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Proc. n.º 315/01 Acórdão nº 406/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 1054, negou-se provimento ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional por M..., por manifesta falta de fundamento, confirmando-se a decisão recorrida quanto à questão da inconstitucionalidade.
É a seguinte a fundamentação da decisão sumária:
'[...] Dispõe o artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil:
«Praticado o acto em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notificará o interessado para pagar multa de montante igual ao dobro da mais elevada prevista no número anterior, sob pena de se considerar perdido o direito de praticar o acto, não podendo, porém, a multa exceder 10 UC». A conformidade constitucional da norma do n.º 6 do artigo 145º do Código de Processo Civil já foi apreciada por este Tribunal, em decisão proferida no processo n.º 905/98 (acórdão n.º 37/99, de 19 de Janeiro, inédito). Aí se entendeu que não era inconstitucional essa norma, à luz do disposto nos artigos
13º, n.º 1, e 18º da Constituição. Verifica-se, porém, que no presente recurso o recorrente pretende a apreciação da conformidade constitucional da norma do n.º 6 do artigo 145º do Código de Processo Civil, numa particular dimensão normativa: a de que «devem as partes
‘motu proprio’ proceder ou promover as operações de liquidação da multa prevista e levantamento das guias necessárias, sob cominação de perda do direito, e permitindo ao Tribunal, ao invés, não liquidar o montante da multa devida assim como e igualmente permitindo ao mesmo Tribunal que não ordene à secretaria que esta cumpra as demais obrigações estatuídas na lei» [...]. Isto é: no presente recurso, o recorrente não questiona, como sucedia no caso que originou a decisão deste Tribunal acima referenciada, a necessidade do pagamento da multa sob pena de perda do direito de praticar o acto, mas a necessidade de serem as partes a promover as operações de liquidação da multa e levantamento das guias, sob pena de perda do direito, bem como a não liquidação da multa pelo tribunal e concomitante ordem à secretaria para o cumprimento das suas obrigações. Como com facilidade se vê, é manifestamente infundada a tese da inconstitucionalidade da referida interpretação normativa, sustentada pelo recorrente. Do princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático e alegadamente ferido com a interpretação normativa em causa, não decorre o direito da parte, notificada pelo tribunal para pagar uma multa, a assumir uma conduta de total passividade em relação ao próprio pagamento da multa, nada promovendo a propósito, sendo certo que as diligências que teria de realizar para o efeito lhe não seriam especialmente penosas. Daquele princípio também não decorre seguramente o dever de liquidação da multa pelo tribunal e não pela secretaria – podendo, aliás, perguntar-se como podem os direitos das partes sair lesados com tal distribuição de funções –, nem o dever do tribunal de ordenar à secretaria a prática de actos que já são impostos pela lei. Nem, aliás, se vislumbra qualquer preceito constitucional que sustente a tese do recorrente, só compreensível à luz de uma concepção que propugnasse a total economia de esforços das partes processuais e correlativa sobrecarga dos tribunais. Atenta a manifesta improcedência da inconstitucionalidade invocada, está preenchida a previsão do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.'
2. Da referida decisão sumária reclama agora M..., nos termos do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional. Na reclamação (fls. 1066 e seguintes), alega, em síntese, o seguinte: a) Para a parte poder efectuar o pagamento da multa, é necessário que anteriormente se pratiquem certos actos que não dependem do impulso da parte, tais como o reconhecimento da falta, a liquidação da multa e a emissão de guias, pelo que a norma do artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil não pode ser interpretada no sentido de conferir um direito geral ao Estado de, em nome da não excessiva onerosidade para as partes em promover os termos do respectivo cumprimento, não cumprir as disposições que lhe ordenam tal cumprimento e, em reforço, extrair contra a parte um efeito cominatório não legalmente previsto; b) Ao recorrente não cabia proceder aos actos interlocutórios de liquidação, emissão e expedição de guias e, uma vez que o tribunal colectivo 'avocou' a competência para a verificação da falta, então poderia ter liquidado o montante da multa e ordenado a emissão de guias, assim salvaguardando a confiança que a parte havia depositado no cumprimento do 'iter' imposto no artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil; c) Embora a promoção do impulso necessário ao cumprimento do demais estatuído no artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil não fosse de monta, é sabido que, enquanto os Estados do Sul da Europa, sempre crentes na sua capacidade de improviso, nunca conseguiram que o Estado de Direito democrático criasse raízes nas suas comunidades, os Estados do Norte da Europa, orientando-se rigidamente por normas, conseguiram tal criação, pelo que é insustentável a tese sucessivamente sufragada no presente caso; d) A obrigação de liquidar o montante das multas, emitir as correspondentes guias e notificar os faltosos está prevista no artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil e pertence às secretarias judiciais, pelo que se não alcança como
é que o cumprimento das obrigações impostas por lei pode constituir uma adição de trabalho para as secretarias judiciais; e) A norma do artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada, posterga de forma intolerável o princípio da protecção da confiança, pois que a obrigação de notificar, liquidar, emitir e expedir guias compete à secretaria e não à parte, e a parte confiou e teve a certeza de que o tribunal, através da secretaria, sempre cumpriria a sua obrigação antes de extrair qualquer efeito contra si.
