Imprimir acórdão
Processo n.º 671/2013
2ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclamou, em 18 de junho de 2013 (fls. 1 a 6), ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da LTC, do despacho proferido pelo Juiz-Relator junto da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 28 de maio de 2013 (fls. 81), que rejeitou recurso de constitucionalidade por si interposto, em 27 de maio de 2013 (fls. 66 a 72), com fundamento na falta de aplicação efetiva das normas que constituem objeto do recurso então interposto.
2. Os termos da reclamação deduzida, que ora se resumem, são os seguintes:
«(…)
A Inconformidade do ora signatário perante o despacho ora Reclamado, tem como elemento essencial o facto de o Recurso não ter sido admitido, na razão do mesmo não encaixar na previsão do Art.º 70, n.º 1 da LOFPTC (Lei 28/82 de 15 de novembro);
Quando,
Da leitura do mesmo, percetível se torna que, tudo efetivamente entronca na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (aprovada pela Lei n.º 28/82 de 15 de novembro);
Pois,
Tal interpretação da norma/princípio da especialidade, foi nos presentes autos, efetivamente levantada/suscitada em momento oportuno e, relativamente à qual, continua a não o aqui Recorrente a não conformar-se;
Estando pois o mesmo, face à situação de que é inequívoco que nos presentes autos;
Se encontram já para si irremediável e completamente esgotados, todos os meios ou recursos jurisdicionais ordinários, que lhe possibilite reagir contra tal decisão/interpretação;
E cuja inconstitucionalidade,
Está inabalavelmente persuadida, tudo resultando numa clara e inequívoca desconformidade com a intenção do legislador constitucional;
Veja-se pois,
Que resulta dos autos uma inexplicável preterição da aplicação do princípio da especialidade (Artº 16 da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto e Artº. 7 da Lei nº, 65/2003 de 23 de agosto);
E no que concerne a esta questão em que ora se baseia a inconformidade do Arguido/Recorrente, refira-se que de todo não se vislumbra qualquer justificação, para que 'in casu', tenha reconhecidamente sido preterida a aplicação de tal princípio;
O qual,
Efetivamente vigora no âmbito da aplicação do Mandado de Detenção Europeu e, na sequência de pedido de cooperação internacional em matéria penal (Artº. 16 da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto e Artº. 7 da Lei nº 65/2003 de 23 de agosto);
E não se diga,
Que pela ocorrência da Audiência de julgamento, bem como, do cúmulo jurídico de penas ali efetuado, onde o aqui Recorrente nada invocou quanto à ora pretendida aplicação do princípio da especialidade, tudo faça resultar com que o mesmo se tenha conformado com tais desideratos;
Ou que,
Tais 'normas/interpretações', não foram aplicadas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrido;
Desde logo,
Porque nada nos garante, que o mesmo tinha sequer à data conhecimento de tal aplicação legislativa e, de tal advertência, obrigatoriamente sempre deveria oficiosamente ter sido dado a conhecer pelo Tribunal 'a quo';
O que,
De todo e em momento algum aconteceu, vendo o mesmo gravemente prejudicada e/ou alterada a sua situação jurídico/penal;
Nesta consonância,
E porque tal decisão do Tribunal “a quo' é obviamente suscetível de recurso;
E,
Por forma a que melhor se possa obedecer ao princípio do contraditório;
Apoiando-se o arguido ora recorrente, no meio processual adequado para cumprir essa vontade de reapreciação judiciária, sob pena de uma inevitável e consequente violação do Art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Para mais,
Atendendo ao facto de em momento processual algum, ter-se fundamentado de uma forma suficientemente ponderada, clara e específica, a determinação da preterição da aplicação do princípio da especialidade, violando com isso o disposto no Artº. 16 da Lei nº 144/99 de 31 de agosto e Artº. 7 da Lei n'. 65/2003 de 23 de agosto, tudo, também redunda numa clara nulidade (Artº 379º, nº 1, al. c) do C.P.P.);
E nesta medida, sempre seria desejável para o ora Recorrente, que a decisão tomada, não se imponha só em razão da autoridade do órgão que a tomou, mas acima de tudo pela sua racionalidade, não podendo a mesma fundamentação ser parca, ao ponto que não habilite um Tribunal Superior a uma avaliação cabal e segura do porquê da decisão e do seu suporte 'lógico-mental', pois só desta forma se asseguram as garantias constitucionais de defesa;
Pelo que,
Sublinhe-se, dado o 'deficit' de fundamentação, entende o recorrente que o recorrido Acórdão violou o disposto no n.º 1 do art.º 379º., alínea c) do Código de Processo Penal e, os artº.(s) 18º, 32º. e 205º. nº. 1 da Constituição da República Portuguesa;
Não bastasse, o inequívoco desrespeito pelos preceitos constitucionais atrás elencados, designadamente, o Princípio da Concordância Prática e, a não consagração no nosso sistema judicial, “mui” usual sim, no sistema anglo-saxónico;
Continuando pois o aqui Recorrente inconformado com a decisão proferida pelos Tribunais 'a quo', os quais, decidiram julgar conforme a fundamentação utilizada no Acórdão proferido pelo Tribunal da 1ª. Instância;
