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Processo n.º 89/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Em processo de insolvência, a correr termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, requerido por A. B.V. contra B., Lda., na sequência de assembleia de credores ocorrida em 4 de maio de 2011, foi aprovado, com alterações e com oposição de diversos credores, entre os quais a Fazenda Nacional representada pelo Ministério Público, o plano de insolvência que havia sido apresentado pela Insolvente em 30 de outubro de 2010.
Em 27 de junho de 2011 foi proferida sentença que decidiu recusar a homologação do referido plano de insolvência e, em consequência, declarou o encerramento imediato da atividade da Insolvente, com a imediata apreensão e liquidação dos bens que integravam a massa insolvente.
Inconformados, a Insolvente, B., Lda., e outros credores interpuseram recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por Acórdão de 27 de fevereiro de 2012, julgou as apelações improcedentes e confirmou a decisão recorrida.
A Insolvente, invocando a existência de oposição entre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães e outro proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 10 de julho de 2012, admitiu a revista e, por Acórdão de 25 de outubro de 2012, conhecendo do mérito, negou a revista.
A Insolvente, requereu a aclaração desta decisão, o que lhe foi indeferido por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de dezembro de 2012.
Recorreu então a Insolvente, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
“…
O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro e visa a declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 30 nº 3 da LGT na redação que lhe foi dada pela Lei nº 55-A/2010 a qual dispõe que a indisponibilidade do crédito tributário “prevalece sobre qualquer legislação especial” bem como o artigo 125º da mesma Lei que preceitua que “o disposto no nº 3 do artigo 30º da LGT é aplicável, designadamente aos processo de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”, quando aplicadas a processos de insolvência, como o presente, cuja assembleia de votação do relatório do administrador da insolvência e apresentação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor.
Tais preceitos, na invocada interpretação, padecem de inconstitucionalidade material por violação do princípio da confiança consagrado nos artigos 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa.
Isto porque toda a Jurisprudência anterior à mencionada Lei nº 55-A/2010, com exceção de dois arestos do Tribunal da Relação do Porto, era unânime no sentido considerar que “No âmbito de processo de insolvência, a existência de normas tributárias que a isso obstassem no plano da relação Estado-empresa contribuinte, não impede, “per se” mesmo com o voto contrário da Fazenda Pública, a aprovação de um plano que, visando a manutenção cm atividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos, sejam estes créditos comuns, garantidos ou privilegiados”.
Ora, postulando o princípio da confiança uma ideia de proteção de confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, a verdade é que os supra referidos normativos, produzindo efeitos quanto a situações ou relações constituídas no passado e ainda subsistentes no momento em que entra em vigor, viola o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito quando a produção de tais efeitos se revela opressiva, intolerável e inadmissível, por afetar acentuadamente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
A Recorrente suscitou estas mesmas questões concretas de inconstitucionalidade material, sem êxito, nas suas alegações ao recurso de revista por si interposto, conforme o impõe o artigo 71º nº 1 al. b) e artigo 75-A nº 1 e nº 2 da supra referida Lei nº 28/82.»
A Recorrente apresentou as respetivas alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
«A) A violação do princípio da confiança assenta no facto de toda a Jurisprudência anterior à entrada em vigor da supra mencionada Lei nº 55-A/2010, sendo unânime nos Tribunais da Relação de Lisboa, Relação de Coimbra, Relação de Guimarães e Supremo Tribunal de Justiça e praticamente unânime no Tribunal da Relação do Porto, com a única exceção de dois arestos iniciais, terem o entendimento de que 'No âmbito de processo de insolvência, a existência de normas tributárias que a isso obstassem no plano da relação Estado-empresa contribuinte, não impede, 'per se' mesmo com o voto contrário da Fazenda Pública, a aprovação de um plano que, visando a manutenção em atividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos, sejam estes créditos comuns, garantidos ou privilegiados'.
B) A título meramente indicativo e a comprovar o exposto, veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, referentes aos processos 485/08.7TYVNG.P1 proferido em 10.09.2009, com o número 0827338 proferido em 31.03.2009, 0535648 proferido em 15.12.2005, 0822193 proferido em 01.07.2008, 0834073 proferido em 06.11.2008, 0836370 proferido em 22.01.2009, 1671/08.5Tjvnf-d.01 proferido em 02.02.2010, 1589/06.6TBMCN-F.P1 proferido em 09.02.2010, 112/09.5TYVNG.P1 proferido em 16.03.2010, 552/09.0TBSJM.P1 proferido em 11.05.2010, 833/08.0TYVNG.P1 proferido em 29.10.2010, 4216/08.3TJVNF.P1-A proferido em 23.11.2010, 309/10.5TBSJM-E.P1 proferido em 17.03.2011 e 2525/09.3TBSTS-G.P1 proferido em 07.04.2011, todos em www.dgsi.pt.
C) Quanto ao Tribunal da Relação de Lisboa veja-se os Acórdãos atinentes aos processos 5511/2008-2 proferido em 17.07.2008, 10934/2008-6 proferido em 05.02.2009, 8662/2008-2 proferido em 30.10.2008 e 644/06.7TYLSB-H.LI-7 proferido em 06.07.2009.