II
3. Recorde-se o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, tal como foi delimitado pelo ora reclamante no respectivo requerimento de interposição (fls. 1049 e v.º): apreciação da conformidade constitucional, à luz do princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2º da Constituição), da norma contida no n.º 6 do artigo
145º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual 'devem as partes «motu proprio» proceder ou promover as operações de liquidação da multa prevista e levantamento das guias necessárias, sob cominação de perda do direito, e permitindo ao Tribunal, ao invés, não liquidar o montante da multa devida assim como e igualmente permitindo ao mesmo Tribunal que não ordene à secretaria que esta cumpra as demais obrigações estatuídas na lei'.
A decisão sumária ora reclamada foi proferida em atenção a um certo objecto do recurso: precisamente, aquele que o recorrente delimitou no respectivo requerimento de interposição. Note-se que, na presente reclamação, o reclamante não questiona que o objecto do recurso seja esse ou, dito de outro modo, que na decisão sumária reclamada se tenha procedido a uma correcta identificação desse objecto.
Tendo sempre presente tal objecto do recurso, vejamos agora se, de algum modo, procede a argumentação do reclamante contra a decisão sumária.
4. Relativamente ao primeiro argumento (supra, 2. a)), dir-se-á, desde logo, que ele pressupõe um objecto do recurso diverso daquele que havia sido delimitado pelo recorrente. Dito de outro modo, pressupõe a apreciação da conformidade constitucional de uma determinada interpretação normativa que, reconhecendo a existência de determinados deveres do Estado, admitisse a violação de tais deveres pelo Estado sempre que o cumprimento de tais deveres pelas partes não fosse, para elas, demasiado oneroso.
Mas na decisão sumária reclamada nunca se considerou tal interpretação normativa, justamente porque ela não se integrava no objecto do recurso. Analisou-se, apenas, se a Constituição de algum modo proibiria um dever das partes de promoção das operações de liquidação de uma multa prevista e de levantamento das guias necessárias (repare-se que, como é óbvio, a decisão sumária não se refere à emissão e expedição das guias, contrariamente àquilo que na reclamação se sugere).
Dirigindo-se a argumentação do reclamante a um objecto do recurso que não coincide com aquele que foi apreciado, é evidente que, com ela, se não atinge a decisão sumária reclamada.
Acrescente-se, ainda, que não só esse objecto do recurso não foi apreciado, como também, caso tivesse sido pedida a sua apreciação no requerimento de interposição do recurso, não poderia ser apreciado pelo Tribunal Constitucional. Na verdade, a decisão recorrida – a do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Abril de 2001 (cfr. fls. 1037 e seguintes) – não adoptou a interpretação normativa contra a qual o reclamante se insurge, e que é aquela segundo a qual se admite que o Estado viole certos deveres que sobre si impendem, sempre que o cumprimento de tais deveres pelas partes não seja para elas demasiado oneroso. Recorde-se, para este efeito, a passagem da decisão recorrida que reflecte a orientação do Supremo Tribunal de Justiça que o recorrente questiona:
'[...] Não é, segundo o nº 6º do art. 145º CPC, ao tribunal, mas à secretaria, que cabe liquidar a multa devida neste caso. Condicionada a tramitação do incidente ao prévio pagamento da multa em falta (v. já citados arts. 236º e 295º C. Civ., por igual aplicáveis às decisões judiciais), os embargantes – e tanto era o que, regularmente patrocinados, tinham que fazer motu proprio – nem solicitaram guias para o seu pagamento, nem arguiram eventual nulidade processual secundária resultante da falta de notificação pela secretaria para o fazerem (arts. 201º, nº 1º, 202º, 2ª parte,
203º, nº 1º, e 205º, nº 1º, CPC).
É, enfim, em claro despropósito que, também nesta parte, se invoca o princípio da confiança. Não se vê, com efeito, como achar nele cobertura nem para a inépcia – que não se vê que efectivamente ocorra –, nem para a dilação: logo, enfim, na 1ª instância
(fls. 913-3.) se tendo feito notar a «temeridade» da lide desenvolvida pelos embargantes.
[…].'
Não há, nesta passagem, qualquer referência à licitude do não cumprimento de certos deveres que impendem sobre o Estado, como bem se alcança pela alusão ao regime das nulidades processuais secundárias, no que à falta de notificação pela secretaria se refere.
Não tendo a decisão recorrida adoptado a interpretação que, na presente reclamação, se contesta, é evidente que o Tribunal Constitucional nunca poderia apreciar a sua conformidade constitucional, condicionado que está, nos recursos interpostos ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a apreciar a conformidade constitucional de interpretações normativas que efectivamente tenham sido aplicadas nas decisões de que se recorre.