Estando em tempo e para tal tendo legitimidade (Cfr. al. b) do nº 1 do art.º 72º da Lei do T. Constitucional);
E,
Mesmo entendendo-se em concreto que tal questão de constitucionalidade, apenas é suscitada na sua plenitude, no presente requerimento;
Atente-se à uniforme jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que, excecionalmente admite o recurso dispensando o interessado de a ter suscitado durante o processo, até à decisão de que se recorre;
Porquanto se afigura não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquela norma ao concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão (da inconstitucionalidade) antes da decisão;
Termos em que,
Observados que estão os formalismos legais para tal previstos, porque para tal a recorrente tem legitimidade, está em tempo e representada por advogado (cfr. artºs 72º nº 1 al. b), 75º e 83º da Lei do T. Constitucional),
Requer-se a Vª.(s) Excª.(s), que desde já considerem validamente interposto o presente recurso da decisão deste Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, seguindo-se os ulteriores termos, sendo certo que as respetivas alegações que o motivarão serão produzidas já no Tribunal 'ad quem', de acordo com o disposto no artigo 79º da Lei do Tribunal Constitucional e no prazo aí previsto.» (fls. 1 a 6)
3. Em sede de vista, o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou-se nos termos que ora se resumem:
«(…)
6. O arguido veio, então, interpor recurso deste último Acórdão do STJ para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 74-80 dos autos), invocando, designadamente (cfr. fls. 76 dos autos):
“Pretende-se ver apreciada a constitucionalidade da norma constante no Art. 16 da Lei nº 144/99 de 31 de agosto e Art. 7º da Lei nº 65/2003 de 23 de agosto (Princípio da Especialidade), na interpretação seguida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ourém/Supremo Tribunal de Justiça.”
7. O próprio arguido reconhece, porém, que, na altura própria, não invocou o princípio da especialidade, que agora veio invocar (cfr. fls. 76-77 dos autos) (destaques do signatário):
“E não se diga, que pela ocorrência da Audiência de julgamento, bem como, do cúmulo jurídico de penas ali efetuado, onde o aqui recorrente nada invocou quanto à ora pretendida aplicação do princípio da especialidade, tudo, faça resultar com que o mesmo se tenha conformado com tais desideratos.
Desde logo, porque nada nos garante, que o mesmo tinha sequer à data conhecimento de tal aplicação legislativa e, de tal advertência, obrigatoriamente sempre deveria oficiosamente ter sido dado a conhecer pelo Tribunal «a quo».
O que, de todo e em momento algum aconteceu, vendo o mesmo gravemente prejudicado e/ou alterada a sua situação jurídico/penal.
Nesta consonância, e porque tal decisão do Tribunal «a quo» é obviamente suscetível de recurso;
E, por forma a que melhor se possa obedecer ao princípio do contraditório
Apoia-se ora o aqui arguido/recorrente, no meio processual adequado para cumprir essa vontade de reapreciação judiciária, sob pena de uma inevitável e consequente violação do Art. 32º, da Constituição da República Portuguesa.”
8. O Ilustre Conselheiro Relator não aceitou, porém, o recurso de constitucionalidade interposto, por decisão de 28 de maio de 2013, referindo, a este propósito (cfr. fls. 81 dos autos) (destaques do signatário):
“A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC para que seja apreciada a inconstitucionalidade das normas «constantes no artigo 16º da Lei nº 144/99, de 31 de agosto e artigo 7º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto «princípio da especialidade».
Porém, estas normas não foram aplicadas no acórdão recorrido, que não se pronunciou sobre a violação ou não do princípio da especialidade, mas apenas decidiu que tal questão estava definitivamente estabilizada no processo por decisão anterior transitada em julgado; as referidas normas não constituíram, deste modo, fundamento da decisão.
Nesta conformidade, não tendo sido aplicadas as normas arguidas de inconstitucionalidade, o julgamento por parte do TC não teria finalidade útil, pois o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer de uma questão de constitucionalidade quando possa exercer influência no julgamento da causa.
Não admito, assim, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, os Acórdãos do T.C. nºs 68/99, 383/2003 e 133/2009, respetivamente, de 03.02.1999, 15.07.2003 e 12.03.2009 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).”
9. O interessado reclamou deste despacho de não admissão de recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 1-6 dos autos).
Contudo, sem qualquer razão.
10. É certo que o ora reclamante vem invocar, vagamente, na sua reclamação (cfr. fls. 1-2 dos autos):
“Pois, tal interpretação da norma/princípio da especialidade, foi nos presentes autos, efetivamente levantada/suscitada em momento oportuno e, relativamente à qual, continua a não o aqui Recorrente a não conformar-se.”
Não indica, porém, onde, nem quando o fez.
11. Aliás, um pouco mais adiante, acaba novamente por reconhecer (cfr. fls. 3 dos autos) (destaques do signatário):
“E não se diga, que pela ocorrência da Audiência de julgamento, bem como, do cúmulo jurídico de penas ali efetuado, onde o aqui Recorrente nada invocou quanto à ora pretendida aplicação do princípio da especialidade, tudo faça resultar com que o mesmo se tenha conformado com tais desideratos;
Ou que, tais «normas/interpretações, não foram aplicadas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrido;
Desde logo, porque nada nos garante, que o mesmo tinha sequer à data conhecimento de tal aplicação legislativa e, de tal advertência, obrigatoriamente sempre deveria oficiosamente ter sido dado a conhecer pelo Tribunal «a quo»;
O que, de todo e em momento algum aconteceu, vendo o mesmo gravemente prejudicada e/ou alterada a sua situação jurídico/penal.”
12. E, se dúvidas houvesse sobre este ponto, o ora reclamante acaba por definitivamente as desfazer, quando afirma, com alguma candura (cfr. fls. 5 dos autos) (destaques do signatário):
“E, mesmo entendendo-se em concreto que tal questão de constitucionalidade, apenas é suscitada na sua plenitude, no presente requerimento;
Atente-se à uniforme jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que, excecionalmente admite o recurso dispensando o interessado de a ter suscitado durante o processo, até à decisão de que se recorre;
Porquanto se afigura não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquela norma em concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão (da inconstitucionalidade) antes da decisão;”
13. Ora, o problema é, justamente, esse.
Por um lado, o ora reclamante não suscitou previamente, perante o tribunal recorrido – o Supremo Tribunal de Justiça, a questão de constitucionalidade que agora pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, e deveria tê-lo, naturalmente, feito.
No Acórdão de 17 de abril de 2013, do Supremo Tribunal de Justiça, apenas se encontra, com efeito, a seguinte referência, retirada das alegações de recurso do arguido (cfr. fls. 13 dos autos):
“Noutra consonância, o despacho recorrido, e no âmbito da Cooperação Judiciária Internacional do cumprimento do Mandado de Detenção Europeu, não fez a melhor justiça na aplicação do Direito, ao preterir a aplicação do Princípio da Especialidade previsto no Art. 16 da Lei nº 144/99 de 31 de agosto, e art. 7 da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, apoiando-se assim o recorrente, no meio processual adequado para cumprir essa vontade de reapreciação judiciária, sob pena de uma inevitável e consequente violação do Art. 32º da Constituição República Portuguesa”.
Ora, dificilmente se poderá entender, que uma tal observação constitua a formulação de uma questão de constitucionalidade normativa, de que o tribunal de recurso se devesse ter ocupado.
14. Por outro lado, realmente, as normas postas em causa pelo recorrente - normas «constantes no artigo 16º da Lei nº 144/99, de 31 de agosto e artigo 7º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto «princípio da especialidade» - não integraram a ratio decidendi da decisão recorrida, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
15. Crê-se, por isso, que assiste inteira razão ao Ilustre Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, para decidir, como decidiu, não admitindo o recurso de constitucionalidade interposto pelo arguido.
A presente reclamação por não admissão de recurso não merece, assim, no entender deste Ministério Público, provimento.» (fls. 85 a 90).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Antes de mais, importa notar que não se tomarão em conta as considerações tecidas pelo Ministério Público acerca de uma alegada falta de suscitação processualmente adequada de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, na medida em que a decisão reclamada apenas se fundou na falta de aplicação efetiva da mesma, conforme imposto pelo artigo 79º-C da LTC. Ora, na medida em que – conforme infra melhor se demonstrará – se corrobora aquele juízo, torna-se processualmente inútil fundamentar a recusa de admissão nessa eventual preterição de um ónus de prévia e adequada suscitação (cfr. artigo 72º, n.º 2, da LTC).
Evidentemente, caso este Tribunal viesse a decidir no sentido do não conhecimento fundado no argumento da falta de suscitação processualmente adequada, então, ter-se-ia proferido despacho, ao abrigo dos artigos 654º, n.º 2, e 655º, n.º 2, ambos do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aplicáveis ex vi artigo 69º da LTC, de modo a que o reclamante tivesse oportunidade de se pronunciar sobre este novo fundamento de não conhecimento, isto porque aquele não teria sido ponderado, no momento da dedução de reclamação, em função de aquele não ter sido considerado pelo despacho reclamado. Contudo, como este Tribunal nem sequer equacionou o referido fundamento, não se procedeu à referida notificação, por esta configurar um ato processualmente inútil.
5. Feito este esclarecimento, resta apenas registar que, após análise atenta quer do acórdão proferido, pela 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 17 de abril de 2013 (fls. 10 a 68), quer daquele relativo ao pedido de aclaração, proferido pelo mesmo Tribunal e Secção, se verifica que nenhuma daquelas decisões jurisdicionais aplicou qualquer interpretação normativa extraída da conjugação entre o artigo 16º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e o artigo 7º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto. Na medida em que o Tribunal Constitucional só pode apreciar recursos relativos a normas ou interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, mais não resta do que concluir pela justeza da decisão reclamada, confirmando-a.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 10 de outubro de 2013. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.