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Proc. nº 470/2000 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A ..., M..., J..., P... e E... instauraram, junto do Tribunal Central Administrativo, recurso contencioso do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que indeferiu o pedido de posicionamento no escalão 880 da categoria de reverificador assessor, formulado em virtude de funcionários ulteriormente promovidos terem alcançado tal escalão, quando os requerentes, promovidos em primeiro lugar, apenas se encontrarem no escalão 830. Os recorrentes sustentaram a violação do princípio da igualdade.
O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 23 de Março de
2000, considerou ter havido violação do princípio da imparcialidade, uma vez que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (entidade ad quem no recurso hierárquico oportunamente interposto pelos ora recorrentes) havia emitido parecer sobre a informação de 6 de Outubro de 1997, que continha já uma proposta de decisão. O Tribunal Central Administrativo considerou, por outro lado, que a interpretação e aplicação das normas do artigo 27º, nº 3, do Decreto-Lei nº
184/89, de 2 de Junho, e do artigo 17º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº
353-A/89, de 16 de Outubro, tal como efectuado pela autoridade recorrida (no sentido de permitir que os melhores classificados do concurso mantenham o escalão 830 e os piores classificados ascendam ao escalão 880), viola o princípio da igualdade, e, nomeadamente, os artigos 13º, 47º, nº 2, e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição, na medida em que permite a discriminação dos recorrentes em relação a outros candidatos menos bem posicionados no mesmo concurso, colocando os três últimos num escalão superior.
Consequentemente, o Tribunal Central Administrativo concedeu provimento ao recurso.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório do acórdão de 23 de Março de 2000, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas no artigo 27º, nº
3, do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, e no artigo 17º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, normas desaplicadas com fundamento em inconstitucionalidade pela decisão recorrida.
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público alegou, tirando as seguintes conclusões:
1º - Não preclude o interesse processual na apreciação de recurso, fundado na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, a circunstância de a decisão recorrida ter assentado também num fundamento alternativo - estranho à questão de constitucionalidade suscitada - mas cuja procedência não pode ainda considerar-se definitivamente assente, por ser admissível - e estar interposto - recurso ordinário para o Supremo Tribunal Administrativo.
2º - É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a interpretação normativa dos preceitos atinentes à promoção e progressão na carreira dos funcionários públicos e definição dos respectivos escalões remuneratórios que implique a atribuição aos que foram prioritariamente graduados em determinado concurso - e imediatamente promovidos à categoria superior - de vencimento inferior ao que vem a ser atribuído aos funcionários que, embora aprovados naquele concurso, ficaram posicionados inicialmente fora das vagas postas a concurso, permanecendo na mesma categoria e só ulteriormente vindo a ser promovidos.
3º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade expresso na decisão recorrida.
Por seu turno, os recorridos contra-alegaram, sustentando que, no acórdão recorrido, não houve recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade, tendo o tribunal procedido apenas à 'compatibilização com a Constituição' dos preceitos referidos. Os recorridos pronunciaram-se, concomitantemente, pela confirmação do juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal a quo.
Nos termos do artigo 79º-A da Lei do Tribunal Constitucional foi determinada a intervenção do Plenário.
2. Cumpre decidir.
II Fundamentação
3. A decisão recorrida nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade apresenta fundamentações alternativas. Com efeito, o Tribunal Central Administrativo considerou ter sido violado o princípio da imparcialidade e, por outro lado, entendeu que as normas do artigo 27º, nº 3, do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, e do artigo 17º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, violam o princípio da igualdade.
O presente recurso de constitucionalidade apenas se reporta ao fundamento referido em segundo lugar.
Porém, o recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Tal recurso não tem, como pressuposto processual, a exigência do esgotamento dos recursos ordinários. Nessa medida, e porque já foi interposto recurso para a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (cuja decisão não
é, naturalmente, possível antever neste momento), o conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade mantém utilidade, pois, caso o Supremo Tribunal Administrativo venha a revogar o acórdão de 30 de Março de 2000, na parte em que considera haver violação do princípio da imparcialidade, o julgamento de inconstitucionalidade das normas em apreciação constante desse aresto consubstanciará então o único fundamento da decisão.
Por outro lado, a decisão recorrida recusou efectivamente a aplicação de uma dada interpretação dos artigos mencionados com fundamento em inconstitucionalidade. A interpretação recusada foi a subjacente ao despacho recorrido. Tal não impede, porém, que, como aconteceu in casu, o tribunal procure uma interpretação dos mesmos preceitos ainda compatível com a Constituição. Não assiste, portanto, razão aos recorridos quando afirmam que o Tribunal Central Administrativo não recusou a aplicação de qualquer norma.
Tomar-se-á, pois, conhecimento do objecto do presente recurso.
5. Os preceitos impugnados têm a seguinte redacção: Artigo 27º Acesso
(...)
3 - A promoção é a mudança para a categoria seguinte da respectiva carreira e opera-se para escalão a que corresponda remuneração base imediatamente superior.
(...)
Artigo 17º Escalão de promoção
1 - A promoção a categoria superior da respectiva carreira faz-se da seguinte forma:
(...) b) Para o escalão a que na estrutura remuneratória da categoria para a qual se faz a promoção corresponde o índice superior mais aproximado, se o funcionário vier já auferindo remuneração igual ou superior à do escalão 1.
2 - (...)