Concluindo: o primeiro argumento do reclamante dirige-se contra uma interpretação que não foi considerada na decisão sumária reclamada, dado que não integrava o objecto do recurso tal como havia sido por si delimitado no requerimento de interposição do recurso, sendo, como tal, improcedente; essa interpretação nem sequer foi adoptada na decisão recorrida, pelo que não podia constituir objecto idóneo de recurso para o Tribunal Constitucional.
5. Relativamente ao segundo argumento (supra, 2. b)), cumpre afirmar, desde logo, que o mesmo pressupõe que o Tribunal Constitucional possa proceder a uma interpretação autêntica do disposto no artigo 145º, n.º 6, do Código de Processo Civil. Dito de outro modo, pressupõe que o Tribunal Constitucional possa determinar qual o 'iter' imposto neste preceito legal (para usar as palavras do reclamante), a fim de averiguar se, no caso sub judice, houve violação de lei. Ora, tal possibilidade extravasa manifestamente a competência do Tribunal Constitucional, que nos recursos interpostos ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional está adstrito a apreciar questões de constitucionalidade normativa (o que de nenhum modo se confunde com a interpretação autêntica dos próprios preceitos legais cuja constitucionalidade se questiona).
Tal argumento pressupõe, em segundo lugar, que qualquer eventual violação de lei pelos tribunais implica violação do princípio constitucional da confiança. Assim concebido, tal princípio teria contornos vastíssimos, acabando por conduzir à admissibilidade, no nosso sistema, do recurso de amparo. Perante qualquer decisão judicial que perfilhasse uma interpretação desconforme com a lei, as partes podiam alegar que fora defraudada a sua confiança no cumprimento dessa mesma lei. Ora, a adoptar-se tal entendimento do princípio da confiança, abrir-se-ia caminho para o controlo constitucional das próprias decisões judiciais, ao arrepio do disposto no próprio artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Em terceiro lugar, tal argumento pressupõe – tal como, aliás, já se havia salientado na decisão sumária reclamada – que o princípio da confiança tutela uma determinada distribuição de competências entre o tribunal e a secretaria quanto à matéria da liquidação de multas. Aparentemente, e segundo o reclamante, a avocação, por parte do tribunal, de um determinado poder, implicaria uma alteração da competência funcional para a prática dos actos processuais subsequentes: a competência funcional para a prática destes actos passaria a ser do próprio tribunal – e, ao que parece, nunca da própria secretaria, já que o reclamante desconsidera a referência, feita no acórdão recorrido, à eventual nulidade processual decorrente da falta de notificação pela secretaria –, verificando-se um fenómeno que, sem exagero mas com alguma estranheza, pode ser designado por alteração da competência funcional por prévia avocação. Ora, não se vislumbra em que medida o princípio constitucional da confiança tutela tal alteração.
6. O terceiro argumento do reclamante (supra, 2., c)) em nada se distingue do primeiro, pelo que se remete para o que já se disse (supra, 4.). Como é evidente, a decisão sumária não considerou, nem podia considerar, a interpretação normativa segundo a qual o incumprimento, pelo Estado, de deveres que sobre si impendem, se justifica sempre que o cumprimento não seja excessivamente oneroso para as partes.
7. O quarto argumento (supra, 2., d)) sugere que, na decisão sumária, se apreciou a questão da inconstitucionalidade do cometimento, às partes, dos deveres impostos às secretarias judiciais, e consequente desoneração destas, sempre que as partes, sem esforço, os possam cumprir. Relativamente a este aspecto, remete-se também para o que já se disse (supra, 4.). Assinale-se apenas que a referência à sobrecarga dos tribunais constante da decisão sumária, que tanto impressionou o reclamante, deve compreender-se à luz do objecto do recurso tal como havia sido por si próprio delimitado e, especialmente, deve ser compreendida à luz da menção – expressamente feita, talvez por lapso, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – à tarefa do levantamento das guias. Não pareceu desajustado referir a sobrecarga dos tribunais quando, mediante a invocação do princípio da confiança, aparentemente se contesta que as partes devam proceder a tal levantamento.
8. Por último, e quanto ao quinto argumento (supra, 2., e)), afigura-se suficiente remeter para tudo quanto já ficou dito (nomeadamente supra, 4. e 5.). Assim, repete-se apenas que a decisão sumária não apreciou a interpretação segundo a qual é lícito à secretaria deixar de cumprir certos deveres cujo cumprimento pode, sem esforço, ser realizado pelas partes, bem como que o eventual não cumprimento da lei pelos tribunais não pode significar violação do princípio da confiança, se com isso se quer legitimar a aferição da constitucionalidade das próprias decisões judiciais, proibida pelo artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada, que negou provimento ao recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 27 de Setembro de 2001 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida