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Proc. nº 524/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos, M..., Lda., e outros interpuseram recurso de constitucionalidade do acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de Outubro de 1995, submetendo à apreciação do Tribunal Constitucional o nº 1º,2, da Portaria nº
302-B/84, de 19 de Maio.
O recurso de constitucionalidade não foi admitido, por despacho de
30 de Novembro de 1995.
Os recorrentes reclamaram do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional.
O Tribunal Constitucional, por Acórdão nº 270/98, de 9 de Março de
1998, deferiu a reclamação.
2. Junto do Tribunal Constitucional, os recorrentes alegaram, concluindo o seguinte: A. Estão reunidos os pressupostos de intervenção no Tribunal Constitucional, tal como se encontram definidos na alínea b) do nº 1 do artº 280º da CRP, cabendo ao Tribunal pronunciar-se sobre a natureza do comando considerado inconstitucional; B. O ponto nº 2 do nº 1 da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio viola frontalmente o princípio da legalidade tributária expresso nos arts. 106º e
107º, o) da CRP (hoje 103º e 165º, i)), na exacta medida em que constando de uma simples portaria, cria um verdadeiro imposto, que outra coisa não é que a imposição do pagamento dos diferenciais de preços dirigidos a certas empresas.
Por seu turno, o Secretário de Estado do Orçamento contra-alegou, concluindo o seguinte: Os 'diferenciais de preços' estabelecidos no ponto 2, do nº 1 da Portaria nº
302-B/84, de 19 de Maio, e que constituíam receita ou encargo do ex-Fundo de Abastecimento, não se incluem no âmbito da fiscalidade, da para-fiscalidade ou do monopólio fiscal, pelo que se não referem a matéria incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos dos artigos 106º e 107º, al. o) da C.R.P., na sua redacção primitiva, a que correspondem actualmente os artigos 103º e 165º, al. i).
O Secretário de Estado da Modernização Agrícola e Qualidade Alimentar também apresentou contra-alegações, que concluiu do seguinte modo: A) O nº 1 da Portaria nº 302-B/84 cria um diferencial de preços a reverter para o Fundo de Abastecimento . B) Não sendo imposto os diferenciais criados pela referida Portaria, esta não viola os arts. 106º e 107º do CRP na versão em vigor em 1984.
Por último, o Secretário de Estado do Comércio, nas suas contra-alegações, concluiu o seguinte:
1º - Os diferenciais de preços previstos no nº 1º-2 da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio, publicado ao abrigo do Decreto-Lei nº 45-835, de 27 de Julho de
1964, não assumem a natureza de imposto.
2º - O preceito em causa não enferma, pois, do vício de inconstitucionalidade que lhe é imputado pelos Recorrentes.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. O objecto do presente recurso de constitucionalidade é constituído pela apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no nº 1º,2, da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio.
É a seguinte a redacção desse preceito:
2 - As fábricas referidas no nº 1 liquidarão ao Fundo de Abastecimento, mediante guias passadas pelo APO, no prazo de 30 dias, os diferenciais entre os preços por que adquiriram as matérias-primas em seu poder à data da publicação da presente portaria e os novos preços fixados pelo Despacho Normativo nº 102/84.
Os recorrentes sustentam que tal norma é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária [artigos 106º e 167º, alínea o) - actuais artigos 103º e 165º, alínea i) - , da Constituição], uma vez que os diferenciais de preços nela previstos são verdadeiros impostos.
5. A argumentação aduzida pelos recorrentes no presente recurso de constitucionalidade pressupõe a qualificação dos diferenciais de preços consagrados pela norma impugnada como impostos.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a natureza jurídica dos diferenciais de preços. Com efeito, no Acórdão nº 7/84, de 24 de Janeiro
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., 1984, p. 85 e ss.), ao proceder à apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 25º, nº 1, e 27º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 70/78, de 7 de Abril, o Tribunal Constitucional, depois de referir os elementos constitutivos do imposto, considerou que os 'diferenciais ou diferenças não são senão aquilo que o seu próprio nome indica: diferenças de preços' ou 'lucros, tratando-se de diferenças, para mais, entre os preços antigos e os novos preços; e perdas, no caso inverso'. O Tribunal Constitucional sublinhou, ainda, que os diferenciais ou diferenças apenas surgiam quando se verificava uma alteração de preços, o que tornava estas medidas instrumento de formação e de controlo dos preços.
O Tribunal Constitucional, por último, afirmando que 'as receitas em questão não se incluem, quer no âmbito da fiscalidade, quer no da parafiscalidade', concluiu que as normas em apreciação não violam qualquer preceito constitucional.
6. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional aprecia a conformidade à Constituição da norma que obriga as fábricas de extracção e refinação de óleos e as fábricas de sabões, margarinas e alimentos compostos para animais a pagar ao Fundo de Abastecimento os diferenciais entre os preços por que adquiriram as matérias-primas em seu poder à data da publicação da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio, e os novos preços fixados pelo Despacho Normativo nº 102/84.
Ora, como se referiu, os diferenciais de preços consubstanciavam fundamentalmente um meio de controlo, quanto a lucros e perdas, do funcionamento dos circuitos de comercialização de determinados bens. Dada a sua fisionomia específica, configuravam-se como prestações pecuniárias eventuais, de montante incerto, dependentes das variações dos preços de mercado sujeitos a intervenções administrativas, que tanto podiam reverter a favor do Fundo de Abastecimento, como a favor do agente (consoante o sentido da diferença de preços).
Os recorrentes sustentam, no entanto, que os diferenciais visavam
'arrecadar uma receita para o Fundo de Abastecimento, com vista a financiar preços de outros bens'.
Como se menciona no citado Acórdão nº 7/84, 'constituem receitas do Fundo de Abastecimento, entre outras, as taxas e diferenciais que lhe estejam legalmente atribuídos'. Contudo, e como decorre da fundamentação do Acórdão, a circunstância de se tratar de uma receita (eventual, sublinhe-se) do Fundo de Abastecimento não confere necessariamente natureza fiscal à prestação em causa.
Com efeito, o que se afigura decisivo para o recorte da respectiva natureza jurídica é o facto de os diferenciais consubstanciarem, dada a sua estrutura (e ao contrário do que afirmam os recorrentes), mecanismos de regulamentação do funcionamento do mercado em casos de actualização administrativa de preços, que tanto podem constituir receitas como encargos do Fundo de Abastecimento. Como se sublinha na declaração de voto junta ao Acórdão nº 7/84, na 'hipótese de ocorrerem défices (...) não estamos perante uma situação tributária: ora, as duas situações devem merecer qualificação e tratamento jurídico-constitucionais idênticos'. É pois esta configuração dos diferenciais (à qual não é naturalmente alheia a sua finalidade) que permite negar a natureza tributária das prestações (mesmo quando a favor do Fundo de Abastecimento).
Note-se, por outro lado, diferentemente do sustentado pelos recorrentes, que tal entendimento assenta na análise objectiva das prestações em causa, não contendo pois qualquer subjectivização ou incerteza incompatíveis com a necessidade de 'definição clara das situações' e com a certeza e segurança do Direito.
7. Por último, os recorrentes invocam o entendimento de Alberto Xavier (Manual de Direito Fiscal, tomo I, 1974, pp. 74 e 75), não desenvolvendo, porém, qualquer argumento.
Relativamente aos argumentos deriváveis do texto referido, dir-se-á, no entanto, que nesse texto se procede à determinação da natureza jurídica das
'taxas' dos organismos de coordenação económica, não se fazendo referência expressa e directa à natureza dos diferenciais. Aliás, do texto resulta uma autonomização dos diferenciais em relação às 'taxas', pois aí se afirma que a técnica de intervenção económica se pode basear 'na consignação de receitas tributárias a um fundo que, por seu lado, financia os subsídios ou diferenciais que se mostrem necessários face à política de preços seguida' (do trecho transcrito conclui-se que receitas tributárias são as 'taxas' que serão consignadas a um fundo que financiará os diferenciais).
Contudo, e de modo decisivo, notar-se-á que o texto invocado pelos recorrentes não contém qualquer argumento que contrarie a fundamentação do Acórdão nº 7/84, bem como o entendimento desenvolvido no presente aresto. Com efeito, nesse texto acentua-se o carácter unilateral das referidas 'taxas' (que não abrangem, como se demonstrou, os diferenciais), circunstância que de forma alguma colide com a conclusão que se retirou da análise substancial (da estrutura e da função) dos diferenciais de preços consagrados pelo nº 1º, 2, da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio.
Conclui-se, assim, que os diferenciais consagrados pela norma impugnada no presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade não têm natureza fiscal ou parafiscal. Nessa medida, tal norma não viola o princípio da legalidade tributária [artigos 106º e 167º, alínea o), da Constituição], pelo que não se concederá provimento ao recurso.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no nº 1º,2, da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio, negando provimento ao recurso e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 14 de Julho de 1999- Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida