de cuidados. Este preceito estabelece, pois, o procedimento administrativo e contabilístico que deve ser seguido quando se verificam situações em que ocorreu a prestação de serviços de saúde a cidadãos portugueses com residência fiscal nas regiões autónomas, por parte do SNS, sendo a responsabilidade pelo pagamento dessas prestações do serviço regional de saúde.
21. Uma vez interpretados o texto e o contexto das normas constantes do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012, é tempo de averiguar se elas contrariam o artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, do EPARAA, o qual consagra o princípio da solidariedade nacional. Inserindo-se no Título II do Estatuto respeitante aos princípios fundamentais, o n.º 1 do artigo 12.º do EPARAA determina que, nos termos da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, a Região tem direito a ser compensada financeiramente pelos custos derivados da insularidade, designadamente, no que respeita à saúde e o n.º 2 do mesmo preceito legal estabelece que o Estado tem a obrigação de assegurar os encargos para garantia da efectiva universalidade das prestações sociais quando não for possível assegurá-las na Região, nos termos da Lei das Finanças das Regiões Autónomas. No fundo, trata-se de concretização do princípio constitucional mais vasto de cooperação entre os órgãos de soberania e os órgãos regionais, afirmado no artigo 229.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, o qual impõe aos órgãos de soberania a obrigação de assegurarem, em cooperação com os órgãos de governo próprio, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, com especial relevo para a correcção das desigualdades derivadas da insularidade, estabelecendo igualmente que as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas por lei da Assembleia da República prevista na alínea t) do artigo 164.º da CRP.
Assim sendo, o primeiro problema com que nos deparamos é de saber se as normas constantes do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012, poderão pôr em causa o artigo 12.º, n.º 1 e 2 do EPARAA, na medida em que o regime das relações financeiras entre o Estado e a Região, no tocante à prestação de cuidados de saúde, designadamente, o regime das transferências de verbas do Estado para a Região não é posto em causa por essas normas. Como vimos, aquelas incidem tão-somente sobre os procedimentos administrativos e contabilísticos relativos a essas prestações.
No fundo, o artigo 12.º do EPARAA, ao remeter para a Lei das Finanças Regionais, os termos do direito da Região a ser compensada financeiramente pelos custos das desigualdades derivadas da insularidade, designadamente no respeitante à saúde, não se afigura suscetível de invalidar uma norma do Orçamento de Estado, a qual se limita a estabelecer procedimentos administrativos e contabilísticos, não tendo, à partida, repercussões sobre o regime das transferências de verbas do Estado para as regiões.
Em conclusão, as normas constantes do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012 não se encontram feridas de ilegalidade.
22. Os requerentes pedem ainda a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013.
A mencionada disposição legal tem o seguinte teor:
“Artigo 188.º
Disposições transitórias no âmbito do IRS
(...).
3 — A receita da sobretaxa reverte integralmente para o Orçamento do Estado, nos termos dos artigos 10.º-A, 10.º-B e 88.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 52/2011, de 13 de outubro.”
A sobretaxa mencionada nesta disposição normativa está prevista no artigo 187.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013, cujo n.º 1 dispõe o seguinte: “Sobre a parte do rendimento coletável do IRS que resulte do englobamento nos termos do artigo 22.º do Código do IRS, acrescido dos rendimentos sujeitos às taxas especiais constantes dos n.ºs 3, 6, 11 e 12 do artigo 72.º do mesmo Código, auferido por sujeitos passivos residentes em território português, que exceda, por sujeito passivo, o valor anual da retribuição mínima mensal garantida, incide a sobretaxa de 3,5 %”. O relatório sobre o OE2013 atribui-lhe “caráter excecional” (p. 67) e justifica a sua necessidade com base na “suspensão, no próximo exercício orçamental, de apenas um dos subsídios, designadamente o de férias, relativamente aos trabalhadores do setor público”, o que leva à “introdução de uma sobretaxa (...) sobre todos os rendimentos sujeitos a IRS, na parte que excede o salário mínimo nacional,” visando “extrair as devidas consequências da decisão do Tribunal Constitucional, que declarou a inconstitucionalidade, com efeitos a partir de 2013, das normas dos artigos 21.º e 25.º da Lei do Orçamento do Estado para 2012”. A obtenção de receita fiscal adicional através do lançamento de uma sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS ocorreu igualmente em 2011, com fundamento nas exigências de cumprimento do défice estabelecido para esse ano, no âmbito do programa de ajustamento económico e financeiro (PAEF) acordado com as instituições europeias e com FMI.
A respeito da sobretaxa extraordinária de 2011, escreveu-se no Acórdão n.º 412/2012 deste Tribunal:
«A sobretaxa em causa é de facto um imposto extraordinário (ou, se se preferir um adicional extraordinário a um imposto), o que é comprovável para lá da etiqueta “sobretaxa extraordinária”. Em primeiro lugar, é justificada pela ocorrência de circunstâncias excecionais na Exposição de motivos da Proposta de Lei que deu origem àquele diploma, onde se lê o seguinte: “A prossecução do interesse público, em face da difícil situação económico-financeira do País, exige um esforço de consolidação que requererá, além de um maior ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais adicionais, inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental, que permitirão a obtenção de receita fiscal adicional estimada em cerca de oitocentos milhões de euros já em 2011 (…).Em segundo lugar, a sobretaxa tem caráter marcadamente temporário ao incidir exclusivamente sobre os rendimentos auferidos em 2011, o que é assumido expressamente naquela Exposição de motivos e tem letra de lei no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 49/2011, nos termos do qual o artigo que a cria aplica-se apenas aos rendimentos auferidos durante o ano de 2011, cessando a sua vigência após a produção de todos os seus efeitos em relação ao ano fiscal em curso».
22. A questão de constitucionalidade ora colocada é idêntica à que foi objeto de análise por parte deste Tribunal no supra citado Acórdão. Então, como agora, tratava-se de saber se uma norma com o teor do presente artigo 188.º, n.º 3, da Lei n.º 66-B/2012, que determina a reversão integral para o Orçamento do Estado das receitas da sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos em 2013, viola o artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, ao abrigo do qual as regiões autónomas têm o poder de dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas.