O Tribunal Central Administrativo considerou que tais preceitos violam o princípio da igualdade, quando interpretados literalmente, no sentido de permitirem que funcionários classificados em primeiro lugar no concurso para uma determinada categoria profissional (reverificador assessor) tenham um escalão remuneratório inferior àquele que é atribuído aos concorrentes pior classificados no mesmo concurso quando ascendam, posteriormente, à mesma categoria profissional de reverificador assessor.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 254/2000, apreciou uma questão de constitucionalidade com alguma semelhança com a dos presentes autos. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional procedeu à apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 204/91, de 7 de Junho, e 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 61/92, de 15 de Abril, na interpretação segundo a qual tais normas apenas se aplicariam a funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, permitindo que funcionários com menor antiguidade na categoria auferissem remuneração superior à de funcionários da mesma categoria promovidos antes daquela data.
Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional invocou jurisprudência anterior, sublinhando que o princípio da igualdade, impondo que a trabalho igual corresponda salário igual, proíbe diferenciações desprovidas de fundamento racional que consubstanciem verdadeiras discriminações arbitrárias sem qualquer relação com a natureza e com as características do trabalho prestado pelos funcionários em causa nem com as suas capacidades e qualificações profissionais.
Em consequência, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas então em apreciação, por violação dos artigos 59º, nº 1, alínea a), e 13º da Constituição. Também no Acórdão nº 584/98 (D.R., II Série, de30 de Março de 1999), o Tribunal julgou inconstitucional, numa situação bastante semelhante à dos autos, a norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 347/91, de 19 de Setembro, por violação do artigo 53º, nº 1, alínea a), da Constituição, 'enquanto restringe o descongelamento na progressão nos escalões das categorias e carreiras do pessoal docente do ensino superior e de investigação, mas tão-só na medida em que o limite temporal de antiguidade na categoria, ali estipulado para a primeira e segunda fases do descongelamento, implique que funcionários mais antigos na mesma categoria passem a auferir uma remuneração inferior à de outros, de menor antiguidade e idênticas qualificações'.
6. Nos presentes autos, a diferença entre o escalão remuneratório dos recorrentes e o escalão remuneratório dos demais funcionários que ascenderam
à mesma categoria profissional posteriormente também não assenta na natureza do trabalho prestado ou nas qualificações profissionais respectivas.
Na verdade, os recorrentes foram classificados nos primeiros lugares num concurso para o preenchimento de vagas de reverificador assessor, ascendendo então, com a promoção, ao escalão remuneratório 830. Outros concorrentes, posicionados inicialmente fora das vagas postas a concurso, ascenderam, na categoria de reverificador, ao escalão 830, por mero decurso do tempo. Porque no prazo de validade do concurso abriram novas vagas para a categoria de reverificador assessor, os concorrentes posicionados inicialmente fora das vagas postas a concurso ascenderam, finalmente, à referida categoria profissional, sendo-lhes atribuído então, segundo os critérios legais, o escalão remuneratório
880, ao passo que os concorrentes melhor classificados e já promovidos continuaram no escalão 830.
Ora, as dimensões normativas que permitem tal solução numa situação de concurso em que os candidatos se apresentaram posicionados no mesmo escalão
(interpretação dos preceitos que constituem objecto do presente recurso, segundo a qual a promoção para uma categoria profissional superior, mediante concurso, implicará o posicionamento dos promovidos ulteriormente em escalão remuneratório superior ao dos candidatos do mesmo concurso melhor classificados que, por terem ascendido em primeiro lugar à categoria profissional, ficaram num escalão mais baixo) emanam, apenas, do funcionamento contingente e acidental das regras que regulam a progressão na carreira e nos escalões remuneratórios, as quais fixam a antiguidade dentro das categorias e transpõem a antiguidade obtida para o escalão a obter nas novas categorias. Isto gera, em concreto, um tratamento iníquo (como a própria Administração reconhece) e discriminatório dos concorrentes melhor classificados no mesmo concurso. De acordo com as dimensões normativas em análise, os concorrentes melhor classificados no concurso são prejudicados, no que respeita à remuneração, em virtude de terem ascendido à categoria profissional de reverificador assessor, devido ao seu mérito, antes dos concorrentes do mesmo concurso pior classificados, porque os outros vieram a ascender à nova categoria mais tarde, depois de terem subido de escalão na primeira categoria.
Tais dimensões normativas retiradas dos preceitos sub judicio violam claramente o princípio da igualdade expresso no artigo 13º, e mais especificamente no que ao caso se refere, nos artigos 47º, nº 2 e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição, já que permitem que funcionários colocados na categoria de promoção em escalão idêntico ao de outros (e porventura com antiguidade na carreira idêntica ou maior) e melhor classificados venham, por força da inércia do sistema, obter piores remunerações na categoria a que ascenderam. Assim, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida será mantido.
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, no sentido de que são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade [consagrado nos artigos 13º, 47º, nº 2 e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição], as normas dos artigos 27º, nº 3, do Decreto-Lei nº 184/89, e 17º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 353-A/89, interpretadas no sentido da atribuição aos funcionários melhor classificados num concurso para progressão na carreira, imediatamente promovidos à categoria superior, de vencimento inferior ao que vem a ser atribuído aos outros funcionários que ficaram inicialmente posicionados fora das vagas postas a concurso e que, por isso, permaneceram na categoria inferior, só ulteriormente vindo a ser promovidos, no âmbito do mesmo concurso, a que todos se apresentaram posicionados no mesmo escalão.
Lisboa, 10 de Outubro de 2001 Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa