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Processo n.º 769/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Município do Funchal instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal ação administrativa comum contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública, atualmente denominado Ministério das Finanças (cfr. artigos 2.º, alínea a), e 11.º, do Decreto-lei n.º 86-A/2011, de 12 de julho), pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €4.570.533,33, correspondente às transferências de verbas respeitantes a IRS, de março a dezembro de 2009, previstas no Mapa XIX da LOE para 2009 (Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro), acrescida de juros de mora à taxa legal.
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou a ação procedente e, inconformado, o Ministério das Finanças recorreu, per saltum, para o Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 28 de junho de 2012, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença e julgando improcedente a ação.
O Município do Funchal recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«Município do Funchal, Recorrido nos autos acima referenciados, notificado do Acórdão proferido em sede de Recurso de Revista, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70.º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro).
Segundo o STA, apesar da norma constante do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro – que reconhecia ao Município do Funchal o direito à transferência de uma certa verba oriunda do Orçamento de Estado –, o Município afinal só teria esse direito (ou só poderia receber tal verba) se houvesse (e não há) o decreto legislativo regional previsto no artigo 63.º, nº 3, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro.
Esta interpretação das ditas normas – e de outras conexas com a matéria, tal como vem demonstrado nas várias peças do processo – é inconstitucional.
Assim, para efeitos do artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC, refere-se que o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º desse diploma e que as normas cuja (in)constitucionalidade se pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional são as seguintes:
(i) As normas constantes do artigo 42.º, nº 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64- A/2008, de 31 de dezembro, no entendimento que delas se fez no Acórdão acima indicado;
e
(ii) As normas constantes dos artigos 19.º, nº 1, alínea c), 20.º, nº 1, e 63.º, nº 3, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, na interpretação que delas se fez no Acórdão acima indicado.
Para efeitos do artigo 75.º-A, nº 2, da LTC, as normas constitucionais violadas são as constantes dos artigos 227.º, nº 1, alínea j), e 238.º, nº 2, da CRP (esta última disposição, na parte em que determina que o regime das finanças locais visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias), bem como os princípios constitucionais da igualdade entre municípios continentais e insulares, da autonomia local (face ao Estado e às Regiões Autónomas) e da autonomia administrativa e financeira local.
Por último, e para os efeitos do mencionado artigo 75.º-A, nº 2, refere-se que a Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade nas contra-alegações de recurso para o STA – designadamente, artigos 70.º, 72.º a 75.º, 84.º a 86.º, 91.º, 94.º, 96.º, 105.º e conclusões E, I, M, O, Q e U.»
Notificado para concretizar as interpretações normativas cuja constitucionalidade pretendia ver fiscalizada, o Recorrente fê-lo nos seguintes termos:
“Introdução
1. No requerimento ao abrigo do qual foi interposto o presente recurso, o Recorrente delimitou o objeto do mesmo à apreciação da interpretação conferida pelo STA às seguintes disposições:
a) artigo 42.º, nº 1 e mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009 (“LOE 2009”);
b) artigos 19.º, nº 1, alínea c), 20.º, nº 1, e 63.º, nº 3, todos da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, que aprovou a Lei das Finanças Locais (LFL).
2. Do ponto de vista do Recorrente, e de acordo com o requerimento apresentado, o entendimento sustentado pelo STA a respeito daquelas normas viola a Constituição mais concretamente, os princípios constitucionais da igualdade entre municípios continentais e insulares, da autonomia local (face ao Estado e às Regiões Autónomas) e da autonomia administrativa e financeira local, o artigo 238.º, nº 2, na parte em que determina que o regime das finanças locais visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias, e o artigo 227.º, nº 1, alínea j).
3. Para os efeitos do mencionado artigo 75.º-A, nº 2, o Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade nas contra-alegações de recurso para o STA – designadamente, artigos 70.º, 72.º a 75.º, 84.º a 86.º, 91.º, 94.º, 96.º, 105.º e conclusões E, I, M, O, Q e U.
4. A convite do Digno Relator do presente processo, o Município do Funchal vem então enunciar mais concretamente os fundamentos do seu recurso, ou seja, qual a interpretação inconstitucional que, em seu entender, o STA fez das referidas normas.
A inconstitucionalidade das interpretações normativas objeto deste recurso: enunciado sumário
5. Como se disse, o propósito do presente recurso é ver fiscalizada a (in)constitucionalidade da interpretação conferida pelo STA, no Acórdão recorrido, ao artigo 42.º, nº 1, e mapa XIX anexo â LOE 2009, bem como aos artigos 19.º, nº 1, alínea c), 20.º, nº 1, e 63.º, nº 3, todos da LFL.
6. Todos eles estão intimamente ligados, pelo que, na verdade, é contra a interpretação conferida em termos globais ao direito dos municípios insulares de participação do IRS previsto nestas disposições que o Recorrente se insurge – embora com especial ênfase na interpretação dada pelo STA ao art. 63º, nº 3, da LFL.
7. Assim, o STA defende no Acórdão recorrido que «os municípios das regiões autónomas [por oposição, portanto, aos demais municípios portugueses] não obtêm diretamente dos preceitos da Lei das Finanças Locais o reconhecimento do direito a montantes de IRS. Apenas através de decreto-legislativo regional obterão esse reconhecimento».
8. «Deste modo, [conclui], não cabia ao Estado proceder diretamente a transferência para os municípios das regiões autónomas a título de participação em IRS cobrado nessas regiões», até porque assim, diz, teria o Estado de dispor de mais de 100% das receitas fiscais do IRS cobrado nas regiões autónomas, mais concretamente, de 105% (100% para as regiões, mais 5% para os municípios nelas sedeados).
9. No entender do Recorrente, a interpretação que o STA faz da LFL e da(s) LOE(s) nos trechos transcritos do Acórdão recorrido é inconstitucional por violação do artigo 238.º, nº 2, da CRP, e sobretudo por violação do princípio constitucional imanente da igualdade entre os municípios continentais e insulares e do princípio constitucional da autonomia financeira local.
10. Com efeito, do Acórdão citado decorre que, na tese do STA, existem duas grandes categorias de municípios:
– os municípios continentais, que têm direito a receber do Estado os montantes anualmente inscritos no Orçamento de Estado a título de participação no IRS dos contribuintes da respetiva circunscrição territorial;
– os municípios insulares, a quem o Estado nada deveria a esse título e cujo direito à participação do IRS depende da existência do decreto legislativo regional previsto no art. 63.º/3 da LFL. Está lá afirmado: tais municípios apenas através de decreto-legislativo regional obterão esse reconhecimento [à participação do IRS].
11. No fundo, de acordo com o STA, o direito dos municípios portugueses à participação prevista na LFL e na LOE 2009 depende essencialmente da sua localização territorial e, em consequência disso, da necessidade, se forem insulares, da existência de um decreto legislativo regional.
12. Ou seja, apesar de constar da LOE para 2009 o direito do Município do Funchal receber uma determinada quantia a título de IRS, o STA vem dizer, afinal, que não é assim, que em relação aos municípios regionais há necessidade de um decreto legislativo regional – donde, necessariamente, não havendo esse decreto legislativo, também não há direito de participação do IRS.
13. Ora, essa interpretação da LOE 2009 (no sentido de que, apesar de ir lá inscrita uma transferência a favor do município do Funchal, afinal não é para valer com esse sentido) e do art. 63º, nº 3, da LFL (o direito de participação do IRS depende de um decreto legislativo) é inconstitucional e introduz uma distinção ou discriminação não permitida pela CRP.
14. Esta interpretação normativa preconizada pelo STA viola o princípio constitucional imanente da igualdade entre os municípios (sejam eles continentais ou insulares, é indiferente) – tratando-os de forma injustificadamente diferenciada – e o princípio constitucional da autonomia financeira dos municípios, pois, dessa forma, os municípios insulares ficam na dependência de um decreto legislativo (sem o qual não têm direito à participação do IRS).
15. E viola também o art. 238.º/2 da CRP, que prevê o direito de disposição regional das receitas fiscais e que prevê que a justa repartição dos recursos públicos se faz entre o Estado e as autarquias locais, não entre estas e as regiões autónomas. Viola igualmente o direito constitucionalmente consagrado a favor dos municípios de participarem, por direito próprio, nas receitas dos impostos diretos (art. 254º, nº 1).
16. E viola também o art. 227.º, nº 1, alínea j), porque dele decorre que as regiões autónomas têm direito a todas as receitas fiscais neles cobradas ou geradas.
17. E nem se diga, como faz o STA, que, «se pertencem às regiões autónomas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, incluindo o respetivo IRS (...) o Estado não pode transferir o que não tem». Esse é um problema que o Estado tem de resolver, não podendo sacrificar nessa solução os direitos dos municípios insulares, muito menos fazer depender o seu direito à participação de um decreto legislativo regional cuja existência eles não controlam.