A argumentação dos requerentes funda-se, desta vez, para além da contradição com normas da CRP, do EPARAA e da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, no facto de a receita arrecadada com esta sobretaxa se destinar, “conforme explicado publicamente pelo Governo da República, a pagar o subsídio que foi reposto aos funcionários públicos. Ora, na Região Autónoma dos Açores, a reposição do referido subsídio aos trabalhadores da administração pública regional será efetuada a expensas do orçamento regional, pelo que estamos na presença de uma dupla penalização para as finanças regionais, uma vez que a Região terá que suportar os encargos inerentes à reposição de um subsídio e, simultaneamente, fica desprovida da receita para o efeito”. Alegam ainda, lembrando uma declaração de voto anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 412/2012, que “o caráter temporário (...) e excecional da sobretaxa não justifica que esta possa reverter totalmente para o Orçamento do Estado, contrariando o disposto no art. 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição. Ou seja, a titularidade da receita não muda apenas em função da excecionalidade da sobretaxa. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, «As regiões autónomas têm direito a dispor de todas as receitas fiscais cobradas no respetivo arquipélago (n.º j/2.ª parte), o que abrange todos os impostos independentemente da sua natureza específica (impostos diretos ou indiretos, ordinários ou extraordinários, etc.)» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006 p. 675). (...) Desde logo, pois de modo algum se poderá, a meu ver, considerar «consignada» a receita da sobretaxa em questão, apenas pelo facto de a sua imposição ser justificada por circunstâncias excecionais que obrigam a um esforço para acelerar a consolidação orçamental e cumprimento do objetivo traçado para o défice orçamental. O ter como meta um tal objetivo genérico não faz do produto da sobretaxa uma receita «consignada». Pelo que não pode obstar a que esta receita, ainda que extraordinária, deva ser utilizada para realização de finalidades prosseguidas pelas regiões autónomas, no quadro determinado pelo artigo 227.º,n.º 1, alínea j), da Constituição”.
É entendimento firme e reiterado do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs 11/83, 66/84 e 141/85 e 412/12) que normas do teor daquela que ora se analisa “não podem deixar de ser interpretadas no sentido de consentirem o lançamento de impostos de caráter extraordinário cujo produto reverta inteiramente para o Estado, quando ocorram circunstâncias excecionais, nomeadamente de crise económico-financeira, que justifiquem esse comportamento legislativo. Decerto que o legislador constitucional, ao estabelecer os princípios constantes dos artigos atrás mencionados, teve basicamente presente um quadro de normalidade financeira e, consequentemente, tão-só os impostos ordinários correntes, razão pela qual devem poder haver-se por excluídos daquele quadro os impostos extraordinários e não permanentes ditados por razões de manifesta excecionalidade” (Acórdão nº 11/83, para o qual remete, por exemplo, o Acórdão nº 412/12).
23. Assim, resta verificar se há, no presente caso, algum argumento novo ou alguma especificidade que possam fundamentar o afastamento da jurisprudência acima mencionada. O único elemento distintivo da presente situação é a explicação pública feita pelo Governo da República, segundo a qual as receitas da sobretaxa se destinariam a pagar o subsídio que foi reposto aos funcionários públicos. A despesa com os vencimentos dos funcionários da administração regional é suportada pelo orçamento das regiões autónomas, o que pareceria justificar a necessidade de lhes atribuir a sua parte nas receitas da sobretaxa. Todavia, tal consignação carece de suporte legal e jurídico, sendo meramente um argumento de cariz politico. Na realidade, e tal como medidas análogas adotadas em Orçamentos anteriores, a sobretaxa ora em causa continua a configurar-se como um veículo do esforço de consolidação orçamental que exige, no entender do Governo, medidas fiscais que permitam a obtenção de receita fiscal adicional. Como se afirma no Relatório do OE 2013 “A suspensão, no próximo exercício orçamental, de apenas um dos subsídios, designadamente o de férias, relativamente aos trabalhadores do setor público, complementada com a introdução de uma sobretaxa de 4 % sobre todos os rendimentos sujeitos a IRS, na parte que excede o salário mínimo nacional, visa extrair as devidas consequências da decisão do Tribunal Constitucional (…). Neste âmbito, cumpre desde logo salientar o caráter progressivo da sobretaxa ora introduzida e pela sua cumulação com a sobretaxa de solidariedade aplicável aos titulares de rendimentos mais elevados, sem incidir porém sobre a parte dos rendimentos que equivalem ao salário mínimo nacional (…) Salvaguardam-se assim os princípios da igualdade e da justiça social, os quais determinam uma justa repartição dos encargos públicos pelos cidadãos, sem no entanto desacautelar a situação daqueles que se encontram em situação económica mais frágil. A introdução da sobretaxa deve, aliás, ser enquadrada no conjunto das outras medidas de caráter fiscal ora introduzidas, as quais atingem especialmente os titulares de rendimentos mais elevados, assim como os rendimentos de capital”. Ora, estes são objetivos específicos de âmbito nacional e não se esgotam na questão da despesa salarial.
Por outro lado, e como o Tribunal Constitucional decidiu em ocasiões anteriores, a norma ora em análise “não subtrai às regiões autónomas as receitas fiscais que tornam efetivo o poder de aprovação (a liberdade de conformação) de um orçamento próprio, financiado com receitas regionais próprias, constitucionalmente enquadrado na autonomia financeira regional” (cfr. Acórdão n.º 412/12).
Finalmente, sempre se poderá reafirmar, como se expos no Acórdão n.º 412/12, que à luz do n.º 2 do artigo 225.º da CRP, a autonomia das regiões visa também o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses, pelo que o princípio da solidariedade nacional «não pode ser perspetivado por forma a dele se extrair uma só direccionalidade, qual seja a da solidariedade representar unicamente a imposição de obrigações do Estado para com as Regiões Autónomas», tornando-se inequívoco que «não poderão deixar de ser ponderados também os interesses das populações do território nacional no seu todo» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/2007, cujo entendimento foi reiterado nos Acórdãos n.ºs 581/2007 e 499/2008).
24. Os requerentes colocam ainda a questão da ilegalidade do artigo 188.º, n.º 3, da Lei n.º 66-B/2012, por violação da alínea b) do n.º 2 do artigo 19.º do EPARAA relativo às receitas da região, nos termos do qual constituem, em especial, receitas da Região todos os impostos (…) e adicionais cobrados no seu território. Ora, esta norma estatutária, embora formalmente inserida no estatuto político-administrativo, não é materialmente estatutária, tal como se decidiu no Acórdão n.º 412/12:
“O Tribunal tem entendido, reiteradamente, que o âmbito da reserva de lei estatutária «não se determina em função do conteúdo concreto de um estatuto vigente; não ocorre violação da “reserva de estatuto” sempre que uma norma o contrarie». Esta violação existirá somente se a «norma constante do estatuto pertencer ao âmbito material estatutário – ou seja: se ela regular questão materialmente estatutária» (Acórdãos n.ºs 162/99, 567/2004, 581/2007 e 238/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Na doutrina, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 226.º, alínea b) do ponto IV).
E fora da reserva de estatuto está necessariamente a matéria das “relações financeiras entre a República e as regiões autónomas”, por ser matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República o “regime de finanças das regiões autónomas”, de acordo com o estatuído nos artigos 164.º, alínea t), e 229.º, n.º 3, da CRP (Acórdãos n.ºs 162/99, 567/2004, 581/2007 e 238/2008. Na doutrina, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 227.º, alínea i) do ponto VIII). Se, por um lado, só é possível reconhecer valor reforçado às normas incluídas no estatuto que revistam natureza materialmente estatutária, por outro, o âmbito material da reserva de estatuto encontra-se delimitado negativamente pelo princípio da reserva de lei da Assembleia da República (na conclusão, Acórdão n.º 238/2008).”
Não pode, pois, concluir-se pela ilegalidade do artigo 188.º, n.º 3, da Lei n.º 66-B/2012.
Face ao que acima se afirmou, é de concluir que as normas em apreciação não violam o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, nem a alínea b) do n.º 2 do artigo 19.º do EPARAA, ao estatuírem a reversão integral para o Orçamento do Estado das receitas da sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos em 2013.
25. Finalmente, os requerentes pedem a declaração de inconstitucionalidade ou (subsidiariamente), de ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 262.º Lei n.º 66-B/2012, que tem o seguinte teor:
“Artigo 262.º
Norma interpretativa
Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, alterada pelas Leis n.os 22 -A/2007, de 29 de junho, 67 -A/2007, de 31 de dezembro, 3 -B/2010, de 28 de abril, 55 -A/2010, de 31 de dezembro, 64 -B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio, a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma, devendo o Estado proceder diretamente à sua entrega às autarquias locais.”
A questão de constitucionalidade aqui em causa foi também analisada anteriormente pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.º 412/12 e n.º 568/12. Trata-se de avaliar a compatibilidade com a Lei Fundamental da dedução da participação das autarquias à receita de IRS cobrada na região autónoma, não se apresentando como problemática a entrega direta dessas mesmas receitas às autarquias locais, por parte do Estado. É entendimento dos requerentes, e nesse aspeto se centra a sua argumentação, que constitui receita da Região Autónoma dos Açores todo o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nela cobrado. Mais acrescentam que, nos termos constitucionais, as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas através da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, não podendo o Estado, através de uma disposição do teor da norma ora questionada, eximir-se de respeitar o mínimo legalmente definido para a contribuição da República para as regiões autónomas, que inclui as receitas do IRS nelas geradas. Nestes termos, está em causa, segundo os requerentes, uma verdadeira “reserva regional de receitas cobradas e geradas no respetivo território” (mencionada, aliás, no Acórdão deste Tribunal n.º 499/2008), que constituiria a garantia mínima de autonomia financeira das regiões autónomas.
Este problema foi tratado pela primeira vez, como, aliás, se recorda nos Acórdãos anteriormente referidos, no Parecer da Comissão Constitucional n.º 28/78, mediante o qual não houve pronúncia pela inconstitucionalidade de um Decreto da Assembleia da República sobre «Finanças locais» (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7, 1980, p. 3 e ss.). No mencionado Parecer, defendeu-se que “o poder de disposição das receitas fiscais atribuído às regiões autónomas (…) foi sempre entendido como não prejudicando o regime das finanças locais a instituir posteriormente”. Nestes termos, a questão “reduz-se a saber como pode o Estado satisfazer simultaneamente o direito das regiões a dispor das receitas fiscais nelas cobradas e o direito dos municípios a participar nas receitas provenientes de impostos diretos”. Entendeu então a Comissão Constitucional que “o direito atribuído às regiões não pode deixar de se encontrar negativamente delimitado pelo direito atribuído aos municípios”, cabendo, por isso, às regiões autónomas “dispor das receitas fiscais nelas cobradas, salvo daquela parte destas que se destina a assegurar a participação dos municípios nas receitas provenientes de certos impostos, nos termos da Constituição e da lei”.
Este entendimento foi reiterado pela jurisprudência mais recente. Nos termos do Acórdão n.º 412/12:
“Face ao estatuído nos artigos 254.º e 238.º da CRP os municípios participam, por direito próprio, nas receitas provenientes dos impostos diretos e têm finanças próprias. Este imperativo de autonomia financeira das autarquias locais tem, por isso, de se compatibilizar com o poder que as regiões autónomas têm de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas para afetação às suas despesas.
O princípio do Estado unitário (artigo 6.º da CRP) compatibiliza o regime autonómico insular com a autonomia das autarquias locais e, consequentemente, duas diferentes sedes de autonomia financeira – a das regiões autónomas (artigos 227.º, n.º 1, alínea j), e 232.º, n.º 1, da CRP) e a das autarquias locais (artigos 238.º e 254.º da CRP). Às regiões autónomas é garantido o poder de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas afetando-as às suas despesas, com exclusão das que caibam, por direito próprio, aos municípios”.
Não se veem fundamentos para alterar a posição até aqui seguida pelo Tribunal Constitucional, o que conduz à não declaração de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013, por violação dos artigos 227.º, n.º 1, alínea j) e n.º 3 do artigo 229.º da Constituição.
26. Os requerentes põem ainda a questão da ilegalidade da norma ora analisada. Os fundamentos alegados para sustentar a ilegalidade são a violação dos artigos 15.º e 19.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro -, bem como dos artigos 12.° e 19.º, n.º 2, alínea b), e n.º 2 do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Quanto aos fundamentos radicados na Lei das Finanças das Regiões autónomas e do artigo 19.º, n.º 1, do EPARAA, já atrás se chegou à conclusão que os requerentes não têm legitimidade processual para um pedido de fiscalização da legalidade com base neles (cfr. supra n.º 8).
Quanto ao fundamento de ilegalidade relacionado com a violação do artigo 19.º, n.º 2, alínea b), do EPARAA, remete-se, antes de mais, para o que se disse supra no n.º 24, ou seja, e em síntese, o Tribunal Constitucional tem entendido, reiteradamente, que não ocorre violação da “reserva de estatuto” sempre que uma norma o contrarie (neste sentido, ver os Acórdãos n.ºs 412/12, 238/2008, 581/2007 e 567/2004), existindo violação apenas quando a norma do Estatuto em causa pertencer ao âmbito material estatutário. Tal como se decidiu no Acórdão n.º 412/12, “fora da reserva de estatuto está necessariamente a matéria das “relações financeiras entre a República e as regiões autónomas”, por ser matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República o “regime de finanças das regiões autónomas”, de acordo com o estatuído nos artigos 164.º, alínea t), e 229.º, n.º 3, da CRP (...)”.
Não se descortinando motivo bastante para alterar esta posição, não pode, pois, concluir-se pela ilegalidade da norma questionada, tendo em conta o disposto no artigo 12.º e 19.º, n.º 2, alínea b) do EPARAA.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento da inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012;
b) Não declarar a inconstitucionalidade nem a ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos n.ºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º e no artigo 68.º da Lei n.º 66-B/2012;
c) Não declarar a ilegalidade, com força obrigatória geral das normas insertas no artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012;
d) Não tomar conhecimento da ilegalidade dos artigos 188.º, n.º 3, e 262.º da Lei n.º 66-B/2012, por violação do artigo 19.º, n.º 1, do EPARAA.
e) Não declarar a inconstitucionalidade, nem a ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 3 do artigo 188º da Lei n.º 66-B/2012;
f) Não declarar a inconstitucionalidade, nem a ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 262.º da Lei n.º 66-B/2012.
Lisboa, 11 de novembro de 2013.- Ana guerra Martins – Maria João Antunes (não teria tomado conhecimento, quanto às normas da alínea d), por falta de legitimidade dos requerentes, pelas razões constantes da declaração aposta ao Acórdão nº 187/2012) – José da Cunha Barbosa – Maria José Rangel de Mesquita – Fernando Vaz Ventura – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral (com declaração em anexo) – Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à decisão da alínea c) nos termos da declaração de voto em anexo) – Pedro Machete (vencido quanto à alínea f) conforme declaração anexa ao Ac. 568/2012) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida parcialmente de acordo com a declaração junta) – Catarina Sarmento e Castro (vencida quanto às alíneas b), c) e e), nos termos da declaração de voto junta) – João Cura Mariano (vencido quanto às alíneas b), c) e e), nos termos da declaração de voto da Conselheira Catarina Sarmento e Castro) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida quanto à fundamentação em dois pontos essenciais: primeiro, no ponto relativo à “legitimidade dos requerentes”; segundo, no ponto relativo à “reserva de poder executivo regional”.
1. Em primeiro lugar, discordo da fundamentação que é seguida pelo Acórdão para resolver o problema da “legitimidade dos requerentes” (pontos 4 e 5). Entendo que o Tribunal seguiu aqui um método de interpretação – já trilhado, aliás, no Acórdão n.º 645/2013 – que se afasta das razões substanciais que levaram a Constituição, na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º, a limitar o acesso ao Tribunal, no que aos titulares dos órgãos de governo das regiões diz respeito, ou a problemas de defesa da autonomia (questão de constitucionalidade), ou a problemas de defesa da integridade do ordenamento regional, tal como ele é prefigurado pelos estatutos político-administrativos (questão de legalidade). O caminho interpretativo adotado, e do qual discordo, consiste basicamente no seguinte: avalia-se da legitimidade dos requerentes para colocar ao Tribunal questões de constitucionalidade tendo em conta a “causa de pedir” que acompanha o pedido. Se essa “causa de pedir” invocar, como parâmetro, norma constitucional que consagre “direitos das regiões”, a questão de constitucionalidade é admitida; se, pelo contrário, o parâmetro invocado na “causa de pedir” coincidir com norma constitucional que não consagra “direitos das regiões” o pedido não é admitido. Finalmente, como instrumento hermenêutico determinante para saber se certa norma constitucional, invocada pelos requerentes, consagra ou não “direitos” das regiões, usa-se o critério da sua localização no texto da Constituição. Por isso, in casu, o artigo 112.º da CRP – que se insere nos princípios gerais da Parte III da Constituição e não no título respeitante às regiões autónomas – não é tido como “causa de pedir” idónea para efeitos da limitação da legitimidade dos requerentes que é consagrada na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º, não obstante ser determinante para a compreensão do modo através do qual se articulam ordenamento regional e ordenamento estadual.
A razão pela qual a alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º limita o acesso dos titulares dos órgãos de governo das regiões ao Tribunal Constitucional à colocação de questões de constitucionalidade que se fundem na defesa da autonomia regional (pois é isso que se deve entender por “invocação dos direitos das regiões”) encontra-se na estrutura unitária do Estado português. Num estado com esta estrutura (dotado, portanto, de uma única constituição) a larga maioria de questões de constitucionalidade que se podem colocar em processos de fiscalização abstrata dirão, naturalmente, respeito a todos os cidadãos, residam eles nas ilhas ou residam no continente. É esta a consequência lógica da existência de uma única constituição para o todo do território nacional. Assim, questões de constitucionalidade que decorram do incumprimento por parte de atos jurídico-públicos de normas constitucionais que consagram direitos fundamentais, por exemplo, ou de normas constitucionais que digam respeito às competências dos órgãos de soberania, só podem ser colocadas ao Tribunal por “entidades” que, nos termos da CRP, sejam “representativas” dos cidadãos nacionais, ou que exerçam funções de “âmbito nacional”. A atribuição a essas “entidades” do poder de iniciativa de processos de fiscalização abstrata sucessiva decorre logicamente da sua corresponsabilização no exercício da função [que aos órgãos constitucionais de âmbito nacional naturalmente cabe] de garantia da integridade da ordem jurídica como um todo. Inversamente, às entidades “representativas” dos órgãos de governo regional caberá velar pela integridade da ordem constitucional no que diz respeito à defesa da autonomia regional, ou pela integridade da ordem regional no que diz respeito à observância das regras estatutárias. Sendo esta uma consequência lógica da estrutura unitária do Estado, não parece que a forma correta da sua aplicação aos casos concretos seja a da busca da coincidência, norma a norma, entre o que é invocado na “causa de pedir” pelos requerentes e os “preceitos constitucionais” que consagram “direitos das regiões”. Para além de desconhecer um tópico fundamental da hermenêutica constitucional – o da unidade da constituição – este método interpretativo afasta-se, em meu entendimento, das razões substanciais que justificam a alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da CRP. Sobretudo quando se chega ao ponto de adotar como critério identificador das normas constitucionais que consagram “direitos das regiões” o critério da localização sistemática das referidas normas no texto da CRP.
2. Em segundo lugar, discordei do caminho que aqui o Tribunal seguiu para resolver o problema relativo à “reserva de executivo regional”.
O problema fora colocado pelos requerentes quanto As normas dos artigos 59.º e 68.º da Lei do Orçamento do Estado para 2013 que impunham limitações à contratação de novos trabalhadores para a administração, bem como para a renovação dos contratos já existentes. Entendia-se no requerimento que as limitações impostas pelo legislador nacional não podiam valer para a administração regional, uma vez que as decisões a tomar (contratação de novos trabalhadores; renovação de contratos já existentes) eram, segundo a Constituição e os Estatutos, decisões a ser tomadas pelo governo regional, que só a ele pertenciam.
O Acórdão resolve essencialmente o problema no ponto 13, onde se diz que perante a indefinição constitucional do que seja o conceito de “reserva de poder executivo regional”, só se estaria perante um norma inconstitucional se se pudesse afirmar e existência de uma compressão do núcleo essencial da “autonomia administrativa” [das regiões]; mas como, no caso, as normas do orçamento do Estado ainda deixavam “espaço de manobra” ao governo regional, não haveria como concluir-se pela ocorrência, in casu, de uma “eliminação” ou “afectação” do núcleo essencial dessa autonomia.
Discordo desta fundamentação.
Em primeiro lugar, parece-me certo que se não tem que buscar na Constituição o “conceito” de reserva de poder executivo regional. As normas constitucionais não existem para oferecer conceitos. Estes, como sempre acontece no mundo do direito, hão-se ser construídos pelo intérprete a partir das soluções que as normas conferem para os problemas que há que resolver. Neste caso, problemas de repartição de competências entre Estado e regiões.
Ora, de acordo com o sistema desenhado pela CRP para a resolução destes problemas de repartição e competências, penso que há desde logo que concluir que os conceitos de “reserva de poder executivo regional” e de “autonomia administrativa” significam coisas diferentes, pelo que não podem ser usados de forma intermutável: enquanto a “autonomia” (e autonomia administrativa não a detêm apenas as regiões) é uma categoria referente às relações entre entes, a “reserva” é uma categoria referentes às relações entre órgãos.
Na verdade, a ideia da existência de um poder reservado um órgão inclui duas vertentes. A primeira é de índole positiva, diz respeito à competência do próprio órgão ao qual se atribui o poder que lhe é “reservado”, e pode ser resumida através da palavra exclusividade. A competência para o exercício de um poder que é reservado a um certo órgão é, portanto e desde logo, uma competência exclusiva desse órgão. A segunda vertente que vai incluída na ideia de “reserva” é de índole negativa, diz respeito a órgãos outros que não aquele ao qual foi conferido o poder reservado e resume-se ao conceito de excludência. Se a certo órgão é reservado um certo poder, tal significa portanto que do exercício desse poder são excluídos outro ou outros órgãos.
Assim sendo, a primeira tarefa que haveria, em meu entender, que encetar, para resolver o problema de saber se in casu as normas do orçamento geral do Estado invadiam ou não, pelo seu teor, a reserva do executivo regional, era a de determinar face a que outro ou outros órgãos poderia valer esse poder reservado, caso existisse (nos termos da Constituição, e do seu desenvolvimento pelos Estatutos).
Porque, a meu ver, esse trabalho – que reputo necessário – não foi feito na fundamentação do Acórdão, há nessa fundamentação, segundo creio, uma confusão entre duas coisas bem distintas: a autonomia administrativa e a reserva de poder executivo regional.
Creio que esta última reserva, no sentido de âmbito de poder exclusiva e excludentemente conferido pela Constituição e pelos estatutos político-administrativos ao governo das regiões autónomas, só pode atuar no âmbito da autonomia político-administrativa da região. O governo regional só pode apor uma competência exclusiva sua aos órgãos do poder do Estado (poder legislativo e poder executivo da República), ou ao órgão legislativo da região – de tal ordem que se possa concluir que esses mesmos órgãos estão, por força da Constituição e dos estatutos, excluídos do exercício do poder que só ao governo regional foi confiado – no âmbito da “execução” de deliberações político-legislativas que primariamente caibam à região, de harmonia com o quadro de repartição de competências entre Estado e regiões que é fixado pela CRP com o concurso das normas estatutárias. Se, de acordo com esse quadro, o “poder executivo” de que se fala se situar fora desse âmbito, ou seja, disser respeito à execução de deliberações político-legislativas que primariamente caibam ao Estado – não fará naturalmente sentido invocar uma “reserva” de poder executivo ou governativo regional. Ora, no caso, em que estava em causa a impugnação de normas constantes do Orçamento Geral do Estado, do que se tratava era da execução de deliberações político- legislativas confiadas primariamente ao legislador nacional. Foi por este motivo (mas não por outro) que concordei com a decisão tomada maioritariamente pelo Tribunal. Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão da alínea c) com os seguintes fundamentos.
O artigo 149.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, ao imputar ao Serviço Regional de Saúde a responsabilidade pelo pagamento das prestações de serviços efetuadas pelas entidades do Serviço Nacional de Saúde a pessoas singulares fiscalmente residentes nas regiões autónomas, impondo consequentemente a esse Serviço a assunção de compromissos para os efeitos do disposto no artigo 5.º da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, não se limita a estabelecer um mero procedimento administrativo e contabilístico, mas opera antes uma efetiva e injustificada transferência de responsabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o Serviço Regional de Saúde (SRS). Assim se compreendendo que a referida disposição se apresente sob a epígrafe «Receitas do Serviço Nacional de Saúde», fazendo supor que os encargos com a prestação de cuidados de saúde por serviços e estabelecimentos do SNS a cidadãos fiscalmente residentes nas regiões autónomas passe a ser suportado pelo SRS e represente, por via da correspondente transferência de verbas, uma nova forma de financiamento do SNS.
Essas disposições violam, nesses termos, o princípio da solidariedade nacional que consta do artigo 12.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) e, especialmente, o seu n.º 2, que constitui o Estado na obrigação de «assegurar os encargos para garantia da efetiva universalidade das prestações sociais quando não for possível assegurá-las na Região, nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas».
De facto, o SNS é um serviço público nacional a cargo do Estado e que assenta numa ideia de universalidade e generalidade e de gestão participada e descentralizada, sendo ao Estado que incumbe a responsabilidade direta da sua execução (artigo 64º, n.ºs 2 e 3, da Constituição). Estes mesmos princípios estão condensados, além do mais, na Base XXV da Lei de Bases da Saúde, pela qual o SNS se caracteriza por «prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação», segundo um modelo de «organização regionalizada e gestão descentralizada e participada», e na Base XXXIII, que assegura o financiamento do Serviço Nacional de Saúde através do Orçamento do Estado. Não podendo deixar de reconhecer-se que «são beneficiários do Serviço Nacional de saúde todos os cidadãos portugueses», incluindo, necessariamente, os cidadãos com residência fiscal nas regiões autónomas (Base XXV, n.º 1).
Certo é que nas Regiões Autónomas cabe aos órgãos do governo próprio definir e executar a política de saúde, que poderão «publicar regulamentação própria em matéria de organização, funcionamento e regionalização dos serviços de saúde» (Base VIII da Lei de Bases da Saúde), o que justifica a atribuição de competência legislativa à Assembleia Legislativa Regional em matéria de política de saúde, designadamente, no que se refere à implementação do serviço regional de saúde (artigo 59.º do EPARAA).
O Serviço Regional de Saúde é definido, por sua vez, como um conjunto articulado e coordenado de entidades prestadoras de cuidados de saúde, organizado sob a forma de sistema público de saúde, cujo objetivo é o da «efetivação, na Região Autónoma dos Açores, da responsabilidade que a Constituição e a lei atribuem aos seus órgãos de governo próprio na promoção e proteção das condições de saúde dos indivíduos, famílias e comunidade (artigos 1.º, n.º 1, e 3.º do Estatuto aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 28/99/A, de 31 de julho).
Face ao regime legal e constitucionalmente definido, a intervenção dos serviços regionais de saúde não pode deixar de ser entendida à luz de um princípio de subsidiariedade, cabendo aos serviços próprios das Regiões Autónomas, por efeito de uma delegação de tarefas do SNS, a prestação de cuidados de saúde no âmbito territorial da respetiva Região, desde que se trate, em função da situação clínica concreta, de prestações que os serviços regionais se encontrem em condições de assegurar. Não poderá falar-se, por conseguinte, em sobreposição de obrigações entre o Estado e as Regiões Autónomas ou transferência de responsabilidade do SNS para os serviços regionais
Verificando-se a deslocação de utentes dos serviços regionais de saúde para unidades de saúde do continente, seja por virtude da necessidade de sujeição a tratamentos diferenciados que a região autónoma não possa prestar com o mesmo grau de exigência e qualidade, seja por se tratar de doentes que se encontrem a residir ocasional ou temporariamente no continente, a responsabilidade pelo pagamento das prestações não pode ser imputada aos serviços regionais, visto que, ainda nesse caso, os utentes não podem deixar de ser considerados beneficiários do SNS e a prestação de cuidados de saúde através do serviço público nacional sempre terá de manter o seu caráter de universalidade.
As normas do artigo 149.º da Lei n.º 66-B/2012, que, em detrimento destes critérios gerais, impõem a transferência para os serviços regionais de saúde do custo das prestações de serviços efetuadas pelos serviços e estabelecimento do SNS, violam assim a regra do artigo 12º, n.º 2, do EPARAA. É irrelevante para o caso que esse preceito efetue uma remissão para a Lei de Finanças das Regiões Autónomas. O certo é que está aí em causa uma concretização do princípio da solidariedade e a remissão para a Lei de Finanças das Regiões Autónomas não pode deixar de ser entendida como feita para o disposto no artigo 8º dessa Lei, que justamente corporiza esse mesmo princípio.
Pronunciei-me, nestes termos, pela declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas insertas no referido artigo 149.º
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Divirjo do presente Acórdão em quatro aspectos essenciais. Em primeiro lugar, discordo da metodologia seguida pelo Acórdão quanto à matéria da legitimidade das entidades regionais. Para além disso, discordo da fundamentação relativa à alínea b) da decisão. Por fim, considero as normas constantes dos artigos 188.º, n.º 3, e 262.º da Lei n.º 66-B/2012, inconstitucionais, ficando vencida relativamente às alíneas e) e f) da decisão.
2. O direito processual depende do direito substantivo que visa fazer valer. A Constituição restringe a titularidade do poder público de requerer a fiscalização abstracta da constitucionalidade (ou ilegalidade) a determinados cargos públicos em órgãos de soberania ou vocacionados para a defesa do princípio da constitucionalidade e da legalidade democrática (artigo 281.º, n.º 2, alíneas a) a f)). Por seu lado, às entidades regionais e aos seus representantes é atribuída legitimidade para aceder à jurisdição constitucional quando tal se justifique tendo em conta a sua posição no sistema constitucional português, nomeadamente para defesa da autonomia regional ou a observância dos seus limites, tal como previsto na alínea g) do nº 2 do artigo 280.º. Cabe às entidades regionais a protecção dos direitos regionais – até porque serão elas as mais interessadas nessa protecção. Compreende-se, assim, que os representantes regionais vejam a sua legitimidade para requerer a fiscalização abstracta da constitucionalidade (ou da ilegalidade) limitada: relativamente à constitucionalidade, a normas que impliquem violação dos direitos das regiões autónomas, e relativamente à ilegalidade, a normas que violem o respectivo estatuto. É o sentido que subjaz à parte final da alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º.
Encontrando-se condicionada pela violação dos direitos da região, a legitimidade processual activa dos seus representantes não pode deixar de ser aferida pelo pedido. Nesta exigência de uma legitimidade qualificada, é o âmbito (ou a natureza) do pedido que é condicionado pela necessária violação de direitos das regiões, não o parâmetro violado (como salientei na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 645/13). Face ao pedido, deve o Tribunal Constitucional averiguar se é alegada a violação de um direito da região consagrado por norma constitucional interpretativamente extraível de um ou mais preceitos da Constituição.
É também pelo pedido que o Tribunal Constitucional (como qualquer tribunal) está limitado no seu conhecimento. Não pelo direito invocado. E sendo assim, reconhecida a legitimidade dos requerentes para o pedido de fiscalização da constitucionalidade formulado, por estar em causa um direito da região, nada impede o Tribunal Constitucional de declarar a inconstitucionalidade, desde que traduzida no desrespeito de um direito constitucional da região, com fundamento em violação de quaisquer normas ou princípios constitucionais, inclusivamente normas ou princípios constitucionais diversos dos que foram invocados.
Ao fazer uma análise isolada da susceptibilidade de invocação de cada preceito indicado como parâmetro, nomeadamente pela posição sistemática ou pela classificação do seu conteúdo no texto da Constituição, o presente acórdão, na linha do Acórdão n.º 645/13, acaba por não aferir da legitimidade dos requerentes para formularem o pedido apresentado, antes exclui da apreciação que empreenderá determinadas normas e princípios constitucionais que foram invocados. O resultado desse processo é que, aceitando embora a legitimidade dos requerentes para a fiscalização da constitucionalidade do primeiro grupo de normas (artigos 59.º e 68.º da Lei n.º 66-B/2012), o acórdão acaba por excluir do seu conhecimento a apreciação da sua conformidade com determinadas normas e princípios constitucionais devido a uma interpretação isolada (pois não sistematicamente integrada) destes. Ora, não se afigura aceitável excluir da apreciação da primeira questão de constitucionalidade colocada (referente à redução de trabalhadores para a Administração Pública Regional operada pelas normas contidas nos n.ºs 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e n.ºs 8 e 9 do artigo 59.º e artigo 88.º da Lei n.º 66-B/2012) a eventual violação do artigo 112.º da Constituição. Aceite, pelo Tribunal, a legitimidade dos requerentes para apreciação da constitucionalidade das normas que integravam o primeiro pedido, por estar em causa um direito da região, não faz nenhum sentido eliminar da sua apreciação a conformidade com qualquer norma ou princípio constitucional concreto com fundamento em que “a sua alegada violação não integra (…) a causa de pedir a que se encontra constitucionalmente subordinada a legitimidade processual para a fiscalização abstracta dos deputados regionais” (n.º 5 do acórdão).
Por outro lado, a falta de legitimidade para a segunda questão de constitucionalidade colocada não se alicerça na insusceptibilidade de os artigos 6.º, 12.º, 13.º e 64.º da Constituição poderem ser invocados por deputados regionais em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade (n.º 7 do acórdão). É outro o seu fundamento. A ilegitimidade dos requerentes para formularem o pedido de fiscalização da constitucionalidade do artigo 149.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012, resulta da circunstância de este pedido se reportar ao direito de protecção da saúde, direito fundamental, de âmbito nacional, não circunscrito a nenhuma região autónoma (artigo 64.º da Constituição). A defesa de um tal direito cabe aos representantes dos órgãos de soberania e restantes titulares de cargos públicos identificados nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição. Não configurando o direito invocado como violado pela norma cuja apreciação é pedida um direito da região, falece legitimidade aos deputados da Assembleia Legislativa Regional para o fazer valer, designadamente através de formulação de pedido ao Tribunal Constitucional de fiscalização abstracta de constitucionalidade da referida norma.
Deste modo, concluindo, embora, por um resultado decisório convergente com o decidido nas alíneas a), b) e c) da decisão, não acompanhei a fundamentação constante dos n.ºs 5 e 7 do acórdão. Toda a actividade jurisdicional pressupõe vinculação ao pedido, mas liberdade na aplicação do direito (artigo 51.º, n.º 5, da LTC), sendo que o reconhecimento da autonomia da Justiça Constitucional não legitima um modelo processual inconciliável com a natureza jurisdicional da actividade que é confiada ao Tribunal Constitucional.
3. Discordo também da fundamentação relativa à alínea b) da decisão.
A Constituição consagra e protege a existência de um poder executivo próprio regional, relacionado com a existência de uma administração regional autónoma (artigo 227.º, n.º 1, alínea g). No entanto, não resulta da Constituição uma delimitação precisa das matérias abrangidas por esse poder executivo. Caberá à administração regional a execução dos decretos legislativos regionais, nomeadamente os que procedam à regulação das leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar (artigos 227.º, n.º 1, alíneas a) a d), e 232.º, n.º 1) – pois, logicamente, as leis regionais hão-de ser executadas pela administração regional. A autonomia administrativa regional não coincide, contudo, com a autonomia legislativa. Nada impede que a competência para a execução de normas legais, mesmo que emanadas dos órgãos de soberania, seja atribuída, em regra ou supletivamente, aos órgãos e serviços regionais – salvo quando o acto legislativo disponha de outra forma ou esteja em causa a soberania.
O conjunto de normas que é objecto de fiscalização procede à fixação de metas, de certas proibições, bem como obrigações de reporte de informação à República e sanções pelo incumprimento destas regras. A concretização das metas e das excepções às proibições é deixada aos órgãos de governo regional, pelo que se encontra salvaguardado um espaço de conformação próprio do poder executivo regional. Assim, não se verifica uma violação da Constituição.
Não faz, no entanto, sentido chegar a esta conclusão fazendo apelo a um “núcleo” ou “conteúdo mínimo” do poder executivo regional (como faz o Acórdão nos n.ºs 13-14), que não se encontra constitucionalmente definido. A questão que é colocada no pedido não se prende com a existência de uma “reserva de administração” do governo regional – que teria de ser aferida face à função legislativa exercida pelos órgãos de soberania ou pelas assembleias legislativas das regiões – nem na violação de um “núcleo mínimo” da autonomia administrativa regional, mas sim com a violação do poder executivo próprio do governo regional relativamente à administração pública regional. A Constituição não protege um “conteúdo essencial” da autonomia, como se estivéssemos perante um direito fundamental (artigo 18.º, n.º 3), mas os poderes próprios das regiões. A delimitação desses poderes resulta da interpretação sistemática e integrada da Constituição.
4. Votei no sentido da inconstitucionalidade do artigo 188.º, n.º 3, da Lei n.º 66-B/2012, por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição, acompanhando a argumentação constante das declarações de voto dos Conselheiro João Cura Mariano e da Conselheira Catarina Sarmento e Castro no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 412/2012, relativo a uma norma em tudo idêntica à que se encontra sub judice.
5. Votei igualmente no sentido da inconstitucionalidade do artigo 262.º da Lei n.º 66-B/2012, reiterando a declaração de voto relativa ao Acórdão n.º 568/2012, quando votei pela inconstitucionalidade de uma norma em tudo idêntica à agora trazida à apreciação do Tribunal Constitucional, por violação dos artigos 227.°, n.° 1, alínea j), e 229.º, n.º 3, da Constituição.
Maria de Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencida quanto à alínea b) da decisão, na medida em que o Tribunal não declarou a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 1 e 2, na parte respeitante às administrações regionais, e 8 e 9 do artigo 59.º; e no artigo 68.º da Lei n.º 66-B/2012.
A meu ver, tais normas constituem uma interferência lesiva, e constitucionalmente inadmissível, da autonomia administrativa regional, ao fixarem os termos exactos e a concreta forma de alcançar os objectivos de diminuição da despesa pública e do défice orçamental, violando o artigo 227.º, n.º 1, alínea g), da Constituição.
Ao contrário do que sustenta o Acórdão, entendo que apenas o limite geral da despesa pública - os fins -, e não já os meios concretos para o atingir – a concreta exigência da redução anual de efectivos em 2% e da redução do número de contratos de trabalho a termo resolutivo -, poderiam ser fixados, sem ofensa à autonomia regional.
Não se negando que o esforço que é pedido na diminuição das despesa pública a todos deve onerar - assim também se honrando o princípio da solidariedade e da unidade nacional -, entendo, todavia, que a autonomia administrativa das regiões autónomas constitucionalmente consagrada requer que possam as regiões manter uma suficiente margem de liberdade na configuração do modo como contribuem para os objectivos de diminuição da despesa pública e do défice orçamental.
Na solução das normas questionadas, o legislador nacional fixa os termos exactos - de modo quantitativamente determinado - e a forma concreta para regiões autónomas alcançarem os objectivos em causa, sem lhes deixar margem de liberdade atendível e relevante na definição das medidas concretas de poupança. Ora, o especial momento e o contexto de imposição destas medidas, bem como os objectivos traçados, não podem justificar o atropelo da autonomia regional, princípio estruturante do Estado.
2. Vencida quanto à alínea c), por entender dever ter sido declarada a ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas insertas no artigo 149.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 66-B/2012.
Em meu entender, as normas em apreciação violam o artigo 12.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores (princípio da solidariedade nacional). Este artigo determina, no seu n.º 1, que, nos termos da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, a Região tem o direito de ser compensada financeiramente pelos custos derivados da insularidade, designadamente, no que respeita à saúde. No n.º 2 define a obrigação de o Estado assegurar os encargos para garantir a universalidade das prestações sociais quando não seja possível assegurá-las na região.
Ao contrário do sustentado no Acórdão, da leitura das normas e do seu contexto não resulta apenas que as prestações de serviços de saúde a cidadãos portugueses com residência fiscal nas regiões autónomas, por parte do Serviço Nacional de Saúde, deverão ser precedidas de um número de compromisso, constante de nota de compra ou documento equivalente. As normas não se limitam a consagrar procedimentos administrativos e contabilísticos. Pelo contrário, delas se extrai uma verdadeira transferência de responsabilidade financeira: o Estado transfere para a região autónoma a responsabilidade pelo pagamento das despesas realizadas pelo Serviço Nacional de Saúde na prestação de cuidados médicos prestados a cidadãos portugueses com residência fiscal nas regiões autónomas (que aí se desloquem quando referenciados pelos serviços regionais por inexistência de cuidado apropriado na região, por estarem de passagem ou a viver temporariamente no continente).
Determinando as normas em apreço que tais encargos sejam suportados pela região e não pelo Estado, considera-se violado o artigo 12.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
3. Vencida, ainda, quanto à alínea e) da decisão - na qual o Tribunal decidiu não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei n.º 66-B/2012 (que faz reverter integralmente para o Orçamento do Estado a sobretaxa extraordinária prevista no artigo 187.º) -, pelos fundamentos constantes da declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 412/2012.
Catarina Sarmento e Castro