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Processo n.º 117/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorridas A. Limited e B., foi interposto recurso, a título obrigatório, em cumprimento do artigo 280º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão proferido pela 4ª Secção do Tribunal de Relação do Porto, em 02 de novembro de 2011 (fls. 4704 a 4727-verso), que desaplicou a norma extraída do artigo 14º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado, como Anexo II, pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do direito fundamental a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20º da CRP.
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1.ª) Vem interposto, pelo Ministério Público, recurso, obrigatório, do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2 de novembro de 2011, quanto à recusa de aplicação das normas do artigo 14º, nº 1, do DL n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do nº 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo artigo 1º do Decreto Lei nº 322/91, de 26 de agosto, com fundamento em inconstitucionalidade material, por alegadamente estar “em colisão clara e flagrante com a norma constitucional que garante a todos o direito a um processo equitativo, nomeadamente o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, no sentido único que decorre do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais”.
2.ª) Porém, a decisão recorrida assenta na equiparação entre “autoridades administrativas” e “processos de contraordenação” em relação aos “tribunais” e ao “processo judicial”, a qual não é “constitucionalmente adequada”, pois, por um lado, não tem correspondência no âmbito de aplicação dos enunciados constitucionais convocados pelo caso e, por outro, é redundante, face à proteção já conferida ao arguido punido em processo de contraordenação, por via do acesso, que lhe é sempre facultado, por intermédio da impugnação da decisão condenatória, à via judicial.
3.ª) Com efeito, por definição, o regime normativo em apreço não infringe o direito (fundamental) ao “processo equitativo”, no sentido do artigo 20.º, n.º 4, da CRP, pois o âmbito subjetivo de proteção desta disposição respeita aos processos “judiciais” (e não aos processos de “contraordenação”) e, por outra parte, o seu âmbito objetivo de proteção tutela aspetos processuais (e não orgânicos, nomeadamente a composição da entidade decisória, como “independente e imparcial”).
4.ª) Finalmente, está garantido, nos termos gerais de direito, o acesso do arguido à via judicial, que corre termos no “tribunal” competente, sob a direção de um “juiz”, e assegura ao arguido “todas as garantias de defesa, incluindo o recurso” (CRP, arts. 32.º, n.º 1), como sucedeu no caso, pois, as questões controvertidas foram dirimidas, sucessivamente, pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, pelo (então) Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Grande Secção), pelo Tribunal da Relação do Porto e agora, por último, pelo Tribunal Constitucional.
5.ª) Em conclusão, o “regime normativo” constante do artigo 14º, nº 1, do DL n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do nº 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, não infringe o direito a um processo equitativo, garantido pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e, logo, não é de julgar materialmente inconstitucional, a esse título.» (fls. 673 a 681).
3. Devidamente notificada para o efeito, as recorridas vieram apresentar contra-alegações, que ora se resumem:
«(...)
6º
No entanto, apesar de ser dessa questão de constitucionalidade que vem interposto o recurso a que ora se responde, a verdade é que ao longo das suas Alegações de Recurso o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto não se pronúncia uma única vez sobre a compatibilidade desta cumulação de competências do Departamento de Jogos da SCML com o artigo 20.º, n.º 4 da CRP e com as exigências de um processo equitativo.
7º
Na verdade, e com o devido respeito, ao analisar-se o ponto 28 das Alegações de Recurso fica a nítida sensação de que o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto não terá compreendido corretamente qual o aspeto da estrutura e competências da SCML que revelou para o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.
8º
É que o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto parece reconduzir a questão de inconstitucionalidade ora em causa ao grau de autonomia existente entre os órgãos da SCML e o seu Departamento de Jogos, considerando, em aparente desacordo com o Tribunal da Relação do Porto, que a estrutura orgânica da SCML assegura uma autonomia orgânica suficiente para acautelar a estrutura acusatória dos processos de contraordenação instaurados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro.
9º
Apesar de, aparentemente, não ter compreendido corretamente o regime normativo que fundamenta o juízo de inconstitucionalidade do Tribunal da Relação do Porto, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto entende que aquele regime normativo “não infringe o direito (fundamental) ao “processo equitativo”, no sentido do artigo 20.º, n.º 4, da CRP, pois, por um lado, o âmbito subjetivo de proteção desta disposição respeita aos processos “judiciais” e não aos processos de “contraordenação” e, por outro lado, o âmbito objetivo tutela aspetos processuais e não orgânicos” (vd. ponto 24 das Alegações de Recurso).
10º
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto reconduz erroneamente a questão de constitucionalidade suscitada pelo Tribunal da Relação do Porto a uma questão assente numa pretensa equiparação acrítica entre “autoridades administrativas” e “processos de contraordenação”, por um lado, e “tribunais” e “processo judicial”, por outro, e reconduz o direito ao processo equitativo a questões meramente processuais e não substanciais.
11º
Apesar de admitir que a “dimensão orgânica do órgão decisor, caracterizada pela sua “independência” e “imparcialidade”, é crucial para efeitos de garantia do “processo justo”” (ponto 25 das Alegações de Recurso) e de admitir que “o objeto precípuo da proteção conferida [pelo artigo 20.º, n.º 4 da CRP] é o “processo justo”” (ponto 19 das Alegações de Recurso),
12º
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto incompreensível e injustificadamente considera que o direito à independência e imparcialidade do “julgador” se manifesta apenas na fase judicial do processo, estando, portanto, devidamente garantido pelo princípio constitucional do acesso ao direito (artigo 20.º, n.º 1 da CRP) e pela possibilidade de recurso jurisdicional das decisões de entidades administrativas em matéria contraordenacional (cf. ponto 29 das Alegações de Recurso).
13º
Ao percorrer este caminho interpretativo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto desconsidera por completo a inúmera jurisprudência e doutrina oportunamente citada pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão Recorrido e que justifica a aplicação do artigo 20.º, n.º 4 ao presente caso, perdendo, qualquer referência ao núcleo central da fundamentação do Acórdão Recorrido.
14º
Com o devido respeito, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto fundamenta o seu argumento de constitucionalidade das normas ora em causa em interpretações incorretas sobre o campo de aplicação do artigo 20.º da CRP e sobre o conteúdo do direito a um processo equitativo expressamente consagrado no seu n.º 4.
15º
Interpretações que não serão, certamente, alheias ao facto de para o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto não ser claro em que consistirá o direito constitucional a um processo equitativo no “sentido único que decorre do artigo 47.º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais” e de não ter procurado aclarar, sequer, esse ponto, como o próprio reconhece (vd. ponto 12 das Alegações de Recurso).
16º
Para demonstrar a improcedência do recurso interposto pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto importa, portanto, analisar o conteúdo e âmbito de aplicação do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da CRP, interpretado à luz do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (“CDFUE”), e do artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“CEDH”), conforme reiterado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (“TEDH”).
I. CONTEÚDO E ALCANCE DO DIREITO A UM PROCESSO EQUITATIVO
17º
O primeiro e principal argumento invocado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto para sustentar que o regime normativo em causa no presente recurso não é inconstitucional é, como vimos, o de considerar que, por um lado, “o âmbito subjetivo de proteção [do artigo 20.º n.º 4 da CRP] respeita aos processos “judiciais” e não aos processos de “contraordenação” e, por outro lado, o âmbito objetivo tutela aspetos processuais e não orgânicos.”” (vd. ponto 24 das Alegações de Recurso).
18º
Relativamente a esta questão, o próprio Acórdão Recorrido salienta que é jurisprudência assente deste Douto Tribunal Constitucional que o peso garantístico é menor no regime contraordenacional do que no domínio penal, citando, a título de exemplo, os Acórdãos n.º 659/2006 e n.º 461/2011.
19º
Não obstante, como realça também o Acórdão Recorrido, este Douto Tribunal Constitucional tem igualmente “sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contraordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (cf. Acórdão n.º 659/2006).
20º
Concluindo, e bem, o Acórdão Recorrido que “[o] regime garantístico «menor» que referimos, com relevância em determinados atos processuais, como tem sustentado o TC, não invalida no entanto que a estrutura fundamental que preside ao regime das contraordenações não tenha que garantir os mínimos de um processo equitativo” (cf. pág. 23 do Acórdão Recorrido).
(…)
28º
É que a “pedra de toque” para se compreender o juízo de inconstitucionalidade efetuado pelo Tribunal da Relação do Porto reside precisamente no sentido único do direito ao processo equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4 da CRP, interpretado à luz do segundo parágrafo do artigo 47.º da CDFUE e do artigo 6.º, n.º 1 da CEDH.
29º
Sentido único esse que o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto entendeu não ser, sequer, necessário esclarecer e analisar.
30º
Ora, o segundo parágrafo do artigo 47º da CDFUE estabelece que “[t]oda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.” (sublinhado nosso)
31º
Este artigo corresponde ao artigo 6º, n.º 1 da CEDH tal como expressamente referido nas Anotações relativas à CDFUE[1], e que dispõe o seguinte:
“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.” (sublinhados nossos)
32º
O n.º 3 do artigo 52º da CDFUE visa harmonizar a aplicação da CDFUE e da CEDH, consagrando a regra segundo a qual, na medida em que os direitos da CDFUE correspondam igualmente a direitos garantidos pela CEDH, o seu sentido e âmbito, incluindo as restrições admitidas, são iguais aos previstos pela CEDH.[2]
33º
No entanto, estabelece expressamente a possibilidade do direito da União Europeia conferir uma proteção mais ampla.
34º
Ora, para se perceber o sentido mínimo de proteção conferido pelo segundo parágrafo do artigo 47º da CDFUE, terá de se analisar a jurisprudência do TEDH sobre o âmbito de aplicação do artigo 6º, n.º 1 da CEDH, tal como, de resto, foi feito pelo Acórdão Recorrido.
35º
Assim, o conteúdo e âmbito de aplicação, quer do segundo parágrafo do artigo 47º da CDFUE, quer do artigo 6º, n.º 1 da CEDH - que, como vimos, constitui um mínimo de proteção reconhecido pela ordem jurídica da União Europeia - ajudam, de facto, a compreender o conteúdo do direito fundamental ao “processo equitativo” consagrado na CRP.
36º
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no ponto 14 das suas Alegações de Recurso, invocando a jurisprudência “assente e reiterada” do Tribunal Constitucional, cita um acórdão do Tribunal Constitucional em que este douto Tribunal refere que “na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (recte, no seu artigo 6º), nada se diz que não se contenha já na Constituição da República Portuguesa (máxime, no seu artigo 20º)”.
37º
Ora, precisamente por ser assim, importa, pois, explicitar qual o sentido e alcance do referido artigo 6º, n.º 1 da CEDH, nomeadamente, quanto à sua aplicação a processos de natureza contraordenacional, como os que estão em causa nos presentes autos.
38º
Não se poderia discordar mais da posição defendida pelo Recorrente quando este defende que do “âmbito subjetivo” de aplicação do 2º parágrafo, do artigo 47º da CDFUE e do artigo 6º, n.º1 da CEDH se exclui os processos de contraordenação tendentes à aplicação de coimas e sanções acessórias! – cf. ponto 18 das Alegações de Recurso.
39º
Não só tal não resulta da letra dos preceitos internacionais invocados, como, pelo contrário, tal vem sendo reiterado pela jurisprudência constante do TEDH.
40º
Senão vejamos, começando pelo “âmbito subjetivo” de aplicação das disposições em causa.
41º
O texto do artigo 6º, nº 1 da CEDH não deixa margens para dúvidas: aplica-se a (i) qualquer processo em que haja lugar a uma determinação dos direitos e obrigações de caráter civil e (ii) a qualquer acusação em matéria penal.
42º
Se nos centrarmos no parágrafo 2 do artigo 47º da CDFUE, constatamos que não existe qualquer referência a um tipo específico de causa a que o direito a um “processo equitativo” se aplique.
43º
Isto é, o princípio em causa, na conformação que lhe é dada pelo segundo parágrafo do artigo 47º da CDFFUE, aplica-se mesmo àquelas poucas causas que escapam ao âmbito de proteção do artigo 6º, n.º 1 da CEDH[3], sendo este, pois, um daqueles casos em que o direito da União confere uma proteção acrescida em relação à CEDH, tal como admitido no artigo 52º, n.º 3 da CDFUE.
44º
Facilmente se conclui, pelo exposto, que independentemente de se saber se os processos de contraordenação estão abrangidos pelo artigo 6º, n.º 1 da CEDH, sempre ficariam cobertos pelo artigo segundo parágrafo do 47º da CDFUE.
45º
Não obstante, iremos demonstrar que os processos de contraordenação - como aquele que está em causa nos presentes autos - constituem matéria penal, para efeitos da CEDH, pelo que devem respeitar, igualmente, o direito fundamental a um processo equitativo.
46º
As expressões “direitos e obrigações de caráter civil” e “acusação em matéria penal” constituem conceitos próprios da CEDH, desenvolvidos pela jurisprudência do TEDH, não tendo necessariamente de corresponder aos mesmos termos usados nos diversos ordenamentos nacionais.
47º
Assim, relativamente aos “direitos e obrigações de caráter civil” o que é relevante é o caráter do direito ou da obrigação em si mesma e não o caráter da legislação que a governa (civil, comercial, administrativa, etc).[4]
48º
Quanto à natureza penal da acusação – como bem referiu o Tribunal a quo, citando o acórdão Öztürk v. Alemanha – esta categoria inclui decisões em processos de contraordenação, como aqueles que estão em causa nestes autos.
49º
Tal conclusão resulta da aplicação ao caso concreto dos comumente designados “critérios Engel” (isto é, dos critérios de aplicação não cumulativa definidos pelo TEDH no acórdão Engel v. Holanda (1976) para qualificar como penal uma determinada acusação e que têm sido reiteradamente aplicados desde então).
50º
Segundo a jurisprudência do TEDH, o elemento que serve de ponto de partida à análise do Tribunal é a própria classificação da acusação em direito interno: caso o direito interno qualifique a acusação como “penal”, o TEDH aceitará essa qualificação[5]; se assim não for, o TEDH analisará os dois critérios mais importantes (também eles, não cumulativos): (i) o da natureza da infração e (ii) o da natureza e severidade da punição[6].
51º
Para a análise destes dois critérios importa determinar se a “ofensa” respeita ao público em geral e não a um grupo específico de pessoas (por forma a distinguir as meras sanções de natureza disciplinar, das sanções penais)[7]; em caso afirmativo, se tem uma natureza punitiva e/ou preventiva (por forma a distinguir as sanções meramente civis, das sanções penais)[8]; e se o nível da sanção e o estigma a ela associado é importante[9].
52º
Assim, quando uma sanção é imposta com o objetivo primordial de evitar futuras violações, quando a violação da norma é percebida como inerentemente “má” ou contrária aos valores partilhados numa sociedade democrática e quando a norma é dirigida a um número indeterminado de destinatários, então, essa norma tem uma natureza penal e está abrangida pelo artigo 6º da CEDH.
53º
Face à citada jurisprudência, e conforme foi já confirmado pelo Tribunal da Relação de Évora através do Acórdão proferido em 28 de outubro de 2008 no âmbito do Processo n.º 1441/08-1, “o conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da CEDH, conceito com autonomia que deve ser interpretado no sentido da Convenção, é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contraordenacional”.
54º
Cumpre ainda sublinhar que o texto normativo constante do artigo 6.º, n.º 1 da CEDH, à semelhança do normativo constante do segundo parágrafo do artigo 47º da CDFUE, não faz qualquer referência a uma “determinação” final ou a uma “acusação” em última instância, pelo que se terá forçosamente de concluir que o preceito respeita a todas as fases do processo.
55º
Nesse sentido, aliás, muito doutamente concluiu o Tribunal a quo, na linha da posição já defendida pelo TEDH[10], “afirmando que a garantia de um processo equitativo estende-se desde a primeira instância até ao Tribunal de última instância” (cf. pág. 24 do Acórdão Recorrido).
56º
Em idêntico sentido vão J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, quando defendem que “[t]odo o processo – desde o momento de impulso da ação até ao momento da execução – deve estar informado pelo princípio da equitatividade, através da exigência do processo equitativo (…)”[11] (realce nosso).
57º
Pelo que de acordo com a jurisprudência e doutrina citada sobre a matéria não restam dúvidas de que o conteúdo do direito ao processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da CRP deve ser aferido à luz do disposto no artigo 6.º, n.º 1 da CEDH e no segundo parágrafo do artigo 47.º da CDFUE que consagram como uma decorrência do processo equitativo a exigência de que a causa seja apreciada por um tribunal imparcial e independente.
58º
Resulta destes normativos que a independência e imparcialidade do Tribunal são princípios que conformam o processo equitativo e que, ao contrário do defendido pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, não estão apenas garantidos em sede do princípio constitucional de acesso ao direito consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP, mas em igual medida através do princípio constitucional do processo equitativo consagrado no artigo 20.º. n.º 4 da CRP.
59º
Ainda de acordo com a citada jurisprudência e doutrina, resulta claro que o direito ao processo equitativo se deve manifestar ao longo de todo o processo, pelo que, no âmbito do processo contraordenacional, isso significa que o processo deve ser equitativo não só na sua fase judicial, como também na sua fase administrativa.
60º
Sendo que a aplicação deste direito constitucionalmente consagrado aos processos contraordenacionais e, em concreto, à sua fase administrativa, obrigam a que o princípio da independência e imparcialidade dos tribunais se aplique sem reservas às autoridades administrativas que apreciam a causa em primeira instância.
61º
Como bem refere o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão Recorrido, “[é] totalmente inequívoco, tanto na jurisprudência como na dogmática que «a noção de tribunal independente», no sentido de uma entidade completamente independente dos sujeitos processuais envolvidos no litigio, para efeitos de garantia de um processo equitativo, impõe-se às entidades ou autoridades que têm o poder de aplicar contraordenações.” (cf. págs. 23 e 24 do Acórdão Recorrido).
(…)
II. DO JUÍZO DE INCONSTITUCIONALIDADE EFETUADO NO ACÓRDÃO RECORRIDO
73º
Como tal, e ao contrário do que é o entendimento do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, o que está em causa no presente recurso é saber se a forma como está estruturado o processo de contraordenação instaurado às Recorridas, na perspetiva da entidade que tem competência para o apreciar e julgar em primeira instância, permite salvaguardar o princípio do processo equitativo no que toca à independência e imparcialidade dessa entidade.
74º
Para tal é necessário analisar-se o normativo que regula o processo de contraordenação instaurado contra as Recorridas e as competências da entidade a quem coube a função de apreciar e julgar esse processo.
75º
Ora, nos termos da alínea h) do artigo 2.º dos Estatutos da SCML em vigor na data da instauração do processo contraordenacional que deu origem ao presente recurso, conforme aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, cabia à SCML assegurar a exploração de lotarias e do totobola e do totoloto, em regime de exclusivo para todo o território nacional, podendo, de igual modo, explorar quaisquer jogos autorizados ou concedidos nos termos da lei.
76º
De acordo com o artigo 3.º, n.º 1 dos referidos Estatutos da SCML, o desempenho dessas atribuições estava conferido ao Departamento de Jogos da SCML, conforme explicitado na alínea a) do artigo 3.º do Regulamento deste Departamento anexo aos Estatutos da SCML.
77º
Sucede que, concomitantemente, e conforme disposto na alínea j) desse mesmo artigo 3.º do referido Regulamento, competia também ao Departamento de Jogos da SCML apreciar os processos de contraordenação que viessem a ser instaurados respeitantes a explorações ilícitas de lotarias, de apostas mútuas ou outros jogos e atividades similares com vista à aplicação de penalidades previstas na lei.[12]
78º
Entretanto, o Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de novembro, veio estabelecer a disciplina normativa da exploração, em suporte eletrónico, dos jogos sociais do Estado, ou quaisquer outros jogos cuja exploração venha a ser atribuída à SCML, em regime de exclusivo, para todo o território nacional, nos termos do disposto nos respetivos Estatutos.
79º
Este diploma estabelece diversas contraordenações aplicáveis em caso de violação do exclusivo da SCML, atribuindo competência, nos termos do seu artigo 14.º, n.º 1, ao Departamento de Jogos para a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias no âmbito desses processos de contraordenação.
80º
Estabelece ainda o artigo 14.º desse diploma, nos seus n.º 3 e 4, que o produto das coimas aplicadas pelo Departamento de Jogos da SCML no âmbito dos processos de contraordenação por si apreciados integrará o resultado líquido da exploração dos jogos a que respeitem e que o pagamento da coima aplicada será efetuado ao próprio Departamento de Jogos.
81º
Da conjugação dos Estatutos da SCML e do artigo 14.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de novembro resulta, conforme corretamente enunciado pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão Recorrido, uma “coincidência ou «confusão» da entidade a quem o Estado Português concessionou, com exclusividade para todo o território nacional, a realização dos jogos e apostas desportivas (vg. «jogos sociais»), com o facto de ser a mesma entidade que fiscaliza e assume poderes sancionatórios para a violação das regras que determinam a concessão”.
82º
Deste modo, o que está em causa no presente recurso é determinar se, no caso concreto, a entidade a quem é atribuída a competência para explorar os jogos sociais do Estado, em regime de exclusividade, reúne os pressupostos necessários para ser simultaneamente a entidade com competência para apreciar e julgar a contraordenação por pretensas infrações ao direito especial de que é a única beneficiária.
83º
Questão que não é minimamente resolvida, ao contrário do que parece entender o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, pela análise e pelas conclusões a que se chegue quanto ao grau de autonomia do Departamento de Jogos relativamente aos restantes órgãos da SCML.
84º
Face à jurisprudência e doutrina acima referidas a propósito do conceito de independência e imparcialidade dos tribunais, aplicável, como vimos, às entidades administrativas que tenham competências para proferir verdadeiras acusações de natureza penal – como é o caso –, a única conclusão possível é a de considerar que nos termos do regime normativo analisado o Departamento de Jogos da SCML não cumpre minimamente os requisitos de independência e imparcialidade exigidos ao abrigo do princípio do processo equitativo.
85º
Com efeito, o facto de o Departamento de Jogos da SCML ser responsável pela exploração dos jogos sociais do Estado e, portanto um verdadeiro operador de mercado (portanto, parte teoricamente interessada) não lhe confere, nas palavras de CASTRO MENDES, a “exterioridade em face dos interesses em confronto” necessária a garantir a sua independência.
86º
De facto, o Departamento de Jogos da SCML, por ser um verdadeiro “player” de mercado não oferece garantias objetivas de independência relativamente a pressões internas[13], nem tão pouco oferece sequer uma aparência objetiva de independência nos termos exigidos pela jurisprudência do TEDH.
87º
Por outro lado, em virtude da referida cumulação de atribuições, o Departamento de Jogos da SCML não está, nas palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, a “coberto de suspeições ou desconfianças que desmereçam a sua função” de julgador, o que põe em causa a sua imparcialidade.
88º
Com efeito, a confiança que, de acordo com a jurisprudência e doutrina acima referidas, o “julgador” deve suscitar para que se dê por verificada a sua independência e imparcialidade, é abalada se não houver uma separação clara entre, por exemplo, no que toca ao caso concreto, as funções de gestão e administração da exploração do jogo e as funções de aplicação de sanções em processos de contraordenação por infração às regras dos “jogos sociais”, ainda para mais quando as duas funções são da competência da mesma entidade que é também o operador de mercado em regime de monopólio legal[14]!
89º
Finalmente, repare-se que a SCML – como é corretamente referido no Acórdão Recorrido mas ignorado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto – não é sequer uma autoridade administrativa, como o são a Autoridade da Concorrência, a Comissão dos Mercados de Valores Mobiliários, etc., mas antes uma pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa.
Pelo que a necessidade de se assegurar as garantias plenas do direito a um processo equitativo em sede da fase administrativa dos processos de contraordenação apreciados e decididos pelo Departamento de Jogos da SCML é ainda maior e mais evidente.
90º
Por outro lado, e como também acertadamente se refere no Acórdão Recorrido, não há qualquer outro exemplo no ordenamento jurídico nacional em que os poderes de fiscalização das regras de funcionamento do mercado e a competência para sancionar violações dessas mesmas regras de mercado por parte de terceiros estejam acometidas ao próprio operador de mercado!
91º
Nem sequer tal acontece noutros casos em que é conferido a uma entidade um direito especial em regime monopólio, como sucede com o serviço universal postal que se encontra neste momento atribuído aos CTT – Correios de Portugal, estando atribuídas ao IC-ANACOM, nos termos da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril, as competências de fiscalização do cumprimento do regime jurídico desse serviço universal.
92º
Neste sentido, e face a tudo quanto se expôs, não restam dúvidas de que andou bem o Tribunal da Relação do Porto ao ter considerado, no Acórdão Recorrido, que as normas dos artigos 14.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento do Departamento de Jogos da SCML aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, são inconstitucionais por colocar em causa o direito ao processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da CRP».
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A norma cuja fiscalização de constitucionalidade se requer resulta da interpretação extraída do artigo 14º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado, como Anexo II, pelo artigo 1º, do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, que estipulam, respetivamente:
«Artigo 14º
Processo e competência contraordenacional
1 - Compete à Direção do Departamento de Jogos, no âmbito das suas atribuições, a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias dos processos de contraordenação que vierem a ser instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas no presente decreto-lei.
(…)»
«Artigo 3º
Atribuições
1 – No exercício das suas atribuições compete, designadamente, ao DJ:
(…)
j) Apreciar os processos de contraordenação que vierem a ser instaurados e respeitantes a explorações ilícitas de lotarias, de apostas mútuas ou outros jogos e atividades similares, com vista à aplicação de penalidade previstas na lei;
(…)»
Antes de entrar na questão de constitucionalidade propriamente dita, importa referir que a menção, quer nas contra-alegações apresentadas pelas recorridas, quer pela própria decisão recorrida à concretização do direito fundamental ao processo equitativo, “no sentido único que decorre do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais”, não se revela totalmente compreensível. Isto porque deve ter-se sempre presente que as normas consagradoras de direitos fundamentais, vertidas na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [CDFUE], apenas “têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados-Membros, apenas quando apliquem o direito da União” (cfr. artigo 51º, n.º 1, da CDFUE]. Ora, nos presentes autos, apenas se discute a aplicação de normas decorrentes de atos legislativos internos e não de fontes de Direito da União Europeia, razão pela qual o referido artigo 47º da CDFUE não se afigura aqui invocável.
Sem prejuízo da abertura interpretativa patente na Lei Fundamental portuguesa – maxime, por força da cláusula aberta de direitos fundamentais (cfr. artigo 16º, n.º 1, da CRP), certo é que, neste caso, a interpretação a extrair da norma consagradora do “direito a um processo equitativo” (cfr. artigo 20º, n.º 4, da CRP) não se encontra diretamente vinculada ao juízo hermenêutico que se extraia da Carta, mas antes decorre de uma interpretação autónoma, fundada no bloco de normatividade constitucional interno, ainda que se não possa descurar a função irradiadora das demais fontes externas sobre o conteúdo do direito fundamental em causa.
5. Importa, pois, começar por aferir se a fixação de competência sancionatória, de tipo contraordenacional, a um órgão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa [SCML], relativamente a ilícitos cometidos no âmbito do regime jurídico dos jogos de azar, pode ser qualificada como inconstitucional, por violação do “direito a um processo equitativo” (cfr. artigo 20º, n.º 4, da CRP). Evidentemente, a esfera de proteção normativa daquela norma constitucional engloba a faculdade de acesso a órgãos jurisdicionais, em plena igualdade material das partes que a eles recorrem. De onde se torna forçoso qualificar quer a natureza jurídica da pessoa coletiva cujo órgão foi encarregue daquele poder sancionador, quer a própria fase da tramitação em que aquele órgão interveio, para depois verificar se a mesma atuação se encontra abrangida pela esfera de proteção normativa do “direito a um processo equitativo”.
A SCML é uma pessoa coletiva de Direito Privado, a quem foi conferido o estatuto de utilidade pública administrativa pelo n.º 1 do artigo 1º dos respetivos Estatutos, seja, originariamente, por força da redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, seja, de acordo com o regime jurídico hoje em vigor, isto é, a que resulta do Decreto-Lei n.º 235/2008, de 03 de dezembro. Trata-se, portanto, de uma “instituição particular de interesse público” – assim, ver Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, 715-718. Aliás, ainda que sem se referir expressamente à SCML, o mesmo Autor (cfr. Freitas do Amaral, cit., 719-720) demonstra que o próprio legislador optou por destacar, de entre essas mesmas “instituições particulares de interesse público”, as “instituições particulares de solidariedade social” – primeiro, através do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de dezembro, e, mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro –, assumindo que estas prosseguem finalidades de “interesse público”, em matéria de prestação de serviços de assistência social. Ora, independentemente de saber se as Misericórdias podem continuar a ser qualificadas como “pessoas coletivas de utilidade administrativa”, em sentido próprio – e, recorde-se que, especificamente quanto à SCML, é o próprio legislador que mantém essa qualificação legal (cfr. artigo 1º, n.º 1 dos Estatutos, nas redações conferidas pelo Decreto-Lei n.º 322/91 e pelo Decreto-Lei n.º 235/2008) –, certo é que se trata de de uma “pessoa coletiva de utilidade pública” (assim, ver Freitas do Amaral, cit., 723-724 e 737).
Significa isto que, apesar de se tratar de uma pessoa coletiva privada, a SCML desempenha atividades próprias da função administrativa, às quais o legislador reconhece interesse público relevante. Entre tais atividades incluem-se, entre muitas outras (em especial, as de assistência social e de prestação de cuidados de saúde), a atividade de gestão dos jogos sociais de azar e de fortuna, que lhe foi cometida pelo Estado português. Com efeito, por força do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de março, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 317/2002, de 27 de dezembro, e posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 37/2003, de 06 de março, o legislador reservou para o Estado português o direito de promoção de concursos de apostas mútuas, tendo instituído a SCML como concessionária da exploração desse mesmo sistema de apostas mútuas.
Assim sendo, a SCML integra-se num conceito funcional e amplo de administração pública, que abarca, inclusivamente, as pessoas coletivas privadas encarregues do exercício da função administrativa. Por sua vez, o Departamento de Jogos da SCML corresponde a uma divisão orgânica daquela pessoa coletiva privada que, não sendo qualificada como um dos seus órgãos (cfr. artigo 12º dos Estatutos da SCML), ainda assim se assume como centro de imputação de poderes, em especial, daqueles que dizem respeito à exploração dos concursos de apostas mútuas que foram concessionados àquela pessoa coletiva privada (cfr. artigo 24º, n.º 1, dos Estatutos da SCML, e artigo 1º, n.º 1, do Regulamento do Departamento de Jogos, aprovados como Anexo II ao Decreto-Lei n.º 322/91). Por essa razão, a invocação do “direito de acesso aos tribunais”, na sua vertente de “direito a um processo equitativo” (artigo 20º, n.º 4, da CRP), afigura-se despropositada, na medida em que se pretende invocar essa norma constitucional relativamente a uma atuação tipicamente administrativa, prosseguida por uma “pessoa coletiva de utilidade pública”, como é o caso da SCML.
Acresce, neste caso concreto, que a norma extraída do artigo 14º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado, como Anexo II, pelo artigo 1º, do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, se refere a um poder administrativo, de tipo sancionatório, que se circunscreve a uma “fase administrativa” do procedimento contraordenacional. Ora, em boa verdade, o “direito a um processo equitativo” apenas seria convocável caso estivesse em causa o exercício de direitos subjetivos na “fase jurisdicional” desse mesmo procedimento contraordenacional.
Aliás, como este Tribunal já teve oportunidade de demonstrar, através do Acórdão n.º 278/2011:
«5. Antes de mais, importa reter que a Lei Fundamental, em sede de garantias processuais dos cidadãos e das pessoas coletivas, reconhece, expressamente, que, além do Direito Penal, outros ramos do Direito Público assumem uma natureza punitiva ou sancionatória. Assim, além da referência específica ao Direito Contraordenacional, a norma constitucional assume uma vocação ampliadora, abarcando todos os demais ramos do Direito Administrativo Sancionatório, devendo a lei assegurar o respeito pelos direitos de audiência e de defesa (artigo 32º, n.º 10, da CRP).
Se atentamos nos mecanismos próprios do Direito Contraordenacional, verificamos que o legislador operou a uma cisão entre uma fase de aferição administrativa do cometimento do ilícito – “fase administrativa” (artigos 33º a 58º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) – e uma fase de controlo jurisdicionalizado da decisão sancionatória – “fase jurisdicional” (artigos 59º a 75º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro). Visando a sanção contraordenacional fins de prevenção geral e especial da prática de atos contrários ao bloco de legalidade – que, no entanto, não se revestem de um desvalor jurídico suficientemente forte que justifique a respetiva criminalização –, compreende-se, portanto, que o legislador tenha cometido à própria administração pública os poderes para fiscalizar o cumprimento daquele bloco de legalidade e, em caso de infração, o poder para os sancionar. Essa função corresponde, aliás, à própria essência da função administrativa, ou seja, à execução dos comandos normativos adotados pelos órgãos competentes, em estrita observância e prossecução do interesse público.
E nem se diga que tal função punitiva, exercida pela administração pública, coloca em causa o princípio da separação de poderes, por invadir o âmago da função jurisdicional. Com efeito, por força do n.º 2 do artigo 202º da Constituição da República Portuguesa, cabe aos tribunais “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, mas tal comando constitucional não se opõe ao exercício por várias entidades administrativas de poderes sancionatórios, que visam, precisamente, reprimir a violação da legalidade democrática, e que, aliás, alguma doutrina qualifica como poderes de tipo para-jurisdicional (adotando esta terminologia, ver Miguel Prata Roque,Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, in «Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras» (Separata), Coimbra, Coimbra Editora, 2009, 389-396; Ramón Parada, Derecho Administrativo – Parte General, Vol. I, 16ª edição, Madrid, Marcial Pons, 2007, pp. 407 e 408; Paula Costa e Silva, As autoridades administrativas independentes, in «O Direito», Ano 138º, 2006, Tomo III, 558 e 559; Pedro Gonçalves, Direito Administrativo da Regulação,in «Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano», FDUL, 2006,546; Vital Moreira / Fernanda Maçãs, Autoridades Reguladoras Independentes – Estudo e Projeto de Lei Quadro, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, 40.
Este Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar no sentido de que o exercício de poderes sancionatórios pela administração pública não contende, em regra, com o princípio da separação de poderes, na medida em que aquele possa ser alvo de controlo jurisdicionalizado, ainda que apenas em momento posterior à aplicação da sanção administrativa. Assim, veja-se o Acórdão n.º 161/90 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“Só os tribunais podem aplicar penas e medidas de segurança. Mas já não cabe no principio da 'reserva do Juiz', por já não ser 'administração da justiça', a aplicação de sanções não criminais não restritivas da liberdade: estas podem ser aplicadas pelas autoridades administrativas, desde que se garanta um efetivo recurso aos tribunais e se assegurem ao arguido as necessárias garantias de defesa (o principio da defesa vale, na sua ideia essencial, para todos os domínios sancionatórios)”.
Ora, à semelhança do que sucede nos demais procedimentos contraordenacionais, a decisão condenatória proferida pela Inspeção-Geral do Ambiente, é passível de impugnação judicial, nos termos do n.º 1 do artigo 59º do Decreto-Lei n.º 433/82, aplicável ao caso em apreço nos autos. Tanto assim é que o presente recurso de constitucionalidade decorreu de processo jurisdicional no qual a recorrente teve oportunidade de fazer submeter a decisão administrativa de aplicação de coima a um controlo jurisdicionalizado.
Assim sendo – e aderindo-se à jurisprudência supra citada –, entende-se que as normas extraídas dos artigos 33º e 36º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 78/2004, de 03 de abril, não contrariam o princípio da separação de poderes (artigo 111º, n.º 1, da CRP), nem tão pouco contrariam a reserva da função jurisdicional (artigo 202º, da CRP), por permitirem a uma entidade administrativa – in casu, a Inspeção-Geral do Ambiente – a instrução e a decisão de sanção a aplicar, no âmbito de um procedimento contraordenacional.»
Seguindo esta linha de raciocínio, conclui-se que, sem prejuízo de os arguidos em processo contraordenacional gozarem de várias garantias de defesa – sejam elas de génese procedimental administrativa, sejam antes de génese processual (ou jurisdicional) –, importa reiterar que a eventual preterição dessas “garantias de defesa”, durante a “fase administrativa” de um procedimento contraordenacional não implica uma violação do “direito a um processo equitativo” (cfr. artigo 20º, n.º 4, da CRP), pois este apenas reclama aplicação em caso de tramitação de um processo jurisdicional. De todo o modo sempre se imporia a convocação da norma constitucional decorrente do n.º 10 do artigo 32º da CRP, por se tratar de norma especial, e nunca daquele outro preceito legal, supra citado.
Este mesmo entendimento foi já sufragado pela 3ª Secção deste Tribunal, através dos Acórdãos n.º 595/2012 e n.º 49/2013 (ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), tendo o primeiro deles expressamente afirmado, reportando-se ao artigo 20º, n.º 4, da CRP, que:
«Sucede que desta norma constitucional não decorre o efeito que a decisão recorrida, por si e pelo que absorve do precedente jurisprudencial a que se acolhe (Acórdão do TRP de 2/11/2011, P. 801/06.6TPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt), lhe atribuiu, no que se refere à fase administrativa do processo de contraordenação. Desde logo, porque a conformação legislativa dessa fase do processo de contraordenação está fora do campo de previsão desta norma constitucional. O “processo equitativo” que constitui objeto imediato do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição respeita à “tutela jurisdicional efetiva”, aos “tribunais”, a “causas” e “procedimentos judiciais”. Como diz o Ministério Público. a linguagem, o sentido e a função desta disposição constitucional são inequívocos ao localizarem o direito (fundamental) ao processo equitativo em sede “judicial” e não em sede “administrativa”, como é o caso da fase administrativa do “processo de contraordenação”.»
Esta conclusão não conflitua, de modo algum, com a constatação de que o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) consagra um conceito amplo de “processo equitativo”, que não só abarca os processos de natureza cível, como os processos de natureza criminal e ainda os processos de cariz contraordenacional ou mesmo os procedimentos de tipo administrativo. A interpretação extensiva que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem extraído do artigo 6º da CEDH – no sentido de nele abarcar o “direito a um processo equitativo”, quer no âmbito de procedimentos contraordenacionais, quer mesmo no âmbito de procedimentos de tipo administrativo ou de ações jurisdicionais perante os tribunais administrativos – decorre apenas da exiguidade semântica daquele preceito convencional.
Em boa verdade, da sua redação literal apenas se poderia extrair a aplicação do mesmo aos processos jurisdicionais que versassem “quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal”. No entanto, a jurisprudência consolidada naquele Tribunal tem permitido ampliar a sua esfera de proteção normativa quer aos processos e procedimentos que versem sobre situações jurídico-administrativas caraterizadas por uma tendencial paridade entre a administração pública e os particulares – mediante aproximação ao conceito de “direitos e obrigações de caráter civil” (a mero título de exemplo, ver o Acórdão “Ringeisen”, de 16 de julho de 1971, do TEDH) –, quer ainda aos procedimentos administrativos de tipo sancionatório, que revelem uma proximidade substantiva ao exercício de poder punitivo, de tipo penal – desta feita, ensaiando-se uma aproximação ao conceito de “acusação em matéria penal” (ver ainda os Acórdãos “König”, de 28 de junho de 1978, “Baraona”, de 08 de julho de 1987, “Neves e Silva”, de 27 de abril de 1989, “H. c/ França”, de 24 de outubro de 1989, e “Vallée c/ França”, de 26 de abril de 1994, todos do TEDH).
Ora, esta necessidade de interpretação ampliativa da norma consagradora do “direito a um processo equitativo” não opera no caso do bloco de normatividade constitucional portuguesa. É que, ao contrário do que sucede com aquele texto internacional, a Constituição da República Portuguesa contém um leque multifacetado de normas consagradoras de direitos fundamentais de defesa dos indivíduos (e das pessoas coletivas) face ao exercício de poderes sancionatórios. Desde logo, o n.º 10 do artigo 32º, que procede a uma extensão das “garantias de defesa”, em processo penal, aos demais processos de tipo sancionatório, quando se encontrem em “fase jurisdicional”.
Razões suficientes para se concluir pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso, no que diz respeito à violação do n.º 4 do artigo 20º da CRP.
6. Dando por assente que a questão de inconstitucionalidade normativa ora em apreço diz respeito a um alegado conflito entre a qualidade de “concessionária pública”, de que goza a SCML, e a sua qualidade de pessoa coletiva pública encarregue do exercício de poderes sancionatórios, de tipo contraordenacional – ainda que através do respetivo Departamento de Jogos –, durante a “fase administrativa” desse procedimento complexo, impõe-se então verificar se essa cumulação de poderes na mesma pessoa coletiva implica uma violação das “garantias de defesa” das recorridas, na “fase administrativa” do procedimento contraordenacional.
Mais uma vez, importa recuperar o que este Tribunal já disse, a propósito de um problema similar, que envolvia a cumulação entre o exercício de poderes sancionatórios, de tipo contraordenacional, e o benefício obtido através da cobrança de receitas, por via das coimas aplicadas. Assim, no Acórdão n.º 278/2011 concluiu-se que:
«É de sublinhar que as entidades administrativas que dispõem de poderes sancionatórios, designadamente em matéria de responsabilidade contraordenacional, encontram-se, simultaneamente obrigadas ao respeito dos princípios gerais aplicáveis a qualquer procedimento administrativo [vide artigos 3º a 12º do Código de Procedimento Administrativo (CPA)] e ao respeito das garantias de defesa dos arguidos em procedimentos contraordenacionais (artigo 32º, n.º 10, da CRP). Como tal, independentemente de beneficiarem – apenas a final – do produto das coimas pagas pelos arguidos, certo é que persistem vinculados aos princípios da imparcialidade e da justiça (artigo 6º do CPA), da igualdade e da proporcionalidade (artigo 5º do CPA) e da boa fé (artigo 6º-A do CPA).
Assim sendo, em boa verdade, o problema suscitado pela recorrente situa-se mais ao nível da eventual violação de princípios e de normas de fonte infraconstitucional que conduziria à invalidade da decisão administrativa de natureza condenatória do que da constitucionalidade quanto à norma extraída da alínea b) do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 78/2004.
Senão, vejamos.
A sanção contraordenacional visa a prevenção de novas infrações e a motivação dos administrados para o cumprimento da lei, não podendo as coimas ser utilizadas como meio de financiamento da própria Administração Pública, sob pena de desvio de poder na decisão administrativa que aplica a sanção (aliás, é tradicional apresentar-se como exemplo académico deste vício do ato administrativo, precisamente, o exercício de poderes de polícia administrativa com o propósito de obtenção de receitas públicas; assim, ver Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2ª reimpressão, 2003, Coimbra, p. 395). Ora, caso o recorrente tivesse logrado demonstrar, perante os tribunais recorridos, que a decisão administrativa condenatória havia sido tomada mediante violação dos deveres de imparcialidade e com o intuito de prosseguir um interesse público distinto do visado pela lei, então bastar-lhe-ia ter invocado tais fundamentos de invalidade da decisão administrativa para obstar à sua produção de efeitos. Não o fez, contudo.
Além disso, a opção legislativa relativa ao destino do produto das coimas (artigo 37º do Decreto-Lei n.º78/2004) deve ser avaliada, à luz de uma ponderação dos vários interesses (contraditórios) em presença. A Lei Fundamental não só incumbe a administração pública de acautelar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, n.º 2, da CRP), garantindo os direitos de audiência e de defesa dos arguidos em procedimentos contraordenacionais (artigo 32º, n.º 10, da CRP), como também se encarrega de garantir o direito fundamental de todos os cidadãos “a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” (artigo 66º, n.º 1, da CRP). Como tal, justifica-se que o produto de coimas suportadas por aqueles que colocam em risco ou lesam esse ambiente revertam, parcialmente, para uma entidade administrativa encarregue da prevenção e preservação dessa mesma qualidade ambiental.
Tal exercício de poder sancionatório pressupõe sempre que as decisões condenatórias tomadas visem exclusivamente prosseguir o interesse público de manutenção de um ambiente sadio e nunca a mera obtenção de receitas próprias.
Em suma, a alínea b) do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 78/2004 não padece de inconstitucionalidade por violação dos princípios da imparcialidade e da justiça (artigo 266º, n.º 2, da CRP), na medida em que o benefício de uma parcela do produto das coimas pela entidade administrativa que tomou a decisão condenatória não implica, por si só, que aquela deixe de observar os deveres de imparcialidade e de justiça que lhe incumbem por força da Constituição e da lei, tanto mais que a decisão final caberá sempre, em última instância, como se disse atrás, ao poder judicial.»
No caso ora em apreço, resulta evidente, quer pela falta de invocação concreta de quaisquer factos que o demonstrassem, quer pela matéria de facto dado como provada nos autos que as recorridas não se viram privadas de quaisquer direitos de participação procedimental ou de defesa, no decurso da “fase administrativa” do procedimento contraordenacional. Aliás, nem sequer a decisão recorrida entendeu que tal tivesse ocorrido, tendo antes concluído que a simples circunstância de a SCML cumular as qualidades de “concessionária pública” e de entidade encarregue do “exercício de poderes sancionatórios” faria perigar a sua necessária imparcialidade para proferir decisões condenatórias, em matéria contraordenacional. De onde se conclui que não ocorreu qualquer inconstitucionalidade, por violação do n.º 10 do artigo 32º da CRP.
Note-se que este Tribunal não se encontra limitado à aferição do fundamento de inconstitucionalidade material sobre o qual se fundou a decisão recorrida, ou seja, da alegada violação do “direito a um processo equitativo” (cfr. artigo 79º-C, da LTC).
Assim sendo, resta ainda verificar se a norma extraída do artigo 14º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado, como Anexo II, pelo artigo 1º, do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, atenta contra o “princípio da imparcialidade” (cfr. 266º, n.º 2, da CRP), a que qualquer pessoa jurídica encarregue do exercício da função administrativa se encontra vinculada.
Crê-se que a mera reunião das qualidades jurídicas de “concessionária pública” e de entidade encarregue do “exercício de poderes sancionatórios”, por via daqueles preceitos legais, não origina, necessária e forçosamente, uma espécie de “presunção de parcialidade”, que recairia sobre a SCML. Na medida em que a mesma fica imbuída da qualidade de entidade encarregue do exercício da função administrativa – in casu, de tipo sancionatório –, sobre ela recaem especiais exigências de respeito pelos princípios gerais de Direito Administrativo, em especial, o “princípio da imparcialidade” (cfr. artigo 266º, n.º 2, da CRP, e artigo 5º do Código do Procedimento Administrativo). Ora, a eventual violação desse mesmo princípio não decorre, automaticamente, da mera cumulação daquelas qualidades jurídicas, antes sendo forçoso verificar-se se da atuação concretamente adotada pelo Departamento de Jogos da SCML se pode concluir que foram tomadas decisões administrativas que enfermam de ilegalidade, por violação desse mesmo “princípio da imparcialidade”.
Em sentido próximo se pronunciou já o Acórdão n.º 595/2012 (com posterior adesão à sua fundamentação, pelo Acórdão n.º 49/2013) que, precisamente sobre a mesma norma que constitui objeto do presente recurso, já teve a oportunidade de considerar que:
«Como o Tribunal disse no Acórdão n.º 581/2004 (disponível, como os demais citados sem outra indicação em www.tribunalconstitucional.pt), a propósito de acusação semelhante, “a posição do arguido está garantida, não apenas, em primeiro lugar, nos limites das especificidades do processo administrativo, e, depois, na possibilidade de os destinatários da decisão promoverem a sua apreciação judicial, com todas as garantias inerentes ao processo jurisdicional [...]. Em suma: não só o ato em causa não é de molde a pôr logo em questão a imparcialidade do decisor, como a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional (n.º 10 do artigo 32.º da Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do artigo 32.º, para o “processo criminal”, como, ainda – e, numa certa perspetiva, decisivamente –, a posição do arguido está garantida pela possibilidade de recurso jurisdicional. O n.º 10 do artigo 32.º da Constituição não é, pois, desrespeitado só pelo mero facto de não serem diferentes os funcionários que confirmam o auto de notícia e proferem a decisão final”.
Se isto é assim quando a identidade entre o autor da investigação ou do impulso processual e o da decisão respeita à pessoa física, sê-lo-á, por maioria de razão quando a confusão ou não separação de poderes ou funções no âmbito do mesmo processo é meramente orgânica, como no caso sucede.
Não se ignora que, em alguns regimes especiais, sem subtrair o processamento e decisão primária à esfera da Administração, se estabelece diferenciação de funções ou competências no seio do processo de contraordenação, que pode ir ao ponto de a entidade administrativa competente para a decisão não integrar a autoridade administrativa competente para investigação (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, pág. 119). É solução que cabe na discricionariedade legislativa, mas que não decorre das garantias constitucionais relativas ao processo de contraordenação, garantida que está a possibilidade de o arguido ser ouvido e se defender antes da decisão administrativa sancionatória e a impugnação desta em todos os seus aspetos lesivos, perante um tribunal independente e imparcial e com plena jurisdição, mediante um processo contraditório.
7. É certo que desde logo decorre do princípio do Estado de Direito, proclamado no artigo 2.º da Constituição, que o processo de contraordenação tem de ser um “processo justo” em todas as suas etapas, nessa exigência se incluindo que a estrutura organizatória e a configuração normativa do processo (bem como o seu concreto desenvolvimento) permitam que quem investiga e decide na fase administrativa reúna requisitos de isenção e imparcialidade e possa ser visto como tal. Só assim o poder público se legitima como ordenado ao fim de garantir a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justiça e a segurança, elementos cardeais do entendimento contemporâneo do princípio.
(…)
Mas, diversamente da imparcialidade judicial, a imparcialidade da Administração (das “autoridades administrativas” na terminologia do RGCO) não implica a neutralidade do decisor. As “autoridades administrativas” ainda quando aplicam sanções em ilícito de mera ordenação social não dirimem conflitos de interesses púbicos e privados: prosseguem o(s) interesse(s) público(s) postos pela lei a seu cargo. Quer as que investigam, quer as que são chamadas a aplicar a sanção. E isso mesmo não pode deixar de considerar-se representado pelo legislador constituinte quando acolheu o ilícito de mera ordenação social com a característica essencial de a “primeira palavra” sancionatória pertencer, em princípio, à Administração e se absteve de sujeitar o respetivo processo ao princípio do acusatório.
Não pode, assim, subscrever-se a afirmação de que, em ordem a respeitar a exigência de um processo equitativo, a entidade com poderes de fiscalização e sancionatórios deva deter uma estrutura independente em relação às entidades que prosseguem o interesse público primário, devendo ainda ser dotada de autonomia técnica e financeira, que é a solução consentida ao legislador pela decisão recorrida. Essa para-judicialização da fase administrativa do processo – que, aliás, só atingiria totalmente os seus objetivos se a decisão pertencesse sistematicamente a uma autoridade administrativa independente –, com uma entidade administrativa com poderes de promoção da pretensão punitiva e outra, sem ligação com o interesse público primário objeto de tutela contraordenacional, com poderes de decisão e aplicação da sanção, não é indispensável a assegurar a possibilidade de defesa e a efetiva contribuição do interessado para a formação da decisão que lhe diz respeito.»
Em suma, não pode concluir-se que a atribuição de poderes sancionatórios ao Departamento de Jogos da SCML, por si só, acarrete uma violação do “princípio da imparcialidade” (cfr. artigo 266º, n.º 2, da CRP), pois esta, enquanto concessionária de um serviço público e entidade encarregue do exercício de funções sancionatórias de tipo contraordenacional fica, automaticamente, vinculada ao respeito dos princípios gerais de Direito Administrativo que, aliás, decorrem expressamente do bloco de normatividade constitucional. Só perante a invocação e comprovação jurisdicional de uma concreta violação desse princípio é que poderia concluir-se pela ilegalidade da decisão condenatória.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
i) Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 14º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1, do artigo 3º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado, como Anexo II, pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto;
ii) Conceder provimento ao recurso interposto;
E, em consequência:
iii) Determinar a baixa dos autos ao tribunal recorrido, para que a decisão proferida seja reformada, em conformidade com o presente julgamento de não inconstitucionalidade, nos termos do n.º 2 do artigo 80º da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Ana Guerra Martins –Pedro Machete – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro
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[1] Anotações Relativas à Carta dos Direitos Fundamentais, JO C-303, de 14.12.2007, p. 17 e ss.
[2] Anotações Relativas à Carta dos Direitos Fundamentais, JO C-303, de 14.12.2007, p.33.
[3] Como, por exemplo, os processos de deportação (acórdão Mamatkulov e Askarov v. Turquia (2005)).
[4] Neste sentido, veja-se o acórdão do TEDH Ringeisen v. Áustria (1971), parágrafo 94: “The character of the legislation which governs how the matter is to be determined (civil, commercial, administrative law, etc) and that of the authority which is invested with jurisdiction in the matter (ordinary court, administrative body, etc) are therefore of little consequence.”
[5] Acórdão Engel v. Alemanha (1976), parágrafo 81.
[6] Por exemplo, no Acórdão Lauko v. Eslováquia (2001), o TEDH considerou como tendo uma natureza penal infrações consideradas como “administrativas” pelo direito nacional.
[7] Por exemplo, Acórdão do TEDH Jussila v. Finlândia (2006), parágrafo 38;
[8] Por exemplo, Acórdão do TEDH Bendenoun v. França (1994), parágrafo 47: “the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as punishment to deter reoffending.”
[9] Por exemplo, no Acórdão do TEDH Malige (1998), o TEDH considerou que um sistema de dedução de pontos em cartas de condução, após a prática de cada infração constitui uma medida suficientemente severa para ser considerada como tendo natureza penal.
[10] Neste sentido, veja-se o acórdão do TEDH Eckle v. Alemanha (1982), parágrafo 78.
[11] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da Repíblica Anotada, Volume I, 1.ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 415.
[12] O regime descrito permanece essencialmente o mesmo ao abrigo dos Estatutos da SCML atualmente em vigor, tal como aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, conforme artigo 4.º, n.º 3, alínea s) e artigo 27.º, n.º 1 e n.º 3 alíneas c) e n).
[13] Neste sentido, veja-se o acórdão do TEDH Belilos v. Suiça (1988), em que a “Comissão da Polícia” local, que decidia certas ofensas de menor importância, era constituída por um membro – um polícia – que, apesar de não estar sujeito a ordens, ter prestado juramento e não poder ser destituído, pelo facto de posteriormente regressar às suas funções na Polícia, sujeito aos seus superiores hierárquicos, levou o tribunal a concluir que existiam motivos para que se suscitassem dúvidas legítimas sobre a sua independência e imparcialidade organizacional.
[14] Neste sentido, veja-se o acórdão do TEDH Dubus S.A. v. França (2009), em que o Tribunal não se convenceu que havia uma separação efetiva entre o procedimento disciplinar e a investigação administrativa.