18. Por outro lado, essa é também uma forma inconstitucional de interpretar o art. 19.º/1, alínea c), da LFL, nos termos da qual “a repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objetivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida através de várias formas de participação, entre as quais, como se estabelece no art. 20º, nº 1 (que é também interpretado de forma inconstitucional), uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, calculada sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS”.
19. É que esses preceitos são corolário do direito constitucional dos municípios a uma participação do IRS, independentemente da sua localização territorial, e do próprio regime constitucional que estabelece a esse respeito (da justa distribuição dos recursos públicos) uma relação direta entre o Estado e os municípios.
20. O que significa, portanto, que, no plano do direito constituído, a solução preconizada pelo STA é inconstitucional por envolver uma interpretação inconstitucional das normas constantes dos artigos 19.º, nº 1, alínea c), 20.º, nº 1, e 63.º, nº 3, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, à luz do artigo 238º, nº 2, da CRP, bem como os princípios constitucionais da igualdade entre municípios continentais e insulares, da autonomia local (face ao Estado e às Regiões Autónomas) e da autonomia administrativa e financeira local, e também à luz do artigo 227.º/1, alínea j) da CRP.
21. Acresce ainda que, de acordo com o Acórdão recorrido, «não se trata, aqui, de se permitir que o Governo suspenda restrinja ou cancele dotações orçamentais ou transferências que correspondam à execução financeira de obrigações legais». E prossegue esclarecendo que, na sua perspetiva, «do que se trata é de se verificar, no quadro da execução da autorização de transferência, que ela, afinal, não tem justificação legal para ser feita».
22. Quando é evidente que, no plano constitucional, essa transferência tem de ser feita nos termos prescritos nas LOE e tem de ser feita em termos iguais para os municípios, sejam eles quais forem.
23. O que significa que as normas em causa da LOE para 2009 foram interpretadas inconstitucionalmente, em função da localização (continental ou insular) dos municípios em causa; se os municípios forem continentais, a LOE para 2009 vale nos termos nela prescritos, se foram insulares, a LOE já não vale nos termos que dela resultam claramente, fundando-se essa distinção interpretativa numa leitura inconstitucional do artigo 42.º, nº 1, e mapa XLX anexo ã Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, em violação dos artigos e princípios constitucionais que têm vindo a ser referidos.
24. Em suma, a CRP não admite tratamento diferenciado dos municípios e o STA vem afirmar que, relativamente aos municípios insulares, o seu direito depende de um decreto legislativo regional, fazendo uma interpretação que se julga inconstitucional do art. 63º, nº 3, da LFL, que, como se disse nas alegações de recurso (e em todo o processo), tem um outro sentido e alcance.
25. Ou seja, se o legislador constitucional não distinguiu as autarquias, preconizando a justa repartição dos recursos públicos entre Estado e municípios, não pode agora o aplicador do direito, na interpretação da lei ordinária, vir distingui-las em termos discriminatórios, em função da sua mera localização (continental ou insular), impondo-se, ao menos, uma interpretação da lei, se fosse necessário, em conformidade com a CRP, com as normas e princípios que têm vindo a ser referidos.
26. Com efeito, no Acórdão recorrido, o STA funda-se numa certa interpretação do art. 63.º da LFL, em cujo n.º 1 se diz que “a presente lei é diretamente aplicável aos municípios e freguesias das Regiões Autónomas, com as adaptações previstas nos números seguintes”, e em cujo nº 3 se estabelece que “a aplicação às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 19º e no artigo 20º da presente lei efetua-se mediante decreto legislativo regional”.
27. E o que o STA diz a esse respeito é o seguinte: «(...) os municípios das regiões autónomas não obtêm diretamente dos preceitos da Lei das Finanças Locais o reconhecimento do direito a montantes de IRS. Apenas através de decreto-legislativo regional obterão esse reconhecimento».
28. Ora, esta interpretação é inconstitucional – e é isso que se pretende que o “guardião da CRP” analise e julgue.
29. E cremos que, como o Tribunal Constitucional terá oportunidade de confirmar, o que o legislador pretendeu com o art. 63º, nº 3, da LFL não foi condicionar a atribuição das verbas aos municípios das regiões autónomas à emanação de um decreto legislativo regional (até porque isso seria, é isso que sustenta o município do Funchal, interpretar a lei em desconformidade com o princípio da igualdade entre municípios regionais e continentais, com o princípio da autonomia financeira local e com o princípio da justa repartição dos recursos públicos entre o estado e os municípios), mas tão só fazer depender o exercício da faculdade prevista no n.º 4 do artigo 20.º da LFL (de prescindir de parte da percentagem de 5% cuja transferência lhes é legalmente conferida) aos termos que vierem (ou viessem) a ser determinados em tal diploma.
30. Em suma, enveredar pela tese do STA equivale a distinguir, sem fundamento constitucional bastante, os municípios regionais dos continentais, fazendo o direito daqueles depender de um decreto legislativo regional.
31. A título de nota final, cumpre referir que o Recorrente está ciente de que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a (in)constitucionalidade de algumas das disposições da LFL citadas em 1. supra, mas a verdade é que nunca o fez sob a perspetiva que agora importa e que, por essa razão, aqui se equaciona.
Termos em que,
Se requer a V. Exa. se digne admitir o presente recurso interposto ao abrigo do disposto no art. 70.º/1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, considerando supridos eventuais lapsos do requerimento inicial que estejam na origem do convite formulado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 75.º-A, n.º 5, da mesma Lei.»
O Recorrente apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. É inconstitucional a norma do artigo 63º, nº 3, da LFL, que prescreve (na interpretação dada pelo STA) que o direito à participação do IRS por parte dos municípios insulares depende de um decreto legislativo regional.
B. O desenho legal das finanças locais parte de uma relação exclusiva entre o Estado e os municípios, não havendo no quadro da lei qualquer previsão - nem na LFL, nem na (subsequente) Lei das Finanças Regionais - que incumba às Regiões Autónomas, em substituição do Estado, a transferência para os municípios das verbas a que estes têm direito por conta da sua participação no IRS.
C. É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a distinção feita (na interpretação do STA) pelo artigo 63º, nº 3, da LFL entre duas grandes categorias de municípios:
– os municípios continentais, que têm direito ('próprio') a receber do Estado os montantes anualmente inscritos no Orçamento de Estado a título de participação no IRS dos contribuintes da respetiva circunscrição territorial;
- os municípios insulares, a quem o Estado nada deveria a esse título e cujo direito à participação do IRS é meramente eventual e sempre derivado, encontrando-se dependente da existência do decreto legislativo regional previsto no art. 63.º/3 da LFL.
D. Há inconstitucionalidade na norma do art. 63º, nº 3, da LFL (se lida no sentido de que o direito de participação do IRS depende de um decreto legislativo) porque:
(i) Viola o princípio constitucional imanente da igualdade entre os municípios continentais e insulares (tratando-os de forma injustificadamente diferenciada, discriminando-os): considerar que uns municípios dependem do Estado e das LOE quanto à participação do IRS e que outros dependem do Governo Regional e de um decreto legislativo seu introduz uma injustificada distinção entre eles, pois a verdade é que a relação que os municípios insulares têm com os Governos Regionais acresce à relação que eles (e os municípios continentais) têm com o Estado, não a substitui;
(ii) Viola o princípio constitucional da autonomia financeira dos municípios, pois, a ser como o STA sustenta, os municípios insulares ficam na dependência de um decreto legislativo (sem o qual não têm direito à participação do IRS);
(iii) Viola o artigo 238.º, n.º 2, da CRP, que prevê que a justa repartição dos recursos públicos se faz entre o Estado e as autarquias locais, não entre estas e as regiões autónomas;
(iv) Viola o direito constitucionalmente consagrado a favor dos municípios de participarem, por direito próprio, nas receitas dos impostos diretos (art. 254º, nº 1); e
(v) Viola o “direito de disposição regional das receitas fiscais” previsto no art. 227.º, nº 1, alínea j), porque dele decorre que as regiões autónomas têm direito a todas as receitas fiscais neles cobradas ou geradas.
E. Se o Estado (ainda) é unitário (artigo 6.º CRP), então existe uma soberania única e um único sistema jurídico que decorre da mesma Constituição: O Estado não pode ser entendido ou lido como 'Estado' quando estão em causa as transferências para os municípios continentais, e como 'Regiões Autónomas' quando estão em causa as transferências para os municípios insulares.
F. A interpretação sustentada pelo STA 'inconstitucionaliza' também o art. 19.º/1, alínea c), e 20.º da LFL, preceitos que são corolário do direito constitucional dos municípios a uma participação do IRS (independentemente da sua localização territorial) e do próprio regime constitucional que estabelece a esse respeito (da justa distribuição dos recursos públicos) uma relação direta entre o Estado e os municípios.
G. O STA interpretou também inconstitucionalmente as normas do artigo 42º/1 e do Mapa XIX da LOE para 2009, em função da localização (continental ou insular) dos municípios em causa: se os municípios forem continentais, a LOE para 2009 vale nos termos nela prescritos, se foram insulares, a LOE já não vale nos termos que dela resultam claramente, fundando-se essa distinção interpretativa numa leitura inconstitucional do artigo 42.º, nº 1, e mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro.
H. O que o legislador pretendeu com o artigo 63º, nº 3, da LFL não foi condicionar a atribuição das verbas aos municípios das regiões autónomas à aprovação de um decreto legislativo regional, mas tão só fazer depender o exercício da faculdade prevista no n.º 4 do artigo 20.º da LFL (de prescindir de parte da percentagem de 5% cuja transferência lhes é legalmente conferida) aos termos que vierem (ou viessem) a ser determinados em tal diploma.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem declarar a inconstitucionalidade do artigo 63.º, n.º 3, da LFL (na interpretação conferida pelo STA no Acórdão recorrido), bem como a inconstitucionalidade da interpretação globalmente feita pelo STA, nesse Acórdão, ao artigo 42.º, nº 1, e mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro ('LOE 2009'), e aos artigos 19.º, nº 1, alínea c), e 20.º, nº 1, da LFL, a propósito da questão do direito de participação no IRS dos municípios 'insulares' ou 'regionais'.»
O Recorrido apresentou contra alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«I. O presente recurso mostra-se interposto pelo Município do Funchal, o qual peticiona que este Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade do art. 63º, nº 3, da LFL, na interpretação conferida peio Supremo Tribunal Administrativo no acórdão proferido no recurso nº 272/12, bem como a inconstitucionalidade da interpretação global efetuada pelo mesmo Tribunal ao art. 42º, nº 1 e mapa XIX anexo à Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro (LOE 2009), e arts. 19º, nº 1, al. c) e 20º, nº 1, da LFL, no que respeita à matéria do direito de participação no Imposto sobre o Rendimento de pessoas Singulares (IRS) dos municípios sitos na circunscrição territorial das Regiões Autónomas.
II. Porém, a interpretação que o STA faz das citadas normas no âmbito do identificado acórdão, não se mostra lesiva de quaisquer princípios e normas constitucionais, não devendo, consequentemente, ser proferida a peticionada decisão de declaração da inconstitucionalidade.
III. No acórdão impugnado pelo Município do Funchal, o STA delimitou a matéria controversa a decidir à questão de “saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou bem ao decidir, que o Estado, através do Ministério das Finanças, tinha o dever de transferir para aquele município, a título de participação nas receitas do IRS, a verba constante do mapa XIX do Orçamento de Estado para 2009, aprovada pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro”.
IV. Questão à qual o STA respondeu negativamente, fundamentando-se na correta interpretação das normas e dos princípios leais e constitucionais atinentes, em abalizada doutrina e em anterior jurisprudência expendida pelo Tribunal Constitucional.
V. Com efeito, alicerçado, designadamente na competente jurisprudência exarada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 499/08, de 14 de outubro (proc. nº 717/07), o STA concluiu que “não cabia ao Estado proceder diretamente a transferência para os municípios das regiões autónomas a título de participação em IRS cobrado nessas regiões.”.
VI. Conclusão essa que não pode ser entendida, ao contrário de como é interpretada pelo Recorrente, como a afirmação de que o Município do Funchal (e os restantes municípios sitos no território das RA) não tem direito à participação nas receitas do IRS cobrado aos/pago pelos residentes/sedeadas na respetiva circunscrição territorial, violando-se, assim, os supra identificados normas e princípios constitucionais.
VII. Mais o STA considerou que “Não teria sentido que o Governo procedesse a transferências que implicassem desrespeito da lei que se intentava cumprir ao contemplar-se no Orçamento”, pois do “que se trata é de verificar, no quadro da execução da autorização de transferência que ela, afinal, não tem justificação legal para ser feita”, já que, “se pertencem às regiões autónomas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, incluindo o respetivo IRS, conforme considerou o Tribunal Constitucional, o Estado não pode transferir o que não tem”.
VIII. A interpretação que o MFinanças efetua das normas cuja declaração de inconstitucionalidade (na interpretação que das mesmas faz o STA) é peticionada pelo Município do Funchal, não lesa os princípios da descentralização democrática, da autonomia administrativa, da justa repartição dos recursos públicos entre o Estado e as Autarquias e da necessária correção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau, tal como consignados na Constituição Portuguesa, mas, ao invés, respeita todos esses princípios, bem como os princípios da autonomia politica, legislativa e financeira das RA.
IX. Com efeito, constitui dado de relevância que o Recorrente Município do Funchal insere-se na RA da Madeira, o que impõe a necessidade de compatibilizar e coordenar o sistema legal de receitas a que as Regiões Autónomas têm direito relativamente ao IRS, previsto na Lei das Finanças das Regiões Autónomas (Lei Orgânica nº 1/2007, de 19 de fevereiro), com o sistema legal de receitas relativo à participação variável das Autarquias Locais nas receitas do IRS, previsto nos arts. 19º, nº 1, al. c) e 20º da Lei das Finanças Locais (Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro).
X. Com efeito, esses dois sistemas sobrepõem-se no que tange às receitas derivadas do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
XI. Nos termos do art. 5º, nº 1 da LFL, as finanças dos municípios devem ser coordenadas com as finanças do Estado, tendo especialmente em conta o desenvolvimento equilibrado de todo o país e a necessidade de atingir os objetivos e metas orça mentais traçados no âmbito das políticas de convergência a que Portugal se obrigou no seio da União Europeia.
XII. Para além das receitas previstas nos arts. 10º e 14º da LFL, as Autarquias Locais têm ainda direito a participar nos recursos públicos, nos termos e segundo os critérios definidos naquela lei, com vista ao respetivo equilíbrio financeiro vertical e horizontal, o que se realiza através das três formas de participação previstas no art. 19º, nº 1 da LFL.
XIII. Uma dessas formas é através da participação variável de (até) 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, prevista na al. c) do nº 1 do art. 19º e regulada no art. 20º da LFL.
XIV. Essa regulação visa apenas os municípios do Continente.
XV. Já que as especificidades dos municípios localizados nas Regiões Autónomas, bem como a necessidade de tornar o sistema mais eficiente e ajustado àquela realidade própria, justificaram a necessidade de adaptação dos preceitos contidos na LFL àqueles municípios.
XVI. Essa adaptação é efetuada nos termos do art. 63º da LFL, que preceitua que a “transferência de competências para os municípios das Regiões Autónomas bem como o seu financiamento, designadamente mediante o ajustamento do montante e critérios de repartição do FSM, efetuam-se nos termos a prever em decreto-legislativo da respetiva assembleia legislativa.” (nº 2 do citado artigo).
XVII. Podendo ainda as assembleias legislativas regionais definir as formas de cooperação técnica e financeira entre as Regiões e as respetivas autarquias locais, a fim de tornar o sistema mais eficiente e ajustado às especificidades das Regiões Autónomas e das autarquias regionais (art. 63º, nº 4).
XVIII. Com esse objetivo e no que toca especificamente à participação nas receitas do IRS, prevê-se que a aplicação do disposto na al. c) do nº 1 do art. 19º e no art. 20º da LFL às Regiões Autónomas se efetua mediante decreto-legislativo regional (art. 63º, nº 3).
XIX. A Lei Orgânica nº 1/2007, de 19 de fevereiro (LFRA) visa, entre outros aspetos, a regulação das relações financeiras entre as Regiões Autónomas e as autarquias locais nelas sedeadas (art. 2º).
XX. O Estado e as Regiões Autónomas estão vinculados ao princípio da solidariedade nacional (art. 7º), segundo o qual as últimas devem contribuir para o desenvolvimento equilibrado do país e para o cumprimento dos objetivos de política económica a que o primeiro esteja adstrito, e o Estado, por seu turno, deve, designadamente, assegurar as transferências do Orçamento de Estado previstas nos arts. 37º e 38º da LFRA.
XXI. As receitas do IRS devido ou retido nos termos do disposto no art. 16º da LFRA, constituem receita de cada Região Autónoma.
XXII. Ao abrigo do regime da autonomia político-financeira, cabe às Regiões Autónomas afetar as respetivas receitas às suas despesas (art. 227º, nº 1, al. j) da CRP).
XXIII. Aplicando literalmente e sem qualquer preocupação de coordenação os preceitos contidos na LFL e na LFRA, no que concerne às receitas do IRS devido/retido, o Estado acabaria por transferir para cada Região a totalidade do IRS nela cobrado (art. 16º da LFRA) e uma participação variável de 5% no IRS cobrado na mesma Região (arts. 19º, nº 1, al. c) e 20º da LFL), o que se traduziria numa transferência superior a 100% (100% + 5%), relativamente ao IRS.
XXIV. Em comparação, aos municípios sedeados no Continente caberia apenas o direito a uma participação variável de (até) 5% no IRS cobrado na respetiva circunscrição autárquica.
XXV. Com a necessária diminuição do montante global (nacional) das receitas do IRS a que o Estado tem direito, sem qualquer correspondência com a área territorial onde o imposto é gerado, ou seja, de forma manifestamente contrária à prevista na LFL.
XXVI. O que, ao invés de assegurar o equilíbrio (a igualdade e a solidariedade) entre todas as partes, geraria um desequilíbrio a favor das RA e dos seus municípios e em desfavor do Estado e dos municípios do Continente.
XXVII. Tal traduz-se numa situação de desigualdade injustificada/injustificável entre os municípios integrados num todo nacional.
XXVIII. Consubstanciando, uma manifesta violação do princípio da igualdade, na sua vertente territorial (art. 13º, nº 2 da CRP).
XXIX. Apesar de o regime das finanças locais dever contribuir, designadamente, para a promoção do desenvolvimento económico e para o bem-estar social das populações respetivas (art. 6º, nº 1 da LFL), e para a necessária correção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau, resultantes, v. g., de diferentes capacidades na arrecadação de receitas ou de diferentes necessidades de despesa (arts. 238º, nº 2 da CRP e 7º, nº 3 da LFL), tal não justifica que os municípios sitos numa Região Autónoma possam ser beneficiados extraordinariamente relativamente aos municípios do Continente, sendo-lhes entregue 100% de todo o IRS pago pelos residentes na região e, ainda, mais 5% do IRS cobrado na mesma.
XXX. Tal situação implica um tratamento desigual relativamente aos municípios sitos no Continente, desproporcionalmente desfavorável para os residentes/domiciliados fiscais respetivos e, em contrapartida, traduzindo-se num benefício desproporcional para os residentes/domiciliados nos municípios sitos na RA, sem que esteja demonstrada qualquer necessidade extraordinária que fundamente tal desigualdade.
XXXI. Deste modo, a solução, prevista na lei, de o Estado transferir para as regiões a totalidade (100%) da receita global do IRS e de serem depois as RA a aplicar, mediante decreto-legislativo regional, a participação de até 5% dos municípios regionais nas receitas do IRS geradas nas suas circunscrições territoriais, é a que melhor salvaguarda a eficiência do sistema de receitas, permitindo às Regiões que adotem as melhores formas de cooperação técnica e financeira entre elas e os municípios regionais.
XXXII. Solução essa que não traduz sequer um abdicar pelo Estado das suas competências (reserva de lei) em matéria tributária, nem uma invasão inaceitável da esfera de competência legislativa prevista na CRP, pois a LFL é clara ao estabelecer que a aplicação da participação dos municípios regionais se efetua mediante decreto-legislativo regional.
XXXIII. O entendimento jurídico expresso pelo MF relativamente aos normativos referenciados mereceu o do STA, expresso no seu acórdão, ora recorrido, proferido no recurso nº 272/12, o qual, na senda da interpretação do Tribunal Constitucional, salientou que 'os municípios das regiões autónomas não obtêm diretamente dos preceitos da Lei das Finanças Locais o reconhecimento do direito a montantes de IRS. Apenas através de decreto-legislativo regional obterão esse reconhecimento. No quadro daquela mesma interpretação, que aqui se acompanha, não pode obter acolhimento a tese da sentença recorrida de que o artigo 63º, nº 3, da LFL é uma norma inútil e de que entendida como a recorrente entende seria inconstitucional. E também não obtém acolhimento a tese do município quanto à interpretação da mesma norma. É que é o próprio Tribunal Constitucional que contraria essa tese.'
XXXIV. Concluindo o mesmo Venerando Tribunal no sentido de que: 'Por isso se entende a linguagem do recorrente no sentido de que a transferência para os municípios das regiões autónomas equivaleria, afinal, a transferir 105% isto é, a ficar na Região autónoma mais do que o próprio imposto – 100% para as regiões autónomas, mais 5% para as autarquias dessas regiões. (...)'.
XXXV. A aplicação das normas que preveem a participação de (até) 5% no IRS é prevista, pela primeira vez, na lei do Orçamento de Estado para 2009 (Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro).
XXXVI. Nos anos de 2007 e 2008, aplicou-se o regime previsto no art. 59º da LFL, o qual previa uma situação transitória com uma participação fixa no valor de 5%, calculado sobre a última coleta líquida de IRS disponível.
XXXVII. Assim, só ano de 2009 se constatou a sobreposição de regimes legislativos no tocante à participação nas receitas do IRS por parte das Regiões Autónomas e dos municípios nestas integrados territorialmente.
XXXVIII. Tendo sido necessário alterar a metodologia concernente a municípios das Regiões Autónomas quanto ao recebimento dos adiantamentos relativos à participação variável no IRS, de modo a conciliar os dois regimes de participação, evitando desigualdades entre os municípios do Continente e os das Regiões Autónomas.
XXXIX. A LFRA, enquanto lei orgânica tem valor reforçado nos termos da Constituição da República Portuguesa (arts. 112º, nº 3, 166º, nº 2 e 168º, nº 5 da CRP).
XL. Sendo, inerentemente, revestida de uma força específica de prevalência que lhe confere a capacidade ativa de proceder, designadamente, à supressão não substitutiva de normas legais anteriores.
XLI. O produto do IRS que constitui receita da RA da Madeira integra todos os elementos de conexão espacial relativamente à afetação territorial desse tipo de rendimentos.
XLII. A RA da Madeira tem, inequivocamente, direito a 100% da receita do IRS nela cobrada (art. 16º da LFRA).
XLIII. Cabe à região, substituindo-se ao Estado, proceder à entrega dos respetivos 5% da receita do IRS a favor dos seus municípios, relativa aos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial (art. 19º, nº 1, al. c) da LFL).
XLIV. Face ao exposto, só se pode concluir que o Estado Português emitiu atos legislativos que respeitam a CRP e toda a legislação infraconstitucional identificada, máxime de valor reforçado, e, na execução da LOE 2009 procedeu à entrega à RA Madeira das quantias a que os municípios sitos na circunscrição territorial daquela têm direito a título de participação de (até) 5% do IRS cobrado na Região, não tendo quaisquer dessas quantias nos seus cofres.
XLV. O que o Município do Funchal propugna é que, no respeito do disposto no art. 227º, nº 1, al. j), da CRP, o Estado deve entregar (i) à RAM a totalidade da receita de IRS cobrado/pago pelos residentes/sedeados na Região; e que, no respeito pelas disposições conjugadas dos arts. 19º, nº 1, al. c) e 20º da LFL e do art. 42º, nº 1, e mapa XIX anexo à Lei nº 64-A/2008, de 21 de dezembro (LOE 2009), o Estado deverá entregar (ii) aos municípios sedeados na RAM uma participação equivalente a 5% no IRS pago pelos residentes/sedeados nesses mesmos municípios, sendo que esses 5% seriam a retirar dos 100% do IRS cobrado no território continental ou pago pelos residentes/sedeados no continente (já que, como salienta o Recorrente, a RAM tem direito à totalidade do IRS cobrado na Região...).
XLVI. Isto é, na tese do Recorrente, o Estado deveria entregar à RAM e aos Municípios sitos naquele território geográfico, a totalidade da receita de IRS cobrada/paga pelos residentes/sedeados na Região (100%), mais 5% do IRS cobrado/pago pelos residentes/sedeados no continente,
XLVII. Enquanto que os municípios sedeados no território continental beneficiariam apenas de 90% do IRS cobrado/pago pelos residentes/sedeados no Continente (atendendo a que haveria de proceder de idêntico modo relativamente à RA dos Açores).
XLVIII. Destarte, inegável se torna concluir, face a tal argumentação, que os residentes/sedeados nos municípios das Regiões Autónomas seriam, injustificadamente beneficiados, relativamente aos residentes/sedeados nos municípios do Continente.
XLIX. O que é constitucionalmente inadmissível, como defendido pelo MFinanças, nas duas instâncias de contencioso administrativo que já apreciaram o diferendo, por violação dos arts. 13º (princípio da igualdade na sua vertente territorial), 103º (o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza), 225º, nº 3 (a autonomia político-administrativa das regiões exerce-se no quadro da constituição), 227º, nº 1, al. j) (as RA têm o poder de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, devendo exercê-lo de acordo com o princípio da efetiva solidariedade nacional) e 238º, nº 2 (o regime das finanças locais visa a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a correção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau).
L. E, igualmente, viola o princípio da necessidade de coordenação das finanças dos municípios com as finanças do Estado com vista ao desenvolvimento equilibrado do país (art. 5º, nº 1 da LFL), e os princípios da solidariedade nacional e da coordenação previsto nos arts. 8º e 11º da LFRA (na redação da Lei Orgânica nº 1/2010, de 29 de março).
LI. A questão da constitucionalidade e legalidade do disposto nos arts. 19º, nº 1, al. c), 20º e 59º da LFL, na sua aplicação aos municípios sitos numa RA, no caso a RA Madeira, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 499/98, de 14 de outubro (Proc. nº 717/07), exarado na sequência do requerimento do Presidente da Assembleia legislativa da RA Madeira no sentido de ser declarada a inconstitucionalidade e a ilegalidade daquelas normas.
LII. No identificado Acórdão, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade das citadas normas, declarando: 'nem por isso se pode concluir que os artigos 19.º, nº 1, al. c), 20.º e 59.º da atual Lei das Finanças Locais, que consagram a nova fórmula de cálculo das transferências do Estado para os municípios' (...) ''vieram chocar com a 'localização' dos impostos nas Regiões Autónomas. Isto porque aqueles preceitos, per se, são inoperantes em relação às Regiões Autónomas. Com efeito, a aplicação do regime neles contido efetuar-se-á, nos termos do n.º 3 do artigo 63.º daquele diploma legal, através de um decreto legislativo regional. Esta última disposição introduziu um mecanismo que não permite acolher o raciocínio do Requerente quanto à inconstitucionalidade dos preceitos que constituem o objeto do seu pedido de fiscalização. Pela simples razão de que o mesmo apenas questiona a aplicação do regime neles previsto (e não o regime em si) às Regiões Autónomas, e esta não decorre dos artigos 19.º, n.º 1, al, c), 20.º e 59.º da Lei n.º 2/2007, mas de um decreto legislativo regional que venha a ser criado pelas competentes assembleias legislativas regionais com vista a tomá-lo operativo nas respetivas regiões. Isto decorre de forma clara do n.º 3 do artigo 63.º, o qual abre uma exceção, quanto a este específico aspeto, à aplicabilidade direta do diploma das finanças locais às Regiões Autónomas prevista no nº 1 da mesma disposição.'
LIII. Por tudo o exposto, não se pode deixar de pugnar pela falência da acusação de inconstitucionalidade formulada contra as normas visadas pelo Município do Funchal.
Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a possibilidade do recurso não ser conhecido na parte em que questionava a constitucionalidade da interpretação normativa enunciada na decisão recorrida, segundo a qual o reconhecimento do direito dos municípios insulares a receberem uma participação na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial está dependente da publicação de decreto legislativo regional, o Recorrente sustentou o conhecimento do mérito desta questão.
Fundamentação
1. Da delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Após ter sido notificado para corrigir o requerimento de interposição de recurso inicialmente apresentado por o mesmo não especificar quais as concretas interpretações sustentadas pela decisão recorrida, cuja constitucionalidade o Recorrente pretendia ver fiscalizada, este apresentou um segundo requerimento em que nos seus pontos 7 e 8 transcreve os trechos do acórdão que enunciam os critérios normativos que entende violarem a Constituição.
Assim, o Recorrente pretende que seja apreciada a conformidade constitucional das interpretações normativas imputadas à decisão recorrida, segundo as quais:
- o reconhecimento do direito dos municípios insulares a receberem uma participação na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial está dependente da publicação de decreto legislativo regional.
- não compete ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das Regiões Autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial.
O Recorrente reporta estas interpretações quer ao disposto nos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da Lei da Finanças Locais (LFL), quer ao disposto no artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009 (ponto 5. do requerimento de interposição de recurso corrigido).
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada como seu fundamento decisivo. É necessário, pois, que esse critério normativo seja a ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Se é verdade que ambas as interpretações, cuja constitucionalidade é questionada no presente recurso, se encontram enunciadas na decisão recorrida, apenas a última constitui a sua ratio decidendi.
Na verdade, nesta ação apenas estava em causa o direito do Município do Funchal receber do Estado €. 4.570.533,33, correspondente à participação no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, relativa aos meses de março a dezembro de 2009. E a improcedência da ação teve como seu pressuposto lógico o entendimento, resultante da interpretação efetuada pela decisão recorrida dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da LFL, e do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, que não competia ao Estado proceder à transferência da peticionada quantia, uma vez que, nas palavras da decisão recorrida “se pertencem às regiões autónomas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, incluindo o respetivo IRS … o Estado não pode transferir o que não tem”. Se o direito dos Municípios receberem essa participação das regiões está ou não dependente de emissão pelas Assembleias Legislativas Regionais de um decreto regional, é outra questão que é irrelevante para a decisão do mérito da presente ação, pelo que a sua referência pela decisão recorrida deve ser encarada como um obicter dictum sem interferência causal no seu desfecho.
As duas questões são distintas e independentes, apesar de conexas, permitindo juízos autónomos sobre cada um delas.
Pelo exposto o objeto do recurso deve cingir-se à apreciação da constitucionalidade da interpretação dos artigos 19.º, n.º 1, c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da LFL, e do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, com o sentido de que não compete ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das regiões autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial.
2. Enquadramento normativo da questão no plano infraconstitucional e a jurisprudência do Tribunal Constitucional
A Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, sucessivamente alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio), estabelece no seu artigo 19.º, n.º 1, as formas através das quais é obtida a repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objetivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical.
Uma dessas formas, prevista na alínea c), do n.º 1, do referido artigo 19.º, consiste no direito de os municípios receberem, em cada ano «uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, calculada sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS».
Esta participação é regulada no referido artigo 20.º da LFL, onde se consagra, no n.º 1, o direito dos municípios, em cada ano, «a uma participação variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior, calculada sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS», acrescentando-se no n.º 2 que tal participação «depende de deliberação sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via eletrónica pela respetiva câmara municipal à Direção-Geral dos Impostos, até 31 de dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os rendimentos» e, no n.º 4, que «caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à taxa máxima definida no n.º 1, o produto da diferença de taxas e a coleta líquida é considerado como dedução à coleta do IRS, a favor do sujeito passivo, relativo aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a participação variável referida no n.º 1, desde que a respetiva liquidação tenha sido feita com base em declaração apresentada dentro do prazo legal e com os elementos nela constantes».
Por sua vez, o n.º 1, do artigo 25.º, da LFL, dispõe que os montantes das transferências financeiras correspondentes às receitas municipais previstas nas alíneas a), b) e na mencionada alínea c), do n.º 1, do artigo 19.º, são anualmente inscritos no Orçamento do Estado, prevendo o n.º 2, do referido artigo 25.º, que os montantes correspondentes «são inscritos nos orçamentos municipais como receitas correntes e transferidos por duodécimos até ao dia 15 do mês correspondente».
Cumpre ainda referir que, sob a epígrafe «Adaptação às Regiões Autónomas», o artigo 63.º, da LFL, estabelece, no seu n.º 1, que «a presente lei é diretamente aplicável aos municípios e freguesias das Regiões Autónomas, com as adaptações previstas nos números seguintes», dispondo o seu n.º 3 que «a aplicação às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º da presente lei efetua-se mediante decreto legislativo regional».
No que respeita às transferências do Estado para os municípios, em que se incluem as previstas na alínea c), do n.º 1, do artigo 19.º, e no artigo 20.º, da LFL, relativas ao ano de 2009, a Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2009), dispôs no seu artigo 1.º, n.º 1, o seguinte:
«1 - É aprovado pela presente lei o Orçamento do Estado para o ano de 2009, constante dos mapas seguintes:
[…]
h) Mapa XIX, com as transferências para os municípios;
[…]»
Por sua vez, o artigo 42.º, da referida Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, estabeleceu em que termos são calculados os montantes da participação das autarquias locais nos impostos do Estado, dispondo o seguinte, na parte que ora interessa:
«Artigo 42.º
Montantes da participação das autarquias locais nos impostos do Estado
1 - Em 2009, o montante global da participação dos municípios nos impostos do Estado é fixado em (euro) 2 521 351 422, sendo o montante a atribuir a cada município o que consta do mapa XIX em anexo.
2 - A participação prevista no número anterior é distribuída nos termos do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, da seguinte forma:
[…]
c) Uma participação de 5 % no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, calculada em (euro) 399 408 811, para efeitos de repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro.
3 - A participação variável no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, incluída na coluna (7) do mapa XIX em anexo, resulta da aplicação da percentagem deliberada pelo município aos rendimentos de 2007, nos termos previstos no n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, correspondendo a diferença, face ao valor da coluna (5) do mesmo mapa, à dedução à coleta em sede de IRS, nos termos do n.º 4 do artigo 20.º do mesmo diploma.
[…]».
Finalmente, do «MAPA XIX», aprovado pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, relativo às «TRANSFERÊNCIAS PARA OS MUNICÍPIOS PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS NOS IMPOSTOS DO ESTADO – 2009», consta o seguinte, no que respeita ao Município do Funchal:
«[…]
(Un: euros)
Municípios
FEF Final
FSM
IRS
Total
Corrente
Capital
Total
IRS PIE
% IRS
IRS a transferir
Transferências
(1)
(2)
(3)=(2)+(1)
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)=(3)+(4)+(7)
MADEIRA
…
…
…
…
…
…
…
…
…
FUNCHAL
5 264 761
3 509 840
8 774 601
2 008 002
5 484 640
5,00%
5 484 640
16 267 243
…
…
…
…
…
…
…
…
…
[...]»
Ou seja, de acordo com este mapa, no ano de 2009, o valor relativo à participação variável no IRS a transferir para o Município do Funchal era de €5.484.640,00.
Entretanto, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira havia pedido a fiscalização da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º e 59.º da Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro, no que respeita à aplicação às Regiões Autónomas e, no caso concreto, à Região Autónoma da Madeira, do regime de transferências do orçamento do Estado para os municípios, contido nas referidas normas.
A questão colocada ao Tribunal traduzia-se em saber se as normas em causa, por preverem a possibilidade de uma parcela do IRS cobrado nas regiões autónomas ser transferida para os municípios dessas regiões, seriam inconstitucionais, por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição, que estabelece que as regiões autónomas têm o poder de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas.
O Tribunal Constitucional, após verificar o exato alcance da reserva regional das receitas geradas e cobradas nas regiões autónomas no âmbito da sua autonomia financeira, garantida pelo referido artigo 227.º, alínea j), da Constituição, indagou se essa reserva regional resultava afetada pelo conteúdo dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º e 59.º, da Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro, no Acórdão n.º 499/2008, de 14 de outubro de 2008 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt). Duplamente limitado pelo pedido que apenas questionou o regime constante dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º e 59.º, da Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro, e pela legitimidade do Recorrente, que era restrita à violação dos direitos das regiões, o Tribunal Constitucional considerou que as normas sindicadas eram inoperantes em relação aos poderes das regiões autónomas, sendo o artigo 63.º, n.º 3, da Lei das Finanças Locais, que determinava a aplicação daquele regime aos municípios aí situados, através de decreto legislativo regional, pelo que concluiu que os preceitos legais fiscalizados não violavam o disposto no artigo 227.º, n.º 1, j), da Constituição.
E, em março de 2009, o Ministério das Finanças suspendeu as transferências relativas à participação variável no IRS para os municípios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, que até então vinha procedendo, por ter entendido que tais transferências não lhe eram impostas pela Lei das Finanças Locais, nem diretamente pela Lei do Orçamento.
Segundo a posição do Ministério das Finanças agora manifestada nos autos, terá entendido que o Estado não poderia substituir-se às Regiões Autónomas num ato que a Lei das Finanças Locais expressamente enunciava como sendo da sua competência, por força dos seus artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º e 63.º.
Assim, e no que respeita ao Município do Funchal, do referido valor de €5.484.640,00, constante do «MAPA XIX», aprovado pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, apenas foi transferida a quantia correspondente aos meses de janeiro e fevereiro de 2009.
Face à suspensão das transferências destas verbas para os municípios insulares, o Município do Funchal instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal ação administrativa comum contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública, pedindo a sua condenação no pagamento do montante correspondente às transferências respeitantes aos meses de março a dezembro de 2009.
Após a primeira instância ter deferido esta pretensão, o Supremo Tribunal Administrativo, na decisão ora recorrida, entendeu que não competia ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das regiões autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, tendo, com esse fundamento, revogado a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal e julgado improcedente a ação proposta pelo Município do Funchal.
Entretanto, e face à controvérsia gerada pela suspensão das transferências, relativas a esta participação nas receitas do IRS, para os municípios das regiões autónomas, o legislador veio a consagrar, na Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro (que alterou a Lei do Orçamento do Estado para 2011, aprovada pela Lei n.º 55 -A/2010, de 31 de dezembro), uma solução diversa da interpretação efetuada pela decisão recorrida.
Assim, o artigo 4.º da Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro, veio aditar à Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, o artigo 185.º-A que, sob a epígrafe «norma interpretativa», estabeleceu que «para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, […], a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma, devendo o Estado proceder diretamente à sua entrega às autarquias locais.» Esta norma veio a ser replicada no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2012) e no artigo 262.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2013.)
O Tribunal Constitucional já se pronunciou, em duas ocasiões, sobre o conteúdo normativo destes preceitos.
Com efeito, na sequência de pedidos de fiscalização da constitucionalidade da norma do artigo 185.º-A, aditada ao Orçamento de Estado para 2011, pela Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro, formulados por um grupo de deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e por um grupo de deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em que era suscitada a questão da conformidade constitucional de tal norma, face ao disposto no artigo 227.º, n.º 1, j), da Constituição, na parte em que dispõe de receitas da titularidade das regiões autónomas, ao determinar que «a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma», foi proferido o Acórdão n.º 412/2012 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), no qual o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de não declarar a inconstitucionalidade da norma em questão.
Posteriormente, na sequência da aprovação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2012), cujo artigo 212.º tem um conteúdo idêntico ao do artigo 185.º-A, aditado pela Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro, à Lei do Orçamento de Estado para 2011, foi apresentado um pedido de fiscalização da conformidade constitucional desta norma pelos deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores do grupo parlamentar do Partido Socialista, com fundamento na violação do disposto na alínea j), do n.º 1, do artigo 227.º, e no artigo 238.º da Constituição. O Tribunal Constitucional, tendo apreciado este pedido no Acórdão n.º 568/2012 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), decidiu não declarar a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, reiterando o entendimento perfilhado no Acórdão n.º 412/2012.
Feito este enquadramento da questão sub iudicio, no plano do direito infraconstitucional e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, cumpre agora abordar a questão cuja apreciação é requerida nos presentes autos.
Importa, antes de mais, salientar que a questão em apreciação neste recurso se coloca, no essencial, numa perspetiva distinta da adotada na jurisprudência acima citada.
Com efeito, nas questões apreciadas nos acórdãos anteriores estava em causa o direito das regiões autónomas a não serem privadas de parte das receitas de IRS nelas cobrado, perdendo-as a favor dos municípios dessas regiões, por força de uma norma emitida pelo Estado, constando essa norma dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), e 20.º, da LFL, aplicada diretamente ou com o sentido dado pelas normas interpretativas dos artigos 185.º-A e 212.º, acima referidos.
Nos presentes autos, a questão coloca-se, sobretudo, na perspetiva do direito dos municípios dessas regiões a obterem, diretamente do Estado, as transferências relativas a IRS previstas no artigo 19.º, n.º 1, alínea c), e 20.º, da LFL.
Importa, pois, proceder à análise desta questão, face às normas e princípios constitucionais cuja violação poderá estar em causa.
3. Do mérito do recurso
O Recorrente sustenta que a interpretação normativa sindicada viola os princípios constitucionais da autonomia financeira dos municípios, da igualdade entre os municípios e da justa distribuição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias, o direito constitucionalmente consagrado a favor dos municípios de participarem, por direito próprio, nas receitas dos impostos diretos, e, ainda, o “direito de disposição regional das receitas fiscais” previsto no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição.
Começando pela invocação deste último parâmetro, de acordo com a argumentação do Recorrente, a decisão recorrida, ao considerar que têm de ser as Regiões Autónomas a transferir para os municípios nela situados o montante correspondente à sua participação no IRS, violaria o “direito de disposição regional das receitas fiscais”, consagrado no referido artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição.
Efetivamente, o critério normativo sob fiscalização tem como seu pressuposto que a participação dos municípios situados nas Regiões Autónomas na receita variável de IRS, prevista nos artigos 19.º, n.º 1, alínea c) e 20.º, da LFL, faz parte das verbas relativas ao IRS cobrado ou gerado nas Regiões, estando por isso incluída nas receitas destas.
Contudo, conforme este Tribunal já afirmou nos acórdãos, supra referidos, n.º 412/12 e 568/12, seguindo a orientação já anteriormente definida no Parecer da Comissão Constitucional n.º 28/78, a compatibilização do direito constitucional das Regiões disporem das receitas de IRS nelas cobradas ou geradas (artigo 227.º, n.º 1, alínea j)) com o direito também constitucional dos municípios participarem por direito próprio nas receitas provenientes dos impostos diretos (artigo 254.º, n.º 1, da Constituição), justifica que o primeiro dos direitos se encontre limitado na medida da necessidade de dar cumprimento ao segundo, pelo que o critério sob fiscalização, ao efetuar essa compatibilização, não ofende o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição.
Quanto aos restantes parâmetros constitucionais invocados, os mesmos tem como núcleo central o princípio da autonomia das autarquias locais.
Este princípio encontra-se consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição, o qual dispõe que «o Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública.»
Significa isto que o princípio da unidade do Estado, consagrado nesta norma, e que constitui um dos princípios estruturantes do nosso ordenamento jurídico-constitucional, não impede a existência de formas de descentralização territorial, concretizadas, designadamente, através da existência de autarquias locais.
A consagração constitucional da autonomia local traduz, assim, o reconhecimento da existência de um conjunto de interesses públicos próprios e específicos de populações locais, que justifica a atribuição aos habitantes dessas circunscrições territoriais do direito de decisão no que respeita à regulamentação e gestão, sob a sua responsabilidade e no interesse dessas populações, de uma parte importante dos assuntos públicos. Este reconhecimento tem pressuposta a ideia de que as autarquias locais têm de dispor de património e receitas próprias que permitam conferir operacionalidade e tornar praticável a prossecução do interesse público, concretamente, dos interesses específicos e próprios das respetivas populações. Assim, para que possam levar a cabo o conjunto de tarefas que estão incluídas nas suas atribuições e competências, é colocada à disposição das autarquias locais um conjunto de mecanismos legais e operacionais suscetíveis de as tornarem exequíveis, designadamente a possibilidade de disporem de património e receitas próprias, gozando, assim, de autonomia financeira.
Esta autonomia financeira é concretizada pelo legislador constitucional mediante o reconhecimento às autarquias locais da titularidade de património e finanças próprios, bem como da possibilidade de dispor de poderes tributários (artigo 238.º, n.ºs 1 e 4) e, quanto aos municípios, como acima já se referiu, através do reconhecimento da participação, “por direito próprio e nos termos definidos pela lei, nas receitas provenientes de impostos diretos” e do direito de disporem de receitas próprias (artigo 254.º, n.ºs 1 e 2).
Por outro lado, o artigo 238.º, n.º 2, da Constituição, ao dispor que «o regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau» tem grande importância na forma como deve ser estruturada a autonomia financeira das autarquias locais: o regime de autonomia financeira local deverá ter como finalidades a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias (numa manifestação do princípio da solidariedade) e a necessária correção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau (numa manifestação do princípio da igualdade).
Tendo em conta o quadro normativo constitucional acima descrito, importa, pois, apreciar a interpretação dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da Lei da Finanças Locais, e do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, com o sentido de que não compete ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das regiões autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial.
Recorde-se que o Recorrente sustenta que a interpretação normativa sindicada viola os princípios consignados neste artigo 238.º, n.º 2, da Constituição, uma vez que a mesma prevê que a justa repartição dos recursos públicos se faz entre o Estado e as autarquias locais e não entre estas e as regiões autónomas, defendendo ainda que diferencia injustificadamente os municípios continentais e insulares, assim como contraria o disposto no artigo 254.º, n.º 1, da Constituição, ao excluir as autarquias insulares de participarem nas receitas do IRS cobrado aos seus munícipes.
Importa desde logo constatar que o critério normativo enunciado não exclui os municípios insulares de participarem nas receitas do IRS cobrado aos seus munícipes, limitando-se apenas a recusar que seja sobre o Estado que recai a obrigação de proceder à transferência direta de tais participações, uma vez que as mesmas integram as verbas relativas ao IRS que são entregues pelo Estado às Regiões, não se mostrando por isso violado o disposto no artigo 254.º, n.º 1, da Constituição.
Quanto à invocação da necessidade de ser o Estado a proceder diretamente à transferência para todos os municípios das verbas correspondentes à referida participação nas receitas do IRS, reconhece-se que a autonomia local, incluindo a sua vertente financeira é assegurada perante o Estado, sendo entre ele e todas as autarquias que o artigo 238.º, n.º 2, da Constituição, exige que se faça uma justa repartição dos recursos públicos.
Na verdade, os fenómenos de descentralização regional e autárquica são distintos, processando-se as relações de autonomia dos municípios situados nas Regiões entre o Estado e esses municípios e não entre estes e as Regiões.
Daí que se possa dizer que as autarquias situadas no território dos Açores e da Madeira se encontram politica e administrativamente mais próximas do Estado do que as respetivas Regiões Autónomas, não existindo entre o Estado, as Regiões e as autarquias nelas localizadas uma relação hierárquica, linear e faseada (António Lobo Xavier e Francisco Mendes da Silva, em “A repartição dos recursos públicos entre o Estado, as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais: uma abordagem a propósito de controvérsia recente acerca do direito dos municípios a uma participação variável no IRS”, em Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. I, pág. 907, da ed. de 2012, da Almedina).
Se é este efetivamente o modelo das relações financeiras entre o Estado e as autarquias situadas nas Regiões, a necessidade já acima referida de compatibilizar o direito constitucional das regiões disporem das receitas de IRS nelas cobradas ou geradas (artigo 227.º, n.º 1, alínea j)) com o direito também constitucional dos municípios participarem por direito próprio nessas mesmas receitas (artigo 254.º, n.º 1, da Constituição), pode justificar que esta última participação, não seja realizada através duma transferência direta das respetivas verbas do Estado para aquelas autarquias, quando este já entrega a totalidade dessas receitas às Regiões.
Note-se que não deixa de aceitar-se que recai sobre o Estado o dever de reconhecer o direito a essa participação, apenas ficando desonerado da obrigação de a realizar diretamente para os municípios insulares, tendo em conta que a totalidade das receitas sobre as quais recai esse direito de participação é por ele entregue às Regiões.
Daí que a compatibilização dos direitos parcialmente conflituantes perfilhada pela solução sindicada não resulta necessariamente numa delegação de competências da Assembleia da República nos órgãos de governo regional, proibida pelo artigo 111.º, n.º 2, da Constituição, uma vez que, segundo esta interpretação, o Estado apenas não está obrigado a efetuar a operação material de transferência direta para os municípios insulares das verbas correspondentes à sua participação nas receitas de IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, o que não significa que não deva ser o legislador nacional a reconhecer o direito a essa participação.
Pode a solução adotada pelas normas interpretativas constantes do artigo 185.º - A, da Lei n.º 55-A/2010, aditado pelo artigo 4.º da Lei n.º 60-A/2011, de 30 de novembro, e no artigo 212.º, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e no artigo 262.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, apresentar uma maior coerência com o quadro constitucional das relações financeiras Estado/autarquias insulares, uma vez que determina que a entrega das receitas de IRS devem ser transferidas para as Regiões já deduzidas dos montantes apurados, por aplicação do disposto nos artigos 19.º, alínea c), e 20.º, da LFL, cabendo, depois, ao Estado transferi-los diretamente para os municípios das Regiões. Contudo, num cenário em que as referidas receitas sejam entregues, na sua totalidade, às Regiões, uma interpretação que exclua o Estado da obrigação de proceder à transferência direta de parte dessas receitas aos municípios insulares, encontra-se justificada, não ofendendo o disposto no artigo 238.º, n.º 2, da Constituição.
O Recorrente invoca ainda que a solução sustentada na decisão recorrida diferencia injustificadamente os municípios continentais e insulares.
Na verdade, tal como acontece em relação aos restantes sujeitos jurídicos, também no que respeita especificamente às autarquias locais pode ser convocado o princípio da igualdade enquanto fator de controlo da correção do tratamento que lhes é dispensado pelo ordenamento jurídico, sendo este, aliás, um dos princípios estruturantes do seu estatuto constitucional.
Relativamente aos municípios, sendo pacífico que estes não se encontram todos numa situação de igualdade entre si, é por força do reconhecimento das diferenças entre eles que se preveem na lei instrumentos de natureza financeira ou outra, tendo em vista atenuar e compensar essas diferenças. Assim, poderá justificar-se a existência de diferenças de regime jurídico entre os municípios, justificadas pelas concretas condições de cada um (condições geográficas, demográficas, sociais, económicas, etc.), podendo também ser introduzidos e ponderados regimes jurídico-financeiros concretos diferenciados em função dessas condições.
Uma das áreas em que se manifesta esta vertente do princípio da igualdade entre as autarquias é, como vimos, justamente no plano da autonomia financeira local e, concretamente, no âmbito das transferências do Estado para os municípios, domínio em que é concebível a introdução de discriminações positivas, tendo em vista a obtenção de verdadeira igualdade entre municípios.
Um dos instrumentos utilizados para proceder a uma correção da divisão de recursos financeiros entre autarquias, é a redistribuição de receitas a favor dos municípios resultante da participação destes no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial.
Esta participação, prevista nos já referidos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), e 20.º, da LFL, corresponde a uma concretização legislativa do disposto no artigo 254.º, n.º 1, da Constituição, que, na sequência do princípio geral previsto no n.º 1 do artigo 238.º e enquanto manifestação do princípio da «justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias», previsto no n.º 2 desse mesmo artigo 238.º, estabelece que «os municípios participam, por direito próprio e nos termos definidos pela lei, nas receitas provenientes dos impostos diretos».
Ora, o critério normativo sob fiscalização apenas diferencia o tratamento dos municípios insulares dos restantes, por considerar que tendo as regiões direito às receitas do IRS que nelas é cobrado ou gerado, deixa de recair sobre o Estado a obrigação de proceder à entrega a esses municípios da sua participação nas referidas receitas, como sucede relativamente aos demais. Não estamos, pois, perante uma diferenciação de tratamento quanto ao conteúdo do direito à participação dos diferentes municípios, mas sim quando ao modo do seu exercício, mais concretamente quanto à entidade a quem incumbe realizá-lo.
Tendo em consideração que as receitas de IRS, relativamente às quais aqueles municípios têm direito a participar, pertencem às Regiões onde eles se encontram, contrariamente ao que sucede com os restantes municípios, a desoneração do Estado do dever de entregar diretamente as verbas correspondentes aos municípios insulares, não se revela arbitrária, não ofendendo a exigência de um igual tratamento dos municípios.
Face às razões expostas conclui-se que a interpretação dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da Lei da Finanças Locais, e do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, com o sentido de que não compete ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das Regiões Autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, não ofende qualquer parâmetro constitucional, designadamente os princípios constitucionais da autonomia financeira dos municípios, da igualdade entre os municípios e da justa distribuição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias, o direito constitucionalmente consagrado a favor dos municípios de participarem, por direito próprio, nas receitas dos impostos diretos, e, ainda, o “direito de disposição regional das receitas fiscais” previsto no artigo 227.º, nº 1, alínea j), da Constituição, devendo, assim, ser julgado improcedente o recurso interposto pelo Município do Funchal.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não conhecer do recurso na parte em que se requereu a fiscalização da constitucionalidade da interpretação dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da Lei da Finanças Locais, e do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, segundo a qual o reconhecimento do direito dos municípios insulares a receberem uma participação na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial está dependente da publicação de decreto legislativo regional;
b) não julgar inconstitucional a interpretação dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da Lei da Finanças Locais, e do artigo 42.º, n.º 1, e do mapa XIX anexo à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, com o sentido de que não compete ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das Regiões Autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial;
e, em consequência,
c) julgar improcedente, nesta parte, o recurso interposto pelo Município do Funchal.
Custas do recurso pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1).
Lisboa, 15 de Julho de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins - Pedro Machete (vencido conforme declaração de voto) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencido, desde logo, quanto à delimitação do objeto do recurso (alínea a) da decisão).
A decisão recorrida, cumpre recordá-lo, fundou-se simultaneamente em duas ordens de razões (cfr. o texto do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de junho de 2012, Processo n.º 272/12, em http://www.dgsi.pt/):
(i) A Lei das Finanças Locais, ao prever a participação dos municípios em IRS, não retira às regiões autónomas receitas que lhes estejam constitucionalmente destinadas, uma vez que por força do disposto no respetivo artigo 63.º, n.º 3, tais regiões só verão escapar essas receitas se tal for a vontade expressa dos competentes órgãos regionais, plasmada em decreto legislativo regional, não competindo por isso ao Estado proceder diretamente à transferência para os municípios das regiões autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial;
(ii) A previsão na Lei do Orçamento do Estado para 2009 de dotações ou transferências para os municípios sedeados nas regiões autónomas, na convicção errónea da respetiva exigibilidade legal (nomeadamente, com base numa errada interpretação do disposto na Lei das Finanças Locais), não constitui fundamento direto e autónomo de um dever do Estado de entregar às aludidas autarquias as verbas em causa.
No sentido da existência de dois fundamentos depõe de forma inequívoca o seguinte trecho da decisão recorrida:
« 2.2.5. Mas será que se pode afirmar, em qualquer caso, que uma coisa será não decorrer da Lei das Finanças Locais o direito a montantes de IRS, outra coisa será decorrer esse direito diretamente da Lei do Orçamento ou, pelo menos, decorrer da Lei do Orçamento uma vinculação de transferência. Esta é ainda, de algum modo, a tese da sentença, e é a tese do município recorrido […].» (itálicos aditados).
Em relação a ambas as citadas ordens de razões, o tribunal a quo concluiu no sentido de não competir ao Estado “proceder diretamente à transferência para os municípios das regiões autónomas das verbas relativas à participação destes na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial”. E tal afirmação é apenas isso mesmo: uma conclusão, não dissociável das premissas adotadas.
Aliás, na decisão recorrida, a conclusão em apreço vem expressamente afirmada em relação à primeira das aludidas razões:
« 2.2.4. O Tribunal Constitucional teve oportunidade de discutir a constitucionalidade e legalidade do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, c), 20.º e 59.º da Lei n.º 2/2007, na sua aplicação aos municípios da Região Autónoma da Madeira, no processo n.º 717/07, pelo acórdão n.º 499/08, de 14.10.2008 […]
No quadro da interpretação do Tribunal Constitucional, portanto, os municípios das regiões autónomas não obtêm diretamente dos preceitos da Lei de Finanças Locais o reconhecimento do direito a montantes de IRS. Apenas através de decreto-legislativo regional obterão esse reconhecimento. No quadro daquela mesma interpretação, que aqui se acompanha, não pode obter acolhimento a tese da sentença recorrida de que o artigo 63.º, n.º 3, da LFL é uma norma inútil e de que entendida como a recorrente entende seria inconstitucional. E também não obtém acolhimento a tese do município quanto à interpretação da mesma norma. É que é o próprio Tribunal Constitucional que contraria essa tese.
Deste modo, não cabia ao Estado proceder diretamente a transferência para os municípios das regiões autónomas a título de participação em IRS cobrado nessas regiões.»
Em suma: a norma extraída dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º, n.º 1, e 63.º, n.º 3, da Lei das Finanças Locais, interpretados no sentido de que a participação dos municípios sedeados nas regiões autónomas na percentagem variável de até 5% do IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial está dependente do decreto legislativo regional a que se refere o citado artigo 63.º, n.º 3, integra a ratio decidendi da decisão recorrida, não podendo por isso ser considerada um simples obiter dictum. Consequentemente, a mesma norma deveria integrar o objeto do presente recurso de constitucionalidade.
2. Por outro lado – e agora quanto ao mérito do recurso de constitucionalidade, na parte em que não foi conhecido -, a citada norma viola a proibição de delegação de poderes contida no artigo 111.º, n.º 2, da Constituição.
Com efeito, a legislação sobre o estatuto das autarquias locais inclui o regime das finanças locais e integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (cfr. o artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da Constituição). Acresce que se trata de matéria reservada à legislação estadual e sobre a qual as regiões autónomas não podem legislar (cfr. o artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da Constituição). Deste modo, e com referência aos municípios sedeados nas regiões autónomas, a «lei» prevista nos artigos 238.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, da Constituição – a lei que define a participação dos municípios nas receitas dos impostos diretos – só pode ser uma lei da Assembleia da República ou um decreto-lei autorizado; nunca um decreto legislativo regional.
Pelo exposto, a Assembleia da República não pode delegar nas regiões autónomas o poder de definição legal dos termos da participação dos municípios sedeados nessas mesmas regiões nas receitas dos impostos diretos.
Aliás, tal delegação - para mais totalmente «em branco», ou seja, sem uma densificação mínima de critérios -, ao suprimir no âmbito regional e sem fundamento constitucional bastante a relação imediata Estado-municípios, atenta igualmente contra o princípio da unidade do Estado (artigo 6.º, n.º 1, da Constituição). Com efeito, é a organização democrática deste que compreende a existência de autarquias locais, pelo que, em regra, as relações entre estas e o Estado são diretas e autónomas das relações com outras entidades de base territorial, nomeadamente com as regiões autónomas (cfr. o citado artigo 6.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 235.º, n.º 1, da Lei Fundamental). Estas últimas apenas se relacionam com as autarquias locais nos termos expressamente previstos na Constituição (cfr., por exemplo, o artigo 227.º, n.º 1, alínea m), quanto ao poder de tutela).
3. Vencido também quanto ao fundo da decisão – nomeadamente, a alínea b) do dispositivo -, pelas razões constantes da minha declaração de voto relativa ao Acórdão deste Tribunal n.º 568/2012, no que se refere ao entendimento da compatibilização do direito constitucional das regiões autónomas a disporem das receitas de IRS nelas cobradas ou geradas com o direito – também constitucional – dos municípios de participarem por direito próprio nas receitas provenientes dos impostos diretos (cfr., respetivamente, os artigos 227.º, n.º 1, alínea j), e 254.º, n.º 1, ambos da Constituição).
4. Vencido, ainda, por a decisão quanto ao mérito do recurso de constitucionalidade admitir diferenças estatutárias entre municípios sedeados no continente e municípios sedeados nas regiões autónomas não previstas constitucionalmente. No plano financeiro, a Constituição apenas prevê discriminações positivas (a “correção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau” prevista no artigo 238.º, n.º 2), a estabelecer obrigatoriamente por lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado, conforme referido supra no n.º 2 da presente declaração de voto.
Pedro Machete