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Processo n.º 358/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado por decisão do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, em cúmulo jurídico, pela prática de um crime de furto qualificado e de dois crimes de falsificação de documentos, na pena única de seis anos de prisão.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, mas o recurso não foi admitido no tribunal recorrido, com fundamento em extemporaneidade. Reclamou, então, ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal. Por despacho do Vice-Presidente da Relação de Évora, a reclamação foi indeferida. Na sequência de pedidos de aclaração e correção, igualmente indeferidos, veio então interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), enunciando nos seguintes termos a questão de constitucionalidade:
« B. QUESTÃO SUSCITADA
Quando, em processo penal, um arguido é julgado na ausência, é condenado (no caso em 6 anos de prisão), o seu defensor requer que o Tribunal o notifique da data em que o seu representado venha a ser ele próprio pessoalmente notificado da decisão condenatória (porque é desse momento processual que se inicia o prazo para eventual recurso), o Tribunal incorpora esse requerimento nos autos, mas nunca decide nada, e, designadamente, quando o arguido/condenado acaba um dia por ser notificado, e nada disto é dado a conhecer ao defensor, pode ou não dizer-se que o Tribunal onde a decisão condenatória foi proferida cumpriu ou não cumpriu o constitucional princípio de garantia da defesa (art. 32º, nº 1, da CRP)?
[…]
D. CONCLUSÕES
1ª É materialmente inconstitucional a interpretação do art. 32º, nº 1, CRP, segundo a qual quando, em processo penal, um arguido é julgado na ausência, é condenado (no caso em 6 anos de prisão), o seu defensor requer que o Tribunal o notifique da data em que o seu representado venha a ser ele próprio pessoalmente notificado da decisão condenatória (porque é desse momento processual que se inicia o prazo para eventual recurso), o Tribunal incorpora esse requerimento nos autos, mas nunca decide nada, e, designadamente, quando o arguido/condenado acaba um dia por ser encontrado e notificado, e nada disto é dado a conhecer ao defensor, foi incumprido o constitucional princípio de garantia da defesa (art. 32º, nº 1, da CRP).
2ª O recurso de 31/12/2012 foi atempadamente introduzido em Juízo»
2. Por despacho de 10 de maio de 2013, o relator, nos termos dos n.ºs 5, 6 e 7 do artigo 75.º-A da LTC, convidou o recorrente a indicar em termos claros, precisos e concisos, qual ou quais as normas ou interpretações normativas cuja constitucionalidade pretende ver apreciadas, de tal modo que, se este Tribunal as viesse a julgar desconformes com a Constituição, as pudesse enunciar claramente na decisão que viesse a proferir e, bem assim, a peça processual em que suscitou a questão (ou questões) de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada.
Em resposta ao citado convite, o recorrente veio dizer o seguinte:
« (a) normas ou interpretações normativas cuja constitucionalidade pretende ver apreciadas:
1.Entende estar em causa o alcance do que dispõe o art. 32º, nº 1, da CRP.
2. De modo mais claro, conciso e preciso: em processo penal, quando um arguido é julgado na ausência, é condenado (no caso em 6 anos de prisão), o seu defensor requer que o Tribunal o notifique da data em que o seu representado venha a ser ele próprio pessoalmente notificado da decisão condenatória (porque é desse momento processual que se inicia o prazo para eventual recurso), o Tribunal incorpora esse requerimento nos autos, mas nunca decide nada, e, designadamente, quando o arguido/condenado acaba um dia por ser encontrado e notificado, e nada disto é dado a conhecer ao defensor -, se é conforme à Constituição a interpretação do art. 32º, nº 1, CRP, segundo a qual é irrelevante que essa pedida notificação ao defensor tenha ou não tenha sido feita: o recorrente entende que não o é, que bem pelo contrário, esse pedido do defensor é relevante, e, por essa via, e em concreto, precisamente por não lhe ter sido dado qualquer relevo, foi incumprido o constitucional princípio de garantia da defesa (art. 32º, nº 1, da CRP).
(b) peças processuais em que suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa indicadas na alínea a) supra
Fê-lo:
[…]
• na reclamação (art. 405º, nºs 1-3, CPP), de 07/02/2013, a fls. , que dirigiu ao Sr. Presidente/TRE, relativamente ao despacho /1ª instância, de 21/01/2013, a fls. De não admissão (por extemporâneo) daquele recurso (ordinário), este último interposto em 31/12/2012, a fls.
[…]» (sublinhado no original)
Na dita reclamação pode ler-se, a propósito da questão de constitucionalidade (fls. 4):
« 6. [A] dúvida reside em saber se, tendo o defensor feito o que a fls. 388 fez [- requerimento subscrito pelo defensor do ora recorrente e dirigido ao tribunal de primeira instância no sentido de ser dado conhecimento ao mesmo defensor da data em que o seu representado viesse a ser notificado do acórdão do tribunal coletivo que o condenou na pena de seis anos de prisão -], se isso não teve importância nenhuma, ou se pelo contrário a teve, e neste caso qual!
7. A resposta do reclamante é:
7.1. O requerimento do seu defensor, de fls. 388, não é um “fait divers”. Era legítimo e razoável) no quadro da defesa. Merecia ter sido decidido. E deferido.
7.2. E a consequência de nada disso ter sido feito é a de que o prazo de interposição de eventual recurso do acórdão condenatório só se iniciou a partir do momento em que o defensor teve conhecimento do que quer que fosse de onde pudesse ser-lhe exigível ter concluído que a notificação ao seu representado já tinha acontecido.
7.3. Não dar relevo a esse requerimento de fls. 388 significa preterição e ilegítima preterição) do princípio constitucional das garantias da defesa em processo criminal – Ou seja violação direta do preceito constitucional (inconstitucionalidade material)
(art. 32º, nº 1, CRP: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa…”)»
E a esta questão, a decisão recorrida respondeu o seguinte (fls. 81):
« Dir-se-á, que o princípio constitucional ínsito do art. 32º, nº 1 da CRP, não tem de forma alguma o alcance pretendido, ou seja, de impor ao tribunal que se substitua ao arguido e ao seu defensor no exercício da defesa.
O direito de defesa ficou assegurado com a notificação do acórdão condenatório ao defensor e ao arguido e a este com indicação da faculdade de recorrer e respetivo prazo e de para o efeito deveria contactar o seu defensor.
A partir daqui competia ao arguido ser diligente e zelar pelos seus interesses.»
3. Na sequência desta resposta, foi proferida a Decisão Sumária n.º 269/2013, pela qual foi decidido não conhecer do objeto do presente recurso de constitucionalidade, por se considerar, por um lado, que o objeto do recurso apresentado é inidóneo – uma vez que a inconstitucionalidade é imputada diretamente à decisão recorrida e não à norma em si mesma considerada – e, por outro, que o recorrente não logrou indicar qualquer norma ou interpretação normativa de modo a poder integrar um processo de fiscalização concreta.
Com efeito, considerou o relator:
« 4. É manifesta a inidoneidade do objeto do presente recurso de constitucionalidade.
4.1.Desde logo, porque a inconstitucionalidade é imputada – na reclamação de fls. 1 e seguintes e no requerimento de recurso de constitucionalidade, entendido à luz da resposta dada ao despacho convite do relator - diretamente à decisão recorrida e não à norma em si mesma considerada: o recorrente discorda da não atribuição de relevância ao requerimento por si apresentado a fls. 388 dos autos principais, para efeitos do início de contagem do prazo de recurso ordinário a interpor do acórdão condenatório proferido em primeira instância.
Porém, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional circunscreve-se ao controlo de inconstitucionalidades normativas, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional) e traduz-se, por regra, no reexame (e não num primeiro julgamento) de tais questões. É o que resulta da exigência formulada no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC quanto ao objeto do recurso de constitucionalidade: a decisão de um tribunal que aplique norma cuja inconstitucionalidade (questão de inconstitucionalidade normativa) haja sido suscitada durante o processo (aquela questão deve poder ser conhecida e decidida pela decisão recorrida).A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada à norma aplicada daqueles em que é imputada diretamente a decisão do caso concreto radica em que, na primeira hipótese, é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto, na segunda hipótese, está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
In casu não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa na reclamação relacionada com o início de contagem do prazo de recurso a interpor do acórdão que condenou o ora recorrente, pelo que a decisão ora recorrida também não a decidiu nem tinha de o fazer.
4.2. Em segundo lugar, o recorrente nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade nem na resposta ao convite do relator indicou qualquer norma ou dimensão normativa ancorada em preceito estabelecido por ato de um poder normativo público (ou, pelo menos, e de modo a abranger as convenções coletivas de trabalho, heterónomo e vinculativo). Ora, abstraindo da problemática específica do controlo de normas criadas por analogia, o artigo 280.º da Constituição e o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC só admitem a apreciação da constitucionalidade de normas suscetíveis de serem reconduzidas a tais fontes de direito em sentido formal (cfr., por todos, Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Constitucionalidade na Lei e Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 27 a 31 e a jurisprudência deste Tribunal aí referida).»
3. Notificado desta Decisão, e por a considerar “errada”, vem agora o recorrente apresentar reclamação com fundamento no artigo 78.º-A, n.º 3 da LTC, dizendo o seguinte:
« 1. Por imperativo mesmo do princípio da economia processual, - dá aqui por reproduzidos o teor
do requerimento de recurso para este Tribunal Constitucional
1.2 dos articulados incorporados em instâncias anteriores, onde suscitou a questão da inconstitucionalidade (tribunal Judicial da comarca de Lagos, tribunal da Relação de Évora e supremo tribunal de Justiça), - e que esta decisão sumária sumariou em dois sinais gráficos: […] e […].
A decisão reclamada cita Rego: mas é para o recorrente meridianamente óbvio que, a cultor de ciência jurídica, essa decisão, além de errada, é injusta, sobrepondo questões labiríntico-formais ao olhar, substancial, que impunha o facto de estar em cheque a liberdade de um cidadão, por os autos demonstrarem abundantemente que nas sucessivas decisões judiciais prolatadas não se mostrou nunca assegurado o cabal e integral cumprimento do princípio constitucional de garantia da defesa (art. 32º, nº 1, CRP).
Conclui como o fez no requerimento que foi objeto da decisão ora reclamada.»
4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de se dever indeferir a reclamação, porquanto:
«2.º
Como nos parece evidente e se considerou na douta Decisão Sumária, é manifesta a inidoneidade do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
3.º
Na reclamação não se impugnam os fundamentos da decisão reclamada.»
II. Fundamentação
5. Como salientou o Ministério Público, na reclamação apresentada o recorrente não impugnou qualquer dos fundamentos da decisão de não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade. Ao invés, o recorrente limitou-se a acusar a referida decisão de “injusta” pelo facto de “sobrepor questões labirinto-formais aos olhar, substancial, que impunha o facto de estar em cheque a liberdade de um cidadão”, voltando a reiterar o incumprimento, pelas sucessivas decisões judiciais prolatadas, do princípio constitucional ínsito no artigo 32.º da Constituição.
Significa isto, portanto, que o recorrente insiste – e reconhece – que o objeto da impugnação que interpôs para este Tribunal Constitucional reside nas decisões judiciais e não em qualquer norma. Mas, como o mesmo deverá saber, pois resulta claramente, desde logo, do próprio texto constitucional, os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional têm como objeto normas e não decisões judiciais. O recurso de constitucionalidade português é um recurso exclusivamente normativo, não configurando, como parece pretender o recorrente, um qualquer recurso de amparo ou queixa constitucional como encontramos noutros sistemas. Aquilo a que o recorrente se refere como “questões labiríntico-formais” configura, tão-somente, tal carácter exclusivamente normativo do recurso de constitucionalidade tal como decorre, diretamente, da Constituição. Como salienta o artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Deste modo, não tendo o recorrente sequer impugnado qualquer dos fundamentos da decisão ora impugnada, resta concluir pela manifesta improcedência desta reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 15 de Julho de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.