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Processo n.º 453/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, com o NUIPC 117/09.6IDFAR, pendentes no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Silves, por sentença proferida em 2 de junho de 2010, foram condenados:
- O arguido A., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigo 105.º, n.º 1 da Lei 15/2001, de 5 de junho (RGIT) e 30.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €4,00 (quatro euros), perfazendo a multa de €640,00 (seiscentos e quarenta euros);
- A arguida B., Lda, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00, perfazendo a multa de €1.600,00 (mil e seiscentos euros).
2. Nenhum dos arguidos pagou a multa em que foi condenado.
3. O Ministério Público, na sequência de informação sobre bens dos arguidos, decidiu não instaurar execução por custas e multa relativamente à arguida B., Unipessoal, Lda e, quanto ao arguido A., promoveu a conversão da multa em prisão subsidiária, o que foi indeferido.
4. Nessa sequência, o Ministério Público exarou promoção, nos seguintes termos:
“O arguido A. foi o único gerente da sociedade arguida durante os anos de 2005 e 2006, período em que foram cometidos os factos pelos quais vieram a ser condenados.
Nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º1, al. a) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) o arguido Frederico Diaz é subsidiariamente responsável pelo pagamento da multa em que a sociedade foi condenada.
Uma vez que a sociedade arguida não procedeu ao pagamento voluntário da multa e que não lhe são conhecidos bens penhoráveis de modo a obter o pagamento coercivo da mesma, P. que se notifique o arguido A. para proceder ao pagamento da multa em que a sociedade arguida foi condenada.”
5. Sobre essa promoção recaiu despacho em que, louvando-se nos Acórdãos deste Tribunal n.º 481/2010, 24/2011 e 26/2011, se conclui nos seguintes termos:
“Ora, os argumentos aduzidos a respeito da responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores pelas coimas aplicadas às pessoas coletivas, que se dão por integralmente reproduzidos, saem, necessária e inevitavelmente, reforçados no que concerne à sua responsabilidade perante as multas aplicadas no âmbito de um processo de natureza penal.
Pelo exposto e subscrevendo as considerações explanadas, decide-se não aplicar a norma contida na alínea a) do artigo 8.º do RGIT ao caso dos autos, com fundamento na respetiva inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e proporcionalidade”.
6. O Ministério Público, com invocação do disposto nos artigos 280.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea a) da LTC, veio apresentar recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo:
“O presente recurso tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, al. a), do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de junho), cuja aplicabilidade foi recusada no mencionado despacho, com fundamento em que tal disposição é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e proporcionalidade”.
7. O recurso foi admitido.
8. Neste Tribunal, ordenado o prosseguimento do recurso, apenas o Ministério Público veio apresentar alegações, que concluiu nos seguintes termos:
“1. A norma do artigo 8.º, n.º1, alínea a), do RGIT, na parte em que estabelece que os administradores e gerentes são subsidiariamente responsáveis pelas multas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento, não viola os princípios da culpa, da igualdade e da intransmissibilidade das penas, não sendo, por isso, inconstitucional.”
II. Fundamentação
9. A questão colocada nos presentes autos radica na solvabilidade constitucional da responsabilidade subsidiária dos gerentes por multas aplicadas por infrações previstas no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, constante da alínea a), do n.º 1, do artigo 8.º desse diploma, cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal a quo, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da intransmissibilidade das penas.
Importa, antes de mais, notar que a dimensão normativa questionada não acolhe qualquer vertente problemática situada no plano procedimental, matéria sobre a qual não se tomou posição no despacho recorrido. Nessa medida, não tem inscrição no objeto do recurso a apreciação do respeito pelas exigências constitucionais, mormente pelo princípio do direito de defesa e do contraditório, da via normativa seguida para adquirir processualmente a responsabilidade subsidiária do administrador e gerente, demonstrada que esteja a verificação dos requisitos legais.
10. Como se refere no despacho recorrido, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se por diversas vezes sobre a questão da responsabilidade solidária do gerente por coimas aplicadas às pessoas coletivas por infração tributária. Porém, as decisões citadas, mormente o Acórdão n.º 26/2011, para cujos argumentos se remete, precederam o Acórdão n.º 561/2011, proferido pelo Plenário, precisamente para dirimir pronúncias divergentes nas secções, culminando com a prolação de juízo de não inconstitucionalidade.
Entendeu-se nesse acórdão:
«3. O tribunal recorrido considerou, na linha de anterior jurisprudência, que a atribuição de responsabilidade subsidiária a administradores, gerentes e outras pessoas com funções de administração em sociedades, por dívida resultante de não pagamento de coima fiscal em que a pessoa coletiva tenha sido condenada, com a consequente reversão da respetiva execução fiscal, em consequência do que dispõe, nessa matéria o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, é suscetível de violar o princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30.º,n.º 3, da Constituição da República, e, bem assim, o princípio da presunção de inocência do arguido, que decorre do artigo 32.º, n.º 2, princípios que, nesses termos, entende serem aplicáveis mesmo no domínio do ilícito contraordenacional.
(…)
O que a norma, por conseguinte, prevê é uma forma de responsabilidade civil, que recai sobre administradores e gerentes, relativamente a multas ou coimas em que tenha sido condenada a sociedade ou pessoa coletiva, cujo não pagamento lhes seja imputável ou resulte de insuficiência de património da devedora que lhes seja atribuída a título de culpa.
Note-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de emitir um juízo de não inconstitucionalidade em relação a um idêntico efeito de responsabilidade subsidiária que resulta da norma do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, que igualmente prevê que os direitos e obrigações das sociedades extintas por incorporação ou por fusão se transmitam para a sociedade incorporante ou a nova sociedade.
Esse juízo assentou, no entanto, essencialmente, no entendimento de que, nesses casos, só formalmente se verifica uma transmissão, visto que não há lugar à liquidação ou dissolução das sociedades incorporadas, antes se regista o aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, o que conduz à inaplicabilidade, nessa situação, da proibição da transmissibilidade das penas constante do artigo 30º, n.º 3, ainda que estejam em causa obrigações decorrentes de responsabilidade contraordenacional (cfr. os acórdãos n.ºs 153/04, de 16 de março, 160/04, de 17 de março, 161/04, de 17 de março, 200/04, de 24 de março, e 588/05, de 2 de novembro).
Alguns desses arestos não deixaram, todavia, de enquadrar a questão da intransmissibilidade das penas, em termos que mantêm plena validade para o caso dos autos.
No acórdão n.º 160/04, por exemplo, considerou-se o seguinte:
“A evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a insusceptibilidade de transmissão de “penas” [e agora prevê que “A responsabilidade penal é insuscetível de transmissão”] – não se ficou, porém, a dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás, resulta claramente também da nova redação), mas sim evitar que o princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena.
Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido da aplicação, no domínio contraordenacional, do essencial dos princípios e normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se escreveu no citado acórdão n.º 50/03, a “diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contraordenações”. Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contraordenacionais (como se decidiu no acórdão n.º 158/92, publicado no DR, II Série, de 2 de setembro de 1992) e na diferente natureza e regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. acórdãos n.ºs 245/00 e 547/01, publicados, respetivamente, no DR, II Série, de 3 de novembro de 2000 e de 9 de novembro de 2001).
Nestes termos, a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa.
Nem sequer se pode, pois, a partir da referida norma, obter um padrão constitucional previsto a partir do qual se pudesse censurar o referido entendimento do artigo 112º,alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Não o impõe, também, o artigo 30º da Constituição, referido aos “Limites das penas e medidas de segurança”; não o impõe o artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que estende apenas os direitos de audiência e defesa do arguido aos processos de contraordenação e a quaisquer outros processos sancionatórios; e não o impõe a lógica de tutela do arguido que justificou a jurisprudência constitucional em matérias como o princípio da legalidade, ou a aplicação da lei mais favorável (v.g., acórdãos n.ºs 227/92 e 547/01, publicados, respetivamente, no DR, II Série, de 12 de setembro de 1992 e de 15 de julho de 2001).
Mais do que verificar a desconformidade de um certo sentido da norma impugnada em relação ao parâmetro invocado, conclui-se, pois, pela inexistência do pretendido parâmetro, aplicável para o efeito pretendido”.
O referido aresto, embora centrado ainda na sobredita questão da transmissão de responsabilidade por incorporação ou fusão de sociedades, não deixa de fornecer elementos decisivos para a interpretação da norma do artigo 30º, n.º 3, da Constituição, salientando que ela não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contraordenacional.
Procurando decifrar o sentido e alcance da norma, também GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA salientam que a insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal está associada ao princípio da pessoalidade, daí resultando como principais efeitos:(a) a extinção da pena (qualquer que ela seja) e do procedimento criminal com a morte do agente; (b) a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros;(c) a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas. O que, em todo o caso, não obsta – como acrescentam os mesmos autores - à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, nos termos da lei civil (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 504)).
No caso vertente, importa ter em consideração, antes de mais, que não estamos perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contraordenacional.
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa coletiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contraordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa coletiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contraordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contraordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de caráter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contraordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido -que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contraordenações».
E, em termos conclusivos, escreveu-se no mesmo Acórdão n.º 561/2011 que:
«não [se] prevê uma verdadeira transmissão, no sentido de impor a sucessão automática de uma responsabilidade contraordenacional alheia, que passa a ser imputada ao gerente ou administrador. Na verdade, a responsabilidade contraordenacional primária surge na esfera jurídica da pessoa coletiva por ato do seu gerente ou administrador, pois é de entender que os poderes de gerência ou de administração lhes permitem desenvolver a atividade necessária à não ocorrência do ato gerador daquela responsabilidade. Para além disso, para que a responsabilidade contraordenacional prevista no artigo 7.º-A do RJIFNA possa ser imputada ao gerente ou administrador da pessoa coletiva, são adicionalmente necessários requisitos onde releva (sempre) a conduta do administrador ou gerente, designadamente quanto à decisão de não satisfazer o encargo resultante da aplicação da coima, e quanto à culpa na verificação da insuficiência patrimonial da pessoa coletiva».
Esse entendimento foi recentemente reafirmado no Acórdão n.º 389/2013, proferido pelo Plenário deste Tribunal.
Tais argumentos são transponíveis para o quadro problemático em apreço, em que a responsabilidade subsidiária do gerente encontra expressão em pena de multa imposta em processo criminal, como já se entendeu no Acórdão n.º 249/2012.
Pelo que, em aplicação do entendimento que se extrai dos Acórdãos mencionados, há que não julgar inconstitucional a norma que é objeto do presente recurso.
III. Decisão
11. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea a), do n.º 1, do artigo 8.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na parte em que se determina a responsabilidade subsidiária dos gerentes por multas aplicadas por infrações previstas no RGIT;
b) E, em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Julho de 2013. – Fernando Vaz Ventura– Ana Guerra Martins - Pedro Machete - João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.