D) Quanto ao Supremo Tribunal de Justiça, os únicos dois Acórdãos existentes inerentes a esta problemática dispunham:
- Acórdão do ST J de 04-06-2009 in www.dgsi.pt em que é expressamente referido que 'Numa perspetiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, seria desproporcional que o processo de insolvência fosse colocado em pé de igualdade com uma mera execução fiscal servindo apenas para a Fazenda Nacional atuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, mais a mais privilegiados, sem atender à particular condição dos demais créditos e da insolvência.'
E assim, 'Não se põe em causa o caráter imperativo dos artigos 30º nº 2 e 36º nºs 2 e 3 da Lei Geral Tributária, aprovada pelo D.L. nº 398/98 de 17.12 e do artigo 196º nº 1 e 5 do CPPT, aprovado pelo D.L. nº 433/99 de 26.10. Só que tais normativos têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, ou seja, no domínio das relações entre a administração tributária, agindo como tal, e os contribuintes, não encontrando apoio no contexto do processo especial, como é o processo de insolvência, onde a atuação da Fazenda Nacional se situa num plano perfeitamente distinto, pois, ao intervir nesse processo, aceita o concurso dos demais credores de determinado contribuinte num quadro em que releva a incapacidade do devedor insolvente para satisfazer as suas dívidas, inclusive as dívidas ao Estado, mesmo de natureza fiscal, devendo em consequência este intervir como credor, tendo em conta a existência dos demais credores e aquela situação de incapacidade, e em observância do tendencial princípio de igualdade entre credores, despido do seu jus imperii, que o colocaria numa situação de tratamento privilegiado perante os demais.
Acórdão do STJ de 02-03-2010 in www.dgsi.pt proc. nº 4454/08.5TBLRA-F.C.S1, 'Não há violação do princípio da legalidade fiscal, nem do princípio da igualdade, uma vez que não existe violação de normas fiscais imperativas por vontade das partes ou dos credores, mas observância de um regime especial criado pelo próprio legislador e plasmado no CIRE, em ordem a consagrar a igualdade de tratamento para todos os credores do insolvente e em que a lei prevê a possibilidade de os créditos do Estado serem despojados de privilégios, mesmo sem a sua aquiescência, inexistindo também por isso, violação de qualquer principio constitucional, nomeadamente o estabelecido no artigo 103º nº 2 do CRP.'
E) Face ao exposto, óbvio se torna que a nova redação dada ao artigo 30º nº 3 da LGT pela Lei nº 55-A/2010 bem como a do artigo 125º dessa mesma Lei, são uma evidente reação contra o entendimento unânime que os Tribunais Superiores estavam a perfilhar quanto à matéria em causa, o qual resultava e era consequência da mera e óbvia interpretação do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa.
F) Não conseguindo as autoridades tributárias alterar a redação do CIRE, introduziram sub-repticiamente, no meio de uma longa e vasta Lei do Orçamento de Estado para o ano 2011, as supra mencionadas alterações que estão aliás a ser, totalmente suicidárias, no panorama da economia nacional impedindo, de facto, qualquer empresa que tenha dívidas ao Estado de ser recuperada e/ou revitalizada.
G) E por isso, não pode a Recorrente aceitar que o Douto Acórdão ora recorrido refira que 'havia uma divisão na jurisprudência' e que 'a questão era controvertida', dado que não havia qualquer divisão na jurisprudência e a questão não era controvertida.
H) E não o era, Venerandos Conselheiros, pelo simples facto, repete-se, da Jurisprudência em causa se limitar a aplicar, aos casos em apreço, o Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa, que retirou aos créditos tributários e da segurança social qualquer 'jus imperii', considerando-os credores, como quaisquer outros tendo, como último 'ratio', a efetiva possibilidade das empresas serem judicialmente reestruturadas e conseguirem sobreviver.
I) E tanto assim foi, que se terá concluído que a única forma de inverter a situação seria a de se adicionar ao artigo 30º nº 3 da LGT que a indisponibilidade do crédito tributário ''prevalece sobre qualquer legislação especial' para se 'afastar', definitivamente, o CIRE 'do caminho' e de forma expressa.
J) Porém, só o deveriam ter feito para situações futuras, para evitar a violação do princípio da confiança.
K) Temos assim forçosamente de concluir que, previamente a 31 de dezembro de 2010, o panorama legislativo e jurisprudencial que se apresentava a qualquer sociedade comercial que pretendia recuperar judicialmente era óbvio, evidente e transparente e foi com base nestas premissas que a Recorrente elaborou o seu estudo económico de viabilização e assim apresentou o seu plano de insolvência a 30 de outubro de 2010.
K) E foi com base nestes pressupostos que os credores da Recorrente o votaram em assembleia de credores com uma maioria de 67,94 dos votos.
L) E com base nestas premissas o Meritíssimo Juiz teria forçosamente de homologar o plano de insolvência, até que, subitamente, as 'regras do jogo' são alteradas depois do ''jogo'' ter terminado.
M) Com efeito, mesmo que a Recorrente pretendesse alterar o plano de insolvência para o adaptar ao novo normativo surgido pela Lei n.º 55-A/2010, tal possibilidade estava-lhe coartada pelo artigo 210.º do CIRE, pois qualquer modificação só poderia ter-se verificado até ao momento da sua votação.
N) A Recorrente foi assim 'lançada às feras' apesar de ter cumprido de forma escrupulosa com os termos da Lei vigente à época dos factos e, sem qualquer possibilidade de reação, o que o Estado de Direito não pode certamente admitir.
O) É assim evidente que a alteração legislativa supra mencionada coloca em crise a confiança que o cidadão, as empresas e a própria economia colocam no Direito.
P) Com efeito, esta lei que produz efeitos quanto a situações ou relações já constituídas e subsistentes no momento em que entra em vigor, viola o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito quando a produção de tais efeitos se revela 'opressiva, intolerável e inadmissível', por afetar acentuadamente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
Q) Ora, este normativo que se impõe aos processos de insolvência em curso e que ainda não tenham sido objeto de homologação, produz efeitos totalmente intoleráveis e inadmissíveis pois coloca em crise a confiança que tanto a Recorrente como os demais intervenientes na lide em curso tinham na viabilização desta e assim, ressarcirem-se dos seus créditos ou de parte deles, que, com a sua liquidação, se 'esfumarão'.
R) Este normativo que produz efeitos a relações constituídas de forma definitiva no passado e subsistentes no momento em que entra em vigor é opressiva, intolerável e inadmissível porque afeta de forma evidente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
S) Face a tudo quanto se expôs, devem V. Exas., Venerandos Desembargadores, declarar inconstitucional por se encontrar inelutavelmente violado o princípio da confiança previsto nos artigos 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 30 nº 3 da LGT na redação que lhe foi dada pela Lei nº 55-A/2010 a qual dispõe que a indisponibilidade do crédito tributário 'prevalece sobre qualquer legislação especial' bem como o artigo 125º da mesma Lei que preceitua que 'o disposto no nº 3 do artigo 30º da LGT é aplicável, designadamente aos processo de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos', quando aplicadas a processos de insolvência, como o presente, cuja votação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor.
T) E, em consequência, ser definitivamente homologado o plano de insolvência pela Recorrente oportunamente apresentado e votado favoravelmente pela maioria esmagadora dos seus credores, conforme decidiu e bem, o Meritíssimo Juiz de Primeira Instância.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«1.º A norma do n.º 3 do artigo 30.º da LGT, aditada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, estabelece que o disposto no n.º 2 do mesmo artigo prevalece sobre qualquer legislação especial.
2.º A interpretação conjugada dos n.ºs 2 e 3 daquele artigo 30º, segundo a qual, sendo os créditos tributários indisponíveis, não é admissível a homologação de um plano de insolvência regularmente aprovado, que não tenha a concordância da Fazenda Nacional, não viola o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição), não sendo por isso inconstitucional.
3.º A aplicação das normas na interpretação referida, aos processos de insolvência que se encontram pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, como resulta do disposto no artigo 125.º da mesma Lei n.º 55-A/2010, não viola o princípio da confiança (artigo 2.º da Constituição).
4.º Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»
Fundamentação
A Recorrente pretende sindicar a constitucionalidade da norma constante do artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária (LGT), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a qual dispõe que a indisponibilidade do crédito tributário “prevalece sobre qualquer legislação especial”, bem como do artigo 125.º do mesmo diploma, na medida em que preceitua que “o disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processo de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”, quando aplicadas a processos de insolvência em que a apresentação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor.
Vejamos, antes de mais, o teor das normas em causa.
O artigo 30.º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto -Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, que aditou o n.º 3, tem o seguinte teor:
“Artigo 30º
Objeto da relação jurídica tributária
1 – Integram a relação jurídica tributária:
a) O crédito e a dívida tributários;
b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;
c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;
d) O direito a juros compensatórios;
e) O direito a juros indemnizatórios.
2 – O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3 – O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.”
Por sua vez, o artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, sob a epígrafe “Disposições transitórias no âmbito da LGT”, estabelece o seguinte:
“O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos.”
A questão subjacente aos presentes autos prende-se com a aplicação do n.º 3, do artigo 30.º, da LGT, aditado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aos processos de insolvência pendentes à data da entrada em vigor desta última lei (1 de janeiro de 2011 – cfr. artigo 187.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12), em que o respetivo plano de insolvência não tenha sido objeto de homologação, mas em que a assembleia de votação do relatório do administrador da insolvência e a apresentação do plano de insolvência tenham ocorrido anteriormente à entrada em vigor da referida alteração legislativa.
Importa, antes de proceder à apreciação da questão de constitucionalidade suscitada, começar por fazer uma análise sucinta da figura do plano de insolvência no âmbito do regime introduzido pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março (com alterações posteriores introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 200/2004, de 18 de agosto, 76-A/2006, de 29 de março, 282/2007, de 7 de agosto, 116/2008, de 4 de julho, e 185/2009, de 12 de agosto, e pelas Leis n.ºs 16/2012, de 20 de abril e 66-B/2012, de 31 de dezembro).
Entre as principais inovações introduzidas por este Código é de destacar o primado conferido à satisfação dos direitos dos credores, bem como a maior autonomia que a estes é atribuída no âmbito do processo de insolvência. É esta a conclusão que se extrai, desde logo, da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o CIRE, do qual resulta que o processo de insolvência, no regime instituído por este Código, tem em vista, como objetivo primordial, “a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”, sendo sempre a vontade destes “a que comanda todo o processo” e sendo ainda “sempre das estimativas dos credores que cumpre decidir quanto à melhor efetivação da garantia comum dos seus créditos”.
É também esta orientação que se encontra expressa logo no artigo 1.º do CIRE que, sob a epígrafe “finalidade do processo de insolvência”, dispõe que “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (Sobre as finalidades do processo de insolvência no CIRE, cfr. José Lebre de Freitas, em “Pressupostos objetivos e subjetivos da insolvência”, Revista Themis, Edição especial, pág. 11-12, da ed. de 2005, da Almedina).
Assim, e de acordo com o regime instituído pelo CIRE, os credores dispõem de duas soluções para satisfação dos seus interesses através do aproveitamento do acervo patrimonial do devedor: ou procedem à pura e simples liquidação dos bens que integram a massa insolvente e à repartição do resultado de tal liquidação, nos termos da lei; ou optam por um plano de insolvência, em que regulam, dentro dos limites legais, o modo como serão satisfeitos os seus interesses (cfr., a este propósito, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, em “Recuperação de empresas em processo de insolvência”, in Ars Judicandi – Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. II, págs. 9-11).
Deste modo, nos casos em que na massa insolvente esteja incluída uma empresa que não conseguiu gerar as receitas necessárias para poder cumprir as suas obrigações, a satisfação do interesse dos credores tanto pode passar pelo seu encerramento, como pela manutenção da mesma em atividade, sendo que é sempre aos credores que compete a análise da situação, bem como a opção por uma solução ou por outra. Esta perspetiva confere, assim, maior relevância aos mecanismos reguladores do mercado, deixando aos credores a soberania da decisão no que respeita à possibilidade de recuperação da empresa.
No cumprimento dos propósitos enunciados no seu artigo 1.º, acima transcrito, o CIRE, depois de regular a tramitação regra do processo de insolvência, regula nos seus artigos 192.º a 222.º o plano de insolvência, que tem em vista, numa fase posterior à sentença de declaração de insolvência, permitir formas alternativas de compor a satisfação dos interesses dos credores, para além da liquidação do património do devedor (Sobre o plano de insolvência, cfr., Maria do Rosário Epifânio, em “O plano de insolvência”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Vol. II, pág. 495 e ss., e E. Santos Júnior, em “O plano de insolvência. Algumas notas”, in O Direito, Ano 138 (2006), III, págs. 571 e ss.).
Constituindo, conforme afirma o legislador no preâmbulo do diploma de aprovação do CIRE, o acolhimento de uma estrutura já existente em sistemas jurídicos congéneres, o plano de insolvência radica nas antigas concordatas estabelecidas nas cidades comerciais italianas.
No artigo 192.º do CIRE estabelece-se, desde logo, o princípio geral subjacente ao plano de insolvência, dispondo o n.º 1 desta disposição legal que, em derrogação das normas do CIRE, “o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência, podem ser regulados num plano de insolvência”. Salvaguarda-se, no entanto, no n.º 2 que “o plano só pode afetar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados”.
De acordo com o artigo 193.º do CIRE, têm legitimidade para apresentar proposta de plano de insolvência o administrador da insolvência (por sua iniciativa, no relatório – cfr. artigo 155.º, n.º 1, do CIRE –, ou encarregado para o efeito por deliberação da assembleia de credores, aquando da apreciação do relatório, nos termos do artigo 156.º, n.ºs 3 e 4 do CIRE), o próprio devedor (quando se apresenta à insolvência ou em momento posterior – cfr. artigo 24.º, n.º 3, do CIRE), qualquer pessoa que responda legalmente pelas dívidas da insolvência e qualquer credor ou grupo de credores cujos créditos representem pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados reconhecidos na sentença de verificação e graduação de créditos, ou na estimativa do juiz, se tal sentença ainda não tiver sido proferida.
Relativamente ao conteúdo do plano de insolvência, dispõe o artigo 195.º, n.º 1, do CIRE, que este “deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência”. E, de acordo com o n.º 2 desta disposição legal, o plano de insolvência deve ainda “indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:
a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;
b) A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade;
c) No caso de se prever a manutenção em atividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do ativo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respetivos valores;
d) O impacte expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência;
e) A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação.”
Por sua vez, o artigo 196.º do CIRE, no seu n.º 1, prevê a possibilidade de o plano de insolvência adotar uma série de providências com incidência do passivo do devedor, designadamente:
a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»;
b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d) A constituição de garantias;
e) A cessão de bens aos credores.
Ainda relativamente ao conteúdo do plano de insolvência, o artigo 197.º do CIRE estabelece, como regime supletivo, que na falta de estatuição expressa do plano em sentido diverso “a) Os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afetados pelo plano; b) Os créditos subordinados consideram-se objeto de perdão total; c) O cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes.”
Apresentado o plano de insolvência, este é sujeito a dois controlos jurisdicionais.
Há um controlo inicial (cfr. artigo 207.º do CIRE), em que a proposta de plano de insolvência é submetida à apreciação do juiz, para que este proceda à verificação da sua admissibilidade ou inadmissibilidade. A proposta não será admitida nos casos previstos no artigo 207.º, n.º 1, do CIRE: a) se houver violação dos preceitos sobre a legitimidade para apresentar a proposta ou sobre o conteúdo do plano e os vícios forem insupríveis ou não forem sanados no prazo razoável que fixar para o efeito; b) quando a aprovação do plano pela assembleia de credores ou a posterior homologação pelo juiz forem manifestamente inverosímeis; c) quando o plano for manifestamente inexequível; d) quando, sendo o proponente o devedor, o administrador da insolvência se opuser à admissão, com o acordo da comissão de credores, se existir, contanto que anteriormente tenha já sido apresentada pelo devedor e admitida pelo juiz alguma proposta de plano. Há, depois, um segundo controlo do plano de insolvência na sentença de homologação, após a sua aprovação em assembleia de credores (cfr. artigos 214.º a 216.º do CIRE).
No caso de admitir a proposta de plano de insolvência (artigo 207.º, n.º 2, do CIRE), o juiz notificará as entidades mencionadas no artigo 208.º do CIRE, para, querendo, emitirem parecer sobre ela e convocará a assembleia de credores para discutir e votar a proposta de plano (artigo 209.º, n.º 1, do CIRE).
Na assembleia de credores, presidida pelo juiz (artigo 74.º do CIRE), têm direito de participar os credores (com ou sem direito de voto), bem como outras pessoas (artigo 72.º do CIRE), sendo necessário, para se poder deliberar sobre o plano de insolvência, que estejam presentes ou representados credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto (artigos 212.º, n.º 1, e 211.º, n.º 1, do CIRE). A proposta considerar-se-á aprovada se obtiver “mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções” (artigo 212.º, n.º 1, do CIRE).
Uma vez aprovado pelos credores, o plano de insolvência é sujeito, conforme se disse, a um segundo controlo jurisdicional, necessitando de ser homologado por sentença judicial, para que seja plenamente eficaz (cfr. artigos 214.º a 216.º do CIRE). A sentença de homologação apresenta-se, porém, limitada ao controlo da legalidade e não do mérito do conteúdo do plano aprovado pelos credores, o qual é livremente fixado por estes.
A homologação do plano de insolvência pode ser recusada pelo juiz, oficiosamente, “no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação” (cfr. artigo 215.º do CIRE), ou a solicitação dos interessados (devedor não proponente do plano, credor, sócio, associado ou membro do devedor), nas hipóteses previstas no artigo 216.º, n.º 1, do CIRE, ou seja, quando o requerente demonstre em termos plausíveis que a sua situação ficará pior com o plano do que sem ele, ou que o plano proporciona a algum credor um valor patrimonial superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor de eventuais contribuições a que fique obrigado, sem prejuízo de, mesmo nestas circunstâncias, o juiz não poder recusar a homologação quando o plano cumpra as condições previstas no n.º 3 do artigo 216.º, do CIRE
Conforme resulta do teor do artigo 217.º do CIRE a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores constitui um requisito indispensável à sua eficácia, sendo ainda condição necessária e suficiente para que o mesmo produza certos efeitos. Ou seja, é a homologação do plano de insolvência que lhe confere um caráter vinculativo, produzindo-se as alterações dos créditos introduzidas no plano, sendo também a sentença que confere eficácia a quaisquer atos ou negócios jurídicos previstos no plano e constitui título bastante para a constituição de nova sociedade ou sociedades, transmissão de bens e direitos, realização dos respetivos registos, redução ou aumento de capital, modificação dos estatutos, transformação, exclusão de sócios e alteração dos órgãos sociais do insolvente.
Assim, mesmo que o plano de insolvência possa ser perfeito em si mesmo após a sua aprovação por deliberação da assembleia de credores, apenas a sentença homologatória lhe confere a eficácia necessária para a produção de efeitos. Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda existe aqui “um processo formativo com trato sucessivo” que tem a sua base no próprio plano de insolvência (cfr., Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, vol. II, pp. 129, ed. de 2005, da Quid iuris).
Tecidas estas considerações gerais, importa agora enquadrar neste âmbito a questão subjacente aos presentes autos que, no plano infraconstitucional, se prende com saber se é possível a homologação de plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores através do qual, sem a concordância do Estado, tenham sido incluídos também créditos tributários, designadamente, prevendo a redução de créditos do Estado contra a vontade deste [conforme refere o Ministério Público, no conceito genérico de “créditos tributários” abrangem-se quer os créditos fiscais, quer os créditos da Segurança Social, sendo que na decisão recorrida a questão foi analisada com referência a créditos tributários, sem que se trate de forma autonomizada os créditos da Segurança Social, sendo aliás também dessa forma genérica que a questão de constitucionalidade foi suscitada pela recorrente].
Ou seja, dizendo de outro modo, em geral, a questão discutida no plano infraconstitucional é a de saber se no âmbito do processo de insolvência e, concretamente, no plano de insolvência, se mantém a indisponibilidade dos créditos tributários, ou se é admissível a previsão de perdões, reduções de valor, moratórias ou outras limitações ao pagamento dos créditos do Estado e da Segurança Social.
Como dá conta a decisão recorrida, até à entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, a jurisprudência vinha mantendo um entendimento largamente maioritário – com fundamento na ideia de que o artigo 197.º, n.º 1, do CIRE, acima referido, tinha natureza supletiva e de que os artigos 30.º, n.º 2, e 36.º, n.ºs 2 e 3, da LGT, tinham natureza imperativa apenas no domínio das relações entre a administração tributária enquanto tal e os contribuintes, mas não no âmbito do processo especial de insolvência –, no sentido de que, constituindo as disposições do CIRE legislação especial em relação às da LGT, era admissível que um plano insolvência que afetasse créditos tributários (por implicar a redução, extinção ou moratória desses créditos) fosse regularmente aprovado sem a concordância da Fazenda Nacional, visse a ser homologado.
Entretanto, o artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 3 ao artigo 30.º da LGT, estabelecendo que o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, previsto no n.º 2 deste artigo “prevalece sobre qualquer legislação especial” e o artigo 125.º da referida Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro determinou a aplicação desta alteração aos processos de insolvência que se encontrem pendentes em que os planos de insolvência ainda não tenham sido objeto de homologação.
Esta alteração legislativa levou a que jurisprudência tivesse também alterado a sua posição, passando a entender, maioritariamente, a exemplo do que acontece no caso dos autos, que a regra constante do artigo 30.º, n.º 2, da LGT, segundo a qual o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária, passou inequivocamente a valer no âmbito da insolvência.
Ou seja, a jurisprudência entendeu que aquela alteração legislativa teve em vista afastar a interpretação até então largamente maioritária de que, constituindo as disposições do CIRE legislação especial em relação às normas da LGT e, concretamente, ao seu artigo 30.º, n.º 2, era admissível que um plano de insolvência que afetasse créditos tributários (por implicar a redução, extinção ou moratória desses créditos) regularmente aprovado sem a concordância da Fazenda Nacional, viesse a ser homologado (no sentido de que, apesar do n.º 3 do artigo 30.º da LGT, é possível, neste âmbito, uma leitura restritiva das normas que compõem o regime tributário, cfr. Catarina Serra em “Créditos tributários e princípio da igualdade entre os credores – dois problemas no contexto da insolvência de sociedades”, in Direito das Sociedades em Revista, outubro de 2012, ano 4, vol. 8, págs. 96-101).
Não compete, no entanto, ao Tribunal Constitucional tomar posição quanto à correta interpretação das referidas normas no plano do direito infraconstitucional. Compete-lhe apenas apreciar se a interpretação acolhida pelo Tribunal da Relação de Guimarães é violadora de alguma norma ou princípio constitucional.
Antes de mais, importa precisar que, no caso dos autos, não é questionada, diretamente, a interpretação do artigo 30.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro. Questiona-se, sim, que a referida norma, com o aludido sentido interpretativo, seja aplicável aos processos de insolvência pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (1 de janeiro de 2011 – cfr. artigo 187.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro), cujo plano de insolvência ainda não tenha sido objeto de homologação, mas em que a apresentação do plano de insolvência tenha ocorrido anteriormente à sua entrada em vigor.
É o que resulta claramente do requerimento de interposição de recurso, bem como das alegações apresentadas pela Recorrente. Da leitura destas alegações resulta que a Recorrente entende que se mostra violado o princípio da confiança pelo facto de toda a jurisprudência anterior à entrada em vigor da referida Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, ter o entendimento acima aludido, no sentido de que os artigos 30.º, n.º 2, e 36.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, e outras normas que consagram a indisponibilidade dos créditos tributários, tinham natureza imperativa apenas no domínio das relações entre a administração tributária enquanto tal e os contribuintes, mas não no âmbito do processo especial de insolvência, não impedindo, em si mesmas, mesmo com o voto contrário da Fazenda Pública, a aprovação de um plano de insolvência que, visando a manutenção em atividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos tributários.
Assim, e ainda segundo sustenta a Recorrente, a nova redação dada ao artigo 30.º, n.º 3, da LGT, pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro, bem como a do artigo 125.º dessa mesma Lei, são uma reação contra este entendimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto à matéria em causa. Contudo, entende a Recorrente que tais alterações deveriam valer apenas para situações futuras, de forma a evitar a violação do princípio da confiança.
Segundo alega ainda a Recorrente, foi com base no panorama legislativo e jurisprudencial anterior a 31 de dezembro de 2010, que elaborou o seu estudo económico de viabilização e assim apresentou o seu plano de insolvência a 30 de outubro de 2010, tendo sido também com base nestes pressupostos que o mesmo foi aprovado em assembleia de credores e, com base nestas premissas, tal plano seria forçosamente homologado caso não tivesse ocorrido a mencionada alteração legislativa, a qual coloca em crise a confiança que o cidadão, as empresas e a própria economia colocam no Direito, uma vez que produz efeitos quanto a situações ou relações já constituídas e subsistentes no momento em que entra em vigor, violando o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito, revelando-se a produção de tais efeitos 'opressiva, intolerável e inadmissível', por afetar acentuadamente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
Assim, conforme já se disse, resulta claro que a Recorrente não coloca em causa, no plano jurídico-constitucional, o regime que resulta das alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31-12. O que questiona é apenas a aplicação desse regime aos processos de insolvência pendentes, em que o plano de insolvência tenha sido apresentado antes da entrada em vigor das referidas alterações, mas ainda não tivesse sido homologado.
Importa, pois, apreciar se assiste razão à Recorrente e se a aplicação das referidas alterações, nos termos expostos, são violadoras do princípio da confiança.
Como é sabido, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Esta garantia de segurança jurídica, traduz-se, no plano subjetivo, na ideia de proteção da confiança dos particulares relativamente à continuidade da ordem jurídica, proteção essa que vale em relação as todas as áreas de atuação Estadual, mediante exigências que são dirigidas à Administração, ao poder judicial e, particularmente, ao legislador.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou variadíssimas vezes sobre o princípio da proteção da confiança, importando ter presente a sua jurisprudência nesta matéria.
No que respeita ao seu enunciado geral, o Tribunal tem afirmado reiteradamente que o princípio do Estado de direito democrático postula “uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”, concluindo que “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica” (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 303/90, acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos que a seguir se referem sem outra menção).
Ou seja, acentua-se que este princípio tem pressuposta a ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado, o que implica a garantia de um mínimo de certeza e de segurança das pessoas quanto aos direitos e às expectativas que lhes tenham sido juridicamente criadas.
Mas o Tribunal procurou também concretizar o conteúdo do princípio da proteção da confiança, a propósito de situações de retrospetividade ou retroatividade inautêntica (estando aqui abrangidos os casos de aplicação de determinadas normas a situações jurídicas pré-existentes, como é o caso das leis que se aplicam a processos pendentes), confrontado com a questão de saber quando é que se está perante a “inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva” de uma conformação que afeta “expectativas legitimamente fundadas” dos cidadãos, concluiu que, para que a confiança seja tutelada, é necessário que estejam reunidos dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Estes critérios foram reiteradamente afirmados na jurisprudência posterior e, mais recentemente, no Acórdão n.º 128/2009 (cujo entendimento teve seguimento, entre outros, nos acórdãos n.ºs 188/2009 e 3/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal, desenvolvendo os referidos critérios, veio a reconduzi-los a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Escreveu-se, a esse propósito, no referido Acórdão n.º 128/2009:
“Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção.”
Assim, e de modo a que seja respeitada a liberdade conformativa do legislador, indispensável para que possa responder às necessidades de interesse público que a cada momento se façam sentir, é de afastar o entendimento no sentido de que qualquer intervenção normativa inovatória deve ser considerada violadora do princípio da segurança jurídica na vertente da proteção da confiança. Tal só acontecerá quanto se esteja perante uma normação que atinja “de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar” (cfr., entre outros, os acórdãos n.ºs 365/91 e 486/97).
Analisados os limites e os requisitos a que está sujeita a tutela constitucional da confiança, importa agora apreciar a situação sub judicio, no sentido de saber se a mesma é merecedora de censura no plano jurídico-constitucional, ou seja, se as normas objeto do presente recurso, na interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida, afetam, de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa, as expectativas jurídicas dos destinatários das mesmas.
No caso dos autos está em questão a aplicação de uma norma (artigo 30.º, n.º 3, da LGT) aprovada por uma lei entrada em vigor em 1 de janeiro de 2011, a factos jurídicos de formação sucessiva (plano de insolvência apresentado em processo de insolvência pendente à data da entrada em vigor da lei e ainda não sujeito a homologação, sendo que a assembleia de credores que aprovou o plano e a sentença de não homologação do mesmo aludido só tiveram lugar após a entrada em vigor da lei).
Segundo a Recorrente, face à legislação vigente e à jurisprudência largamente maioritária à data da apresentação do plano de insolvência, tinha expectativa na manutenção do referido quadro normativo.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se tal circunstância pode justificar a existência de uma expectativa jurídica que, à luz do princípio da proteção da confiança, torne inconstitucional a aplicação das normas em causa, na interpretação aplicada pela decisão recorrida, a planos de insolvência apresentados no âmbito de processos de insolvência pendentes, que ainda não tenham ainda sido objeto de homologação.
Como vimos, o regime de indisponibilidade dos créditos tributários, defendido pela jurisprudência largamente maioritária nos tribunais superiores como não aplicável no âmbito dos planos de insolvência, resultava do entendimento de que as normas especiais, constantes do Código de Insolvência, derrogavam o regime geral, resultante das leis tributárias.
Assim sendo, importa apreciar se a referida alteração, no sentido de o regime geral passar a prevalecer sobre outros regimes especiais em sentido contrário (e concretamente, sobre o regime instituído pelo CIRE), constitui uma violação do princípio da confiança, tendo em atenção os pressupostos ou requisitos da proteção da confiança acima enunciados.
Face aos aludidos requisitos, para que a confiança seja tutelada constitucionalmente, exige-se, em primeiro lugar, que o legislador tenha promovido comportamentos capazes de gerar nos cidadãos a expectativa de continuidade de um determinado modelo ou regime jurídico. Ora, não se poderá afirmar que, nas situações como a dos autos, o Estado tenha tido comportamentos de que possa inferir-se a criação, nos privados, de «expectativas» de continuidade do regime legal em causa. Com efeito, não só se manteve em vigor o regime geral de indisponibilidade dos créditos tributários como, perante a interpretação de tais normas efetuada pela corrente dominante na jurisprudência no âmbito dos processos de insolvência, a Fazenda Pública tem mantido posição contrária, apresentando recurso de tais decisões (conforme a própria Recorrente reconhece e resulta da jurisprudência que cita nas suas alegações). Assim, dificilmente se poderá sustentar que existissem fundadas expectativas privadas de manutenção do regime jurídico vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro.
Por outro lado, no que respeita ao terceiro requisito, se é certo que a Recorrente, ao apresentar o plano de insolvência o fez num determinado quadro normativo e no pressuposto de que o mesmo se manteria inalterado – ou seja, tendo a expectativa da continuidade de um determinado «comportamento» por parte do legislador – é certo, por outro lado, que dada a natureza do plano de insolvência, a tramitação a que o mesmo se encontra sujeito, com a participação de diversos intervenientes processuais, bem como a necessidade de preenchimento de uma série de outros requisitos legais, dificilmente se pode defender que com sua apresentação pudesse existir, desde logo, uma expectativa jurídica de que o mesmo se mantivesse inalterado, vindo a ser aprovado, qua tale, pelos credores e homologado por sentença.
Com efeito, uma vez apresentado o plano, este é sujeito, como vimos, a um primeiro controlo jurisdicional liminar da sua admissibilidade (cfr. artigo 207.º do CIRE) e, na assembleia de credores em que o plano é discutido e votado, o mesmo pode ser sujeito a alterações, sendo aprovado com essas alterações ou pode vir a não ser aprovado pela maioria dos credores. Por outro lado, mesmo que o plano seja aprovado, este terá ainda de passar por um segundo crivo judicial, podendo ser ou não homologado, nos termos dos artigos 214.º a 216.º do CIRE. Refira-se ainda que no caso dos autos, quando foi realizada a assembleia de credores destinada a discutir e votar a proposta de plano, já se encontrava em vigor o novo regime legal, pelo que a Recorrente e os demais credores poderiam ter promovido a alteração do plano em conformidade com as referidas alterações legislativas, não se podendo por isso afirmar que aquando da aprovação do referido plano de insolvência existissem fundadas expectativas no sentido da sua homologação. Face ao exposto, também o terceiro requisito para proteção da confiança não se afigura, no caso, preenchido.
É certo que não se poderá desconsiderar, e é sobretudo nesse aspeto que se funda o recurso interposto, que o legislador, ao optar pela aplicação do novo regime aos processos de insolvência pendentes em que o plano de insolvência ainda não tivesse sido objeto de homologação, iria afetar necessariamente os planos de insolvência já apresentados que, face ao novo regime, poderiam ter de ser alterados.
Contudo, esta opção não poderá ter-se como arbitrária, nem se pode considerar que afete posições jurídicas já constituídas. Com efeito, o interesse prosseguido pelo legislador através da aplicação de lei nova a processos pendentes é uma opção que se enquadra na sua liberdade constitutiva e conformadora, pretendendo-se desta forma que os efeitos visados com a alteração em causa fossem imediatos, para o que não deixou de assumir importância o contexto de crise económica e a situação de desequilíbrio orçamental do Estado, circunstâncias que, no entender do legislador, reforçaram a necessidade de evitar que os créditos tributários pudessem ser objeto, por ação de outros credores, de modificação, mesmo contra a vontade do Estado.
Por outro lado, o critério escolhido pelo legislador para definir o momento relevante para a aplicação do novo regime aos processos pendentes tem um fundamento racional, se atentarmos em que, como vimos, só com a homologação do plano de insolvência, por sentença, este produz todos os efeitos, não se podendo, até então, falar-se de situações jurídicas já constituídas, uma vez que, como vimos, o plano de insolvência traduz uma situação jurídica complexa, de formação sucessiva, mas que só se torna plenamente constituída com a sentença que o homologa. Até esse momento, conforme se disse, não está afastada a possibilidade de se proceder à alteração do plano de insolvência, de forma a adequá-lo ao novo regime legal.
Finalmente, ainda que se considerassem cumpridos todos os outros requisitos ou “testes” relativos às “expectativas” dos privados, face aos fundamentos expostos, não se poderia dar por verificado o quarto “teste”, relativo à inexistência de razões de interesse público que justificassem, em ponderação, a não continuidade do comportamento estadual. Ora, sendo os “testes” estabelecidos para a tutela jurídico-constitucional da confiança cumulativos, o facto de um deles se não cumprir basta para que se não possa, com esse fundamento, julgar inconstitucional as normas sub judicio.
Daí que seja forçoso concluir que não se mostra violado pela interpretação normativa sindicada o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, bem como do artigo 125.º do mesmo diploma, quando aplicadas a processos de insolvência em que a apresentação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor;
e, consequentemente,
b) julgar improcedente o recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 15 de julho de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins –Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro