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Processo n.º 775/08
 Plenário
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
                                                    
 Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
 
  
 I. Relatório
 
   
 
 1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional 
 requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e 
 Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro 
 
 (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da 
 inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2º, nº 3 do Decreto-Lei nº 
 
 198/95, de 29 de Julho, na redacção resultante do artigo único do Decreto-Lei nº 
 
 52/2000, de 7 de Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos 
 serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de 
 demonstração da titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias 
 subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde 
 prestados.
 
  
 Fundamentou o seu pedido na circunstância de tal interpretação normativa ter 
 sido julgada materialmente inconstitucional, no âmbito da fiscalização concreta, 
 
  por violação das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º e 64º da 
 Constituição, através do acórdão nº 67/07 e das decisões sumárias nºs 557/07 e 
 
 274/08.
 
  
 Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, 
 o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.
 
  
 
  
 II. Fundamentação
 
  
 
 2. A questão que vem discutida é a de saber se é conforme ao disposto nos 
 artigos 2º, 18º e 64º da Lei Fundamental, a exigência imposta pelo artigo 2º, 
 n.º 3, do Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, alterado pelo artigo único do 
 Decreto-Lei n.º 52/2000, de 7 de Abril, no sentido de ser efectuada a cobrança 
 do valor da prestação de cuidados de saúde em estabelecimento ou serviço 
 integrado no Serviço Nacional de Saúde, quando o interessado, não tendo 
 apresentado o cartão de identificação de utente, não tenha feito a prova, no 
 prazo cominado naquela disposição, de que é dele titular ou requereu perante os 
 serviços competentes a sua emissão. 
 
  
 No acórdão n.º 67/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da 
 inconstitucionalidade material da referida disposição, concluindo que uma norma 
 que impõe ao utente economicamente carenciado o efectivo pagamento dos serviços 
 clínicos prestados como mera consequência do incumprimento de um ónus 
 procedimental ou formal, de natureza manifestamente secundária, é incompatível 
 com o princípio da proporcionalidade e com o carácter universal e 
 tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde, expressão da consagração 
 constitucional do direito à saúde, implicando a violação dos artigos 2.º, 18.º e 
 
 64.º da Constituição.
 
  
 Para assim decidir, teve em linha de conta que o regime jurídico em causa tem 
 por consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços 
 prestados, sem ter previsto a forma pela qual a interpelação para pagamento dos 
 encargos decorrentes dos serviços prestados vem a ter lugar e sem permitir 
 sequer a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimento 
 do dever acessório em questão.
 
  
 Esta jurisprudência foi depois reiterada pelas decisões sumárias n.ºs 557/07 e 
 
 278/08.
 
  
 Sendo estes os termos em que a questão se coloca, cabe efectuar antes de mais o 
 necessário enquadramento sistemático da norma sobre a qual se impõe a formulação 
 do juízo de constitucionalidade.
 
  
 
 3. O Decreto-Lei n.º 198/95 criou o cartão de utente do Serviço Nacional de 
 Saúde, que é emitido pelos serviços competentes da administração regional de 
 saúde da área da residência do titular (artigo 4º), e que, fora certas situações 
 excepcionadas na lei, se destina a ser apresentado perante instituições ou 
 serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para efeito de prestação de 
 cuidados médicos, requisição e acesso a meios auxiliares de diagnóstico e 
 prescrição e aquisição de medicamentos (artigo 3º).
 
  
 Na sua redacção originária, o artigo 2º desse diploma dispunha:
 
  
 
  
 
 1- O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com 
 natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante as 
 instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades 
 privadas na área da saúde.
 
 2- O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para 
 os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de 
 identificação do seu titular.
 
  
 Como se depreende ainda do preâmbulo do diploma, a instituição do cartão de 
 utente, de emissão gratuita e natureza substitutiva, sendo idêntico aos já 
 existentes para utentes de subsistemas de saúde, constituía uma medida de 
 simplificação do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde, sem pôr em 
 causa os princípios da universalidade e da equidade deste Serviço, e pretendia 
 assegurar uma mais fácil identificação pessoal nos serviços de saúde, eliminando 
 procedimentos burocráticos e facilitando a atribuição da isenção das taxas 
 moderadoras e o reconhecimento de situações de isenção, além de permitir uma 
 mais adequada articulação entre o Estado e as entidades privadas legal ou 
 contratualmente responsáveis por encargos decorrentes de prestações de saúde.
 
  
 O citado Decreto-Lei n.º 52/2000 introduziu uma única alteração a esse diploma, 
 passando a conferir à referida disposição do artigo 2º a seguinte redacção:
 
  
 
 1- O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os 
 utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema 
 Nacional de Saúde ou com ele convencionado.
 
 2- A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em 
 caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.
 
 3- Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando 
 devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente 
 identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos dez dias 
 seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde 
 prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de 
 identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde. 
 
  
 O objectivo da modificação legislativa, como também resulta da respectiva nota 
 preambular, foi o de promover a generalização do uso do cartão de utente no 
 sistema de saúde, implementando para tal desiderato duas condicionantes que são 
 assim explicitadas:
 
  
 Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr 
 em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando 
 que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do 
 Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.
 Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do 
 cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é 
 beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento 
 directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se 
 apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou 
 não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta 
 responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço 
 Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir 
 da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o respectivo 
 documento de identificação.
 
  
 O Decreto-Lei n.º 52/2000 teve, pois, em vista incentivar o uso do cartão do 
 utente pela população, passando a sancionar com a sujeição ao pagamento dos 
 serviços de saúde prestados, a falta de prova da titularidade do direito, dentro 
 de um prazo curto e peremptório subsequente à interpelação para pagamento, 
 quando o interessado não tenha apresentado o cartão de identificação na ocasião 
 da utilização dos serviços.
 
  
 Poderá assentar-se, por outro lado, sem que isso represente por agora um 
 qualquer comprometimento com a solução do caso, no conteúdo jurídico do direito 
 constitucional positivo que está especialmente em causa, bem como na natureza da 
 limitação que é imposta ao exercício desse direito quando se pretenda regular 
 legislativamente, como é o caso, o acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
 
  
 A prestação de cuidados de saúde através dos estabelecimentos e serviços 
 integrados no Serviço Nacional de Saúde, entendido este como um serviço 
 universal quanto à população abrangida, destinado a prestar ou a garantir a 
 prestação de cuidados globais, e tendencialmente gratuito para os utentes, dá 
 concretização prática ao direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64º 
 da Constituição.
 
  
 Nesta sua vertente, o direito à protecção da saúde adquire a natureza de um 
 direito social com um certo grau de vinculatividade normativa.
 
  
 Como tem sido já sublinhado, os preceitos relativos a direitos sociais (como 
 outros referentes a direitos económicos e culturais) contêm normas jurídicas 
 vinculantes que impõem positivamente ao legislador a realização de determinadas 
 tarefas através das quais se pode concretizar o exercício desses direitos.
 
  
 Por sua vez, o grau de conformação legislativa é variável consoante o carácter 
 mais ou menos determinado ou determinável da imposição constitucional 
 respectiva, pelo que o legislador fica sempre vinculado às directrizes materiais 
 que resultem expressamente ou por via interpretativa das normas que imponham, 
 nesse domínio, tarefas específicas (Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais 
 na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, págs. 397-401; no mesmo 
 sentido, ainda Gomes Canotilho, Direito  Constitucional e Teoria da 
 Constituição, 7ª edição, Coimbra, pág. 471).
 
  
 Concretamente em relação à criação e manutenção de um serviço nacional de saúde, 
 como componente do direito à protecção à saúde, constitucionalmente consagrado 
 
 (artigo 64º, n.º 2, alínea a)), o Tribunal Constitucional teve já oportunidade 
 de afirmar que se trata aí de uma obrigação constitucional do Estado como meio 
 de realização de um direito fundamental, e não uma vaga e abstracta linha de 
 acção de natureza meramente programática (acórdão n.º 39/84, publicado no Diário 
 da República, I Série, de 5 de Maio de 1984).
 
  
 Como norma constitucional impositiva, essa mesma disposição apresenta-se como 
 parâmetro de controlo de constitucionalidade quando estejam em causa medidas 
 legais ou regulamentares que afectem ou inutilizem o direito.
 Nesse sentido, pode invocar-se a inconstitucionalidade de normas relativas a 
 prestações estaduais por ofensa do conteúdo mínimo determinável de um direito 
 social fundamental, ou ainda por violação dos princípios constitucionais ínsitos 
 no Estado de direito democrático, como sucede quando se restrinja 
 injustificadamente o âmbito dos beneficiários, através de um tratamento legal 
 discriminatório (Vieira de Andrade, ob. cit., págs. 402 e 415).
 
  
 Nada parece, também, obstar a que o controlo das soluções legislativas 
 incidentes sobre direitos sociais se efectue por via da aplicação do princípio 
 da razoabilidade ou da proporcionalidade em sentido estrito (Gomes Canotilho, ob 
 cit., pág. 472).
 
  
 
 4. No caso concreto, o legislador começou por introduzir o cartão de 
 identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde, como um meio alternativo 
 de comprovação da qualidade de beneficiário, que seria destinado a substituir 
 qualquer outro documento pelo qual fosse igualmente possível efectuar essa 
 prova. Por sua vez, a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 52/2000, 
 mediante a nova redacção dada ao artigo 2º, teve em vista impor o uso do cartão 
 de utente como o único meio de identificação perante os serviços de saúde, 
 estipulando concomitantemente a presunção de que o interessado não é 
 beneficiário do Serviço Nacional da Saúde, encontrando-se, por isso, sujeito ao 
 pagamento dos encargos com a assistência médica, quando não tenha feito a prova, 
 nos dez dias seguintes à interpelação para pagamento, de que é titular do cartão 
 de identificação ou requereu já nos serviços competentes a sua emissão.
 
  
 
 À luz das normas e princípios constitucionais, nada pode obstar, no entanto, a 
 que o legislador implemente, por razões de política legislativa, um mecanismo de 
 identificação dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, em ordem a 
 assegurar a agilização do funcionamento das unidades prestadoras de cuidados de 
 saúde.
 
  
 Por outro lado, face ao regime legal, a exigência da apresentação do cartão de 
 utente não põe em causa a obrigatoriedade da prestação dos cuidados médicos, tal 
 como desde logo resulta do disposto no n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 
 
 198/95, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 52/2000, que expressamente 
 determina que a não identificação dos utentes nos termos previstos «não pode, em 
 caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde».
 
  
 Nestes termos, a sujeição dos utentes, segundo o disposto no n.º 3 do mesmo 
 preceito, à demonstração, dentro do prazo de dez dias seguintes à interpelação 
 feita pelos serviços de saúde, de que são titulares ou requereram a emissão do 
 cartão de identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde, como forma de se 
 eximirem ao pagamento dos encargos devidos com os cuidados de saúde prestados, 
 não afecta em si o direito à protecção da saúde tal como é garantido pelo artigo 
 
 64º, n.º 2, alínea b), da Lei Fundamental.
 
  
 A exigência legal traduz antes um mero condicionamento de natureza procedimental 
 relativo ao exercício do direito e que, no imediato, permite aos centros de 
 saúde e estabelecimentos da rede hospitalar efectuar o controlo do acesso dos 
 cidadãos aos cuidados de saúde prestados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde. 
 
 
 
  
 
 5. Afigura-se, no entanto, que nenhuma das circunstâncias apontadas no acórdão 
 n.º 67/2007 poderá entender-se como indiciária de uma qualquer evidente violação 
 do princípio da proporcionalidade.
 
  
 A interpelação a que alude o n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 198/95, na 
 sua actual redacção, insere-se no âmbito de um procedimento administrativo 
 desencadeado pela prestação de assistência médica a um utente num 
 estabelecimento hospitalar, a que deverá aplicar-se, por se tratar de uma 
 formalidade que impõe ao destinatário um dever ou encargo, o regime de 
 notificação de actos administrativos a que se refere o artigo 70º do Código de 
 Procedimento Administrativo (CPA).
 
  
 Estando normalmente excluídas as hipóteses consideradas nas alíneas c) e d) do 
 n.º 1 desse artigo (que se referem a situações em que há urgência na notificação 
 ou em que se justifica a notificação edital), a notificação é feita por via 
 postal ou pessoalmente, aplicando-se esta última modalidade se não prejudicar a 
 celeridade do procedimento ou se for inviável a notificação através dos serviços 
 de correio.
 
  
 Esse é, em geral, o modo por que devem ser notificados aos interessados os actos 
 administrativos que decidam quaisquer pretensões por eles formuladas, que 
 imponham deveres, sujeições ou sanções ou causem prejuízos e que criem, 
 extingam, aumentem ou diminuam direitos ou interesses legalmente protegidos ou 
 afectem as condições do seu exercício (artigo 66º do CPA).
 
  
 A única exigência constitucional, neste plano, é a que resulta do artigo 268º, 
 n.º 3, primeira parte, da Lei Fundamental, pelo qual a Administração tem o dever 
 de dar conhecimento das suas decisões aos interessados, «na forma prevista na 
 lei».
 
  
 O Tribunal Constitucional tem interpretado esta disposição no sentido de que a 
 notificação deve constituir um meio de comunicação autónomo e individualizado 
 que assegure o efectivo conhecimento do sentido e objecto do acto por parte do 
 seu destinatário (cfr. acórdão n.º 72/2009 que efectua uma recensão da 
 jurisprudência mais relevante nesta matéria). Os requisitos essenciais da 
 notificação são, nestes termos, a pessoalidade da comunicação e a 
 cognoscibilidade efectiva do acto notificando, o que permite reconduzir o 
 direito à notificação a um direito à recepção do acto na esfera de 
 perceptibilidade normal do destinatário [Pedro Gonçalves, Notificação dos Actos 
 Administrativos (Notas sobre a génese, âmbito, sentido e consequências de uma 
 imposição constitucional), em Ab Vno Ad Omnes – 75 Anos da Coimbra Editora – 
 
 1920‑1995, Coimbra, pág. 1115).  
 
  
 O artigo 68º do CPA pretende dar concretização prática a este imperativo 
 constitucional, ao estabelecer, sob a epígrafe «Conteúdo da notificação», que 
 dela devem constar o texto integral do acto (ou a indicação resumida do seu 
 conteúdo e objecto), a identificação do procedimento administrativo (incluindo a 
 indicação do autor do acto e a data deste), e o órgão competente para apreciar a 
 impugnação administrativa e o prazo para o efeito (quando não seja logo passível 
 de impugnação jurisdicional).
 
  
 O mencionado preceito constitucional prende-se, no entanto, com os requisitos 
 materiais da notificação e não com o procedimento pelo qual a notificação deve 
 ser efectuada. Em relação a este último aspecto, a Constituição não prescreve 
 uma forma única de notificação, nada obstando a que a lei ordinária possa prever 
 como meios de comunicação do acto administrativo a notificação oral, por via 
 postal, mediante a entrega por funcionário, por meio de telecomunicações ou 
 informático. O que se torna exigível é que se trate de uma notificação 
 endereçada (salvo situações de excepção em que possam considerar-se 
 justificáveis como a dispensa ou presunção da notificação), o que desde logo 
 permite excluir que a notificação possa ser substituída pela publicação do acto 
 
 (idem, págs. 1116).
 
  
 Em todo o caso, importa notar que, por força do dever de notificação que resulta 
 do artigo 268º, n.º 3, da Constituição, o ónus da prova do conhecimento do acto 
 cabe à Administração, pelo que a não previsão, na lei, de um específico 
 procedimento que garanta a efectiva recepção pelo destinatário da carta de 
 notificação (designadamente, o uso do correio registado com aviso de recepção) 
 não pode trazer qualquer consequência processual negativa para o interessado.
 
  
 E nesse sentido aponta o disposto no artigo 5º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 218/99, de 15 de Junho, que, no âmbito das acções para cobrança de dívidas 
 referentes a cuidados de saúde, faz impender sobre o credor a alegação do facto 
 gerador da responsabilidade pelos encargos, e, por isso, a prova de que, uma vez 
 interpelado, o utente não demonstrou que era titular do cartão de identificação 
 ou que tinha já requerido a sua emissão.
 
  
 Ora, em todo este contexto, não se vê nenhum motivo para que a interpelação a 
 que se refere o n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 198/95 devesse ser 
 efectuada por forma mais exigente do que está geralmente previsto para a 
 notificação de actos administrativos que imponham deveres, sujeições ou sanções 
 ou causem prejuízos, e devesse por isso encontrar-se sujeita a uma forma 
 especialmente regulada na lei. E mal se compreende que a ausência dessa especial 
 previsão legal seja, em si, violadora do princípio da proporcionalidade, quando 
 daí não resulta que a Administração fique liberada do ónus da prova de que 
 efectuou a interpelação.
 
  
 Por outro lado, apenas porque se não encontram especificados os termos em que 
 deve ser efectuada a interpelação, não é possível entrever na norma em causa um 
 qualquer critério normativo propiciador de práticas administrativas ilegais, que 
 se torne susceptível de ser confrontado com o parâmetro da proporcionalidade.
 
  
 De facto, a interpelação, tal como está prevista na referida disposição, 
 constitui um procedimento vinculado da Administração, que, na falta de indicação 
 de um formalismo próprio, deve obedecer aos requisitos gerais da notificação dos 
 actos administrativos. De tal modo que a omissão ou o deficiente cumprimento do 
 dever de notificar, em cada caso concreto, mormente quando não tenha sido 
 explicitado o ónus que impende sobre o utente ou as consequências que resultam 
 do seu incumprimento, acarreta a inviabilidade da cobrança dos encargos 
 relativos às prestações de saúde, por inexistência do pressuposto de que 
 dependia essa exigência.
 
  
 A eventual insuficiência do conteúdo da notificação é, assim, uma questão 
 atinente à própria actividade administrativa, que se não reflecte no juízo de 
 constitucionalidade que incide sobre a norma, em si mesma considerada.
 
  
 
 6. Outro argumento a que o acórdão n.º 67/2007 deu particular relevo assenta na 
 circunstância de os serviços de saúde terem possibilidade de realizar a prova, 
 através dos elementos que lhe são fornecidos no momento da prestação de cuidados 
 médicos, de que o utente é beneficiário do SNS.
 
  
 Neste caso, parece ter-se pretendido pôr em causa a própria idoneidade ou 
 aptidão do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei.
 
  
 No entanto, deve ter-se em conta, como observa Reis Novais, que o controlo da 
 idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da 
 proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objectiva e formal de um 
 meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade 
 intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é 
 
 útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado 
 pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos 
 correspondentes. E, assim, a medida só será susceptível de ser invalidada por 
 inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se 
 indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do 
 fim visado (Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, 
 Coimbra, 2004, págs. 167-168). 
 
  
 Como se esclareceu, a norma em causa visa instituir uma medida de política 
 legislativa destinada, não apenas a assegurar a identificação pessoal dos 
 cidadãos no momento em que pretendam obter a prestação de cuidados de saúde, mas 
 também a incentivar o uso do cartão de utente por parte dos beneficiários por 
 forma a agilizar os procedimentos de acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
 
  
 O legislador dispõe de liberdade de conformação legislativa para realizar esses 
 objectivos e não pode o intérprete, a pretexto do controlo da proporcionalidade, 
 pôr em causa o mérito da solução legislativa adoptada.
 
  
 Por outro lado, a consideração – de que parte o citado acórdão n.º 67/2007 – de 
 que sempre seria possível a identificação do utente por uma via diversa daquela 
 que está legalmente prevista, representaria a própria inviabilização do 
 mecanismo de controlo e acesso aos serviços de saúde que o legislador quis 
 legitimamente instituir, transformando um meio de identificação que se pretendeu 
 ser de uso obrigatório num meio de identificação meramente facultativo.
 E a questão não pode sequer colocar-se à luz do princípio da necessidade ou da 
 indispensabilidade. Tendo o legislador pretendido implementar um sistema 
 uniforme de identificação do universo dos beneficiários que sirva de instrumento 
 regulador e racionalizador do acesso às prestações de saúde, não pode afirmar-se 
 que o meio efectivamente escolhido poderia ser substituído por qualquer outro 
 procedimento que permitisse efectuar ocasionalmente a prova da qualidade de 
 beneficiário.
 
   
 A possível existência de um outro meio para obter a identificação dos utentes 
 não pode, pois, servir de fundamento para que se considere verificada a violação 
 do princípio da proporcionalidade.
 
  
 
 7. Um outro elemento de ponderação que conduziu ao juízo de 
 inconstitucionalidade, no citado acórdão n.º 67/2007, radica na ideia de que a 
 lei não permite a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no 
 incumprimento do dever acessório de identificação.
 
  
 A questão, porém, não pode colocar-se nestes termos.
 
  
 O Serviço Nacional de Saúde, sendo constituído por um conjunto ordenado e 
 hierarquizado de instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, não 
 deixa de integrar um serviço público, que, como tal, está sujeito às suas 
 próprias regras de organização e funcionamento e que são modificáveis em função 
 da variabilidade quanto ao modo como se entende, em cada momento, dever ser 
 prosseguido o interesse público em presença.
 
  
 Os utentes de um serviço público, independentemente do seu carácter gratuito ou 
 oneroso, ficam sujeitos às regras que estão legal e regulamentarmente definidas 
 relativamente às condições de acesso e utilização, de tal modo que para 
 beneficiarem das vantagens que são disponibilizadas pelo serviço carecem de 
 cumprir os correspondentes deveres, ónus e sujeições.
 
  
 Não tem qualquer cabimento falar a este propósito de um princípio de culpa, como 
 se se tratasse de matéria de responsabilidade civil, criminal ou 
 contra-ordenacional.
 
  
 Na verdade, os particulares que pretendam aceder aos bens ou serviços 
 proporcionados pela Administração colocam-se numa situação jurídica especial que 
 decorre da relação de utilização do serviço público, que pressupõe a 
 titularidade de direitos subjectivos mas também de posições jurídicas de 
 desvantagem que derivam da lei, de regulamento ou do mero exercício de poderes 
 jurídico-públicos de regulação, e que constituem o contraponto aos benefícios 
 que podem ser obtidos por via do exercício de uma actividade administrativa de 
 interesse geral (sobre estes aspectos, Freitas do Amaral, Curso de Direito 
 Administrativo, 2ª edição, I vol., Coimbra, págs. 628-629).
 
  
 E, nestes termos, as consequências jurídicas que provêm do incumprimento, pelos 
 utentes, de qualquer dos deveres ou sujeições a que estão obrigados não está 
 dependente de qualquer prévio juízo de censura (a menos que a lei fixe ela 
 própria critérios de relevação da conduta do particular) e constituem mera 
 decorrência objectiva do regime de organização e funcionamento do serviço, tal 
 como está normativamente gizado.
 
  
 E, nesse ponto, o condicionamento que tenha sido imposto por lei apenas pode 
 considerar-se constitucionalmente ilegítimo quando se mostre desadequado e 
 desproporcionado de modo a que possa dificultar gravemente o exercício concreto 
 do direito em causa (cfr. acórdão n.ºs 413/89, publicado no Diário da República, 
 II Série, de 15 de Setembro de 1989, cuja doutrina foi refirmada, 
 designadamente, no acórdão n.º 247/02).
 
  
 No caso vertente, porém, nada permite concluir que a exigência constante do 
 artigo 2º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 198/95 seja excessiva ou intolerável em 
 termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade.
 
  
 Isso porque se trata, como se viu, não de uma medida supérflua de identificação 
 pessoal do utente, mas de simplificação e harmonização de procedimentos, 
 designadamente em vista a assegurar um mais rigoroso controlo do acesso ao 
 serviço, facilitar o reconhecimento de situações de isenção de taxas moderadoras 
 e permitir uma mais adequada articulação entre as diversas instituições e 
 serviços envolvidos. E, por outro lado, porque representa um esforço mínimo por 
 parte do interessado, que poderá com toda a facilidade efectuar a prova da sua 
 qualidade de utente, ainda em tempo útil, bastando-lhe que demonstre ter já 
 solicitado a emissão do cartão de identificação ainda que à data da prestação de 
 cuidados de saúde não pudesse ser considerado seu titular.
 
  
 Resta acrescentar que no sentido da não inconstitucionalidade da solução 
 legislativa em causa se pronunciou o acórdão n.º 512/2008. 
 
  
 
  
 III. Decisão
 
  
 Nestes termos, decide-se não declarar a inconstitucionalidade da norma do n.º 3 
 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, na redacção dada pelo 
 artigo único do Decreto-Lei n.º 52/2000, de 7 de Abril, quando interpretada no 
 sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o 
 utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de 
 utente no prazo de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos 
 encargos com os cuidados de saúde.
 
  
 
  
 Lisboa, 05 de Maio de 2009
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Gil Galvão
 Maria Lúcia Amaral
 José Borges Soeiro
 Vítor Gomes
 Maria João Antunes
 
                                       Mário José de Araújo Torres (vencido, nos 
 termos da declaração de voto junta)
 
                                    Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos 
 da declaração de voto junta)
 
                                               João Cura Mariano (vencido nos 
 termos da 
 
                                             declaração de voto junta ).
 
                                              Benjamim Rodrigues (vencido de 
 acordo com a 
 
                                              declaração anexa)
 
                                          Rui Manuel Moura Ramos (Vencido nos 
 termos da 
 
      declaração de voto junta).
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
                         1. A minha primeira discordância relativamente ao 
 precedente acórdão respeita à determinação da extensão dos poderes de cognição 
 do Tribunal Constitucional em processos de “generalização de juízos de 
 inconstitucionalidade”.
 
                         Como no recente Acórdão n.º 135/2009, do Plenário do 
 Tribunal, se assinalou:
 
  
 
             “6. Diversamente do que ocorre nos processos de fiscalização 
 abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade originados em 
 pedidos formulados ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º da CRP, em que 
 compete ao Tribunal Constitucional determinar, aplicando as regras de 
 interpretação jurídica tidas por relevantes, qual o correcto conteúdo da norma 
 questionada, não estando vinculado a adoptar a leitura perfilhada pelo 
 requerente, nos processos de «generalização» de juízos concretos de 
 inconstitucionalidade e de ilegalidade, referidos no n.º 3 daquele preceito 
 constitucional e no artigo 82.º da LTC, constitui um dado da questão a decidir, 
 insusceptível de alteração pelo Tribunal, a específica interpretação normativa 
 que foi objecto de anteriores juízos de inconstitucionalidade ou ilegalidade, 
 interpretação essa que, por seu turno, corresponde, em regra, à adoptada nas 
 decisões dos restantes tribunais objecto dos recursos de fiscalização concreta, 
 onde viriam a ser emitidos esses juízos, já que o Tribunal, por via de princípio 
 
 (ressalvados os casos de uso da faculdade excepcional prevista no artigo 80.º, 
 n.º 3, da LTC), se abstém de sindicar a correcção da interpretação do direito 
 ordinário efectuada pelas instâncias (cf. Acórdãos n.ºs 27/2006 e 63/2006).
 
             Assim como, nos processos de fiscalização concreta onde foram 
 emitidos os juízos de inconstitucionalidade cuja «generalização» agora se 
 pretende, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre qual a 
 interpretação do direito ordinário que considerava mais correcta, também agora 
 do que se trata é de decidir se padece, ou não, de inconstitucionalidade o 
 critério normativo identificado nas decisões das instâncias e que foi objecto 
 dos juízos de inconstitucionalidade nas três decisões invocadas (…).”
 
  
 
                         Essa tem sido a conduta desde sempre adoptada por este 
 Tribunal perante pedidos de generalização de juízos de inconstitucionalidade, 
 mesmo em casos em que era óbvia a dúvida (e, nalguns casos, mesmo a certeza) de 
 que o critério normativo julgado inconstitucional nas três decisões anteriores 
 do Tribunal Constitucional (coincidente com o critério normativo aplicado ou 
 recusado aplicar nas decisões das instâncias objecto de impugnação) não 
 correspondia à melhor interpretação do direito ordinário em causa.
 
                         Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 27/2006 – que decidiu 
 
 “declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma 
 constante do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na 
 redacção que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, 
 conjugada com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre 
 que, em processo contra‑ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o 
 recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta” –, o Tribunal 
 Constitucional aceitou como um dado da questão o entendimento (que fora seguido 
 pelas decisões dos tribunais recorridos sobre que recaíram o Acórdão n.º 
 
 462/2003 e as Decisões Sumárias n.ºs 284/2004 e 318/2005, com base nos quais 
 fora deduzido o pedido de generalização) de que o prazo para a resposta ao 
 recurso da decisão proferida na impugnação judicial de uma decisão de aplicação 
 de uma coima era, por aplicação subsidiária do disposto no artigo 413.º do 
 Código de Processo Penal, de 15 dias, enquanto que o prazo para o arguido 
 interpor e motivar esse recurso estava fixado em 10 dias pelo n.º 1 do artigo 
 
 74.º do Decreto‑Lei n.º 433/82. Mas, como se intuía da própria fundamentação do 
 Acórdão n.º 27/2006, a determinação daquele prazo de resposta foi assumido como 
 um dado (inalterável) da questão de constitucionalidade, sem que ao Tribunal 
 Constitucional, nessa sede, fosse lícito discutir a sua correcção, em termos 
 de interpretação de direito ordinário. E, consequentemente, sem qualquer 
 contradição, face a posteriores recursos de decisões das instâncias que seguiram 
 diversa interpretação – a interpretação que veio a ser consagrada no Acórdão de 
 fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2009, no sentido 
 de que “em processo de contra‑ordenação, é de dez dias quer o prazo de 
 interposição de recurso para a Relação quer o de apresentação da respectiva 
 resposta, nos termos dos artigos 74.º, n.ºs 1 e 4, e 41.º do Regime Geral de 
 Contra‑Ordenações (RGCO)” –, o Tribunal Constitucional viria, mesmo após a 
 prolação daquela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória 
 geral, a não conhecer de recursos interpostos ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da LTC, por falta de coincidência entre o critério normativo 
 anteriormente julgado (e declarado) inconstitucional pelo Tribunal 
 Constitucional e o critério normativo aplicado nas decisões então recorridas 
 
 (cf. Acórdãos n.ºs 573/2006, 20/2008 e 404/2008 e Decisões Sumárias n.ºs 
 
 250/2008, 330/2008, 386/2008, 106/2009 e 138/2009).
 
                         Similarmente, no Acórdão n.º 63/2006 – que, também em 
 processo de generalização de juízos de inconstitucionalidade, decidiu “declarar 
 a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante dos 
 artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao 
 Decreto‑Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na interpretação segundo a qual, sendo a 
 licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma, seria 
 devida a contribuição especial por este instituída que, assim, incidiria sobre a 
 valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele 
 requerimento” – deixou‑se bem claro que, citando o Acórdão n.º 81/2005 (a 
 primeira das decisões de inconstitucionalidade cuja generalização era 
 solicitada): “(…) as normas dos preceitos transcritos serão analisadas numa 
 específica interpretação, que é aquela que constitui o objecto do presente 
 recurso: a de que a contribuição especial é devida nos casos em que a licença de 
 construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 
 
 43/98, de 3 de Março, incidindo, como tal, sobre a valorização do terreno (no 
 qual se pretende construir) ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele 
 requerimento. Não pode obviamente o Tribunal Constitucional controlar tal 
 interpretação, sob o prisma da sua obediência às regras da interpretação da lei: 
 nomeadamente, não pode o Tribunal Constitucional aferir se os citados preceitos 
 legais deviam ter sido interpretados pelo tribunal recorrido do modo por que o 
 foram, isto é, como sendo aplicáveis aos casos em que a licença de construção 
 tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 43/98, de 3 de 
 Março. Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação 
 perfilhada (bem ou mal) pelo tribunal recorrido contraria a Constituição, 
 particularmente o princípio da não retroactividade dos impostos.”
 
                         Diversamente do que tem sido a constante – e correcta – 
 prática do Tribunal Constitucional na apreciação dos pedidos de generalização de 
 juízos de inconstitucionalidade, o precedente Acórdão não se limitou, como lhe 
 cumpria, a apreciar se os critérios normativos definidos nas decisões das 
 instâncias como aplicáveis aos casos em apreço e por elas julgados 
 inconstitucionais – juízos de inconstitucionalidade estes que, com os contornos 
 assim definidos, foram confirmados nas três anteriores decisões do Tribunal 
 Constitucional –, padeciam, ou não, de inconstitucionalidade. Pelo contrário, o 
 precedente Acórdão desprezou o alcance específico dos anteriores juízos de 
 inconstitucionalidade e tratou de definir autonomamente a interpretação das 
 normas de direito ordinário em causa que reputava por mais correcta, como se de 
 um “normal” processo de fiscalização abstracta de constitucionalidade se 
 tratasse, o que, pelas razões expostas, representa a adopção de uma metodologia 
 que considero inaplicável ao tipo de processo em causa.
 
  
 
                         2. Se o objecto da pronúncia a proferir no presente 
 processo pelo Tribunal Constitucional tivesse sido – como devia ser – reportado 
 ao critério normativo julgado inconstitucional nas três decisões em que se 
 fundou o pedido de generalização, a solução não podia deixar de ser a da 
 inconstitucionalidade, tão flagrante ela se apresenta.
 
                         Na verdade, não vejo como se possa considerar 
 respeitador do princípio da proporcionalidade e do direito à protecção da saúde 
 através de um serviço nacional de saúde, universal e geral, e tendencialmente 
 gratuito (artigos 18.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa), um 
 critério normativo segundo o qual o cidadão a quem foram prestados serviços de 
 saúde tem de suportar o seu custo apenas pela circunstância de, nos dez dias 
 posteriores à interpelação para pagamento, não ter demonstrado ser titular de 
 cartão de utente ou ter requerido a sua passagem, sendo de salientar que o 
 sistema legal não prevê que nessa interpelação para pagamento o visado seja 
 especificamente notificado para fazer a apresentação do cartão, com a cominação 
 de que, se o não fizer no aludido prazo, torna‑se‑lhe exigível o pagamento das 
 despesas com os cuidados médicos. Consequência esta que – segundo o critério 
 normativo em causa – decorre necessária e automaticamente da mera constatação 
 objectiva do decurso desse prazo de 10 dias sem apresentação da referida prova, 
 e sem possibilidade legal de ser atribuída relevância a eventual ausência de 
 culpa do interessado na falta de cumprimento desse dever procedimental 
 acessório. No caso sobre que recaiu o Acórdão n.º 67/2007 (e tudo leva a crer 
 que a situação se repetiu nos casos sobre que recaíram as Decisões Sumárias n.ºs 
 
 557/2007 e 274/2008), resulta do respectivo relatório que, para além de o réu na 
 acção não ter sido especificamente notificado para exibir o cartão de utente, 
 nem consequentemente advertido das consequências do incumprimento desse ónus, 
 nem sequer a carta contendo a interpelação para pagamento – ascendendo o 
 montante a pagar a € 4865,23, acrescido de € 322,71 de juros de mora já vencidos 
 e dos vincendos à taxa legal, até efectivo reembolso – chegou ao seu 
 conhecimento (o respectivo aviso de recepção foi assinado por outrem que não o 
 réu e este, ao tempo, encontrava‑se internado num centro de recuperação, não 
 contactando com o exterior, designadamente com familiares – factos provados C) 
 e E)), e deu‑se por provado que o réu era beneficiário da segurança social desde 
 Dezembro de 1990, sendo titular do cartão de beneficiário com o n.º 111363975 
 
 (facto provado F)).
 
                         Tal critério normativo viola flagrantemente o princípio 
 da proporcionalidade na definição das restrições ou condicionamentos ao direito 
 
 à protecção da saúde tendencialmente gratuito, constitucionalmente consagrado, 
 quer por não respeitar o requisito da necessidade (o controlo da titularidade do 
 réu às prestações do serviço nacional de saúde pode ser efectuado, com 
 facilidade e segurança, pela Administração, através de bases de dados 
 informatizadas, e, no caso apreciado no Acórdão n.º 67/2007, nenhuma dúvida 
 suscitava essa titularidade), quer por se revelar desproporcionado o carácter 
 extremamente gravoso das consequências (ter de suportar a integralidade das 
 despesas com a assistência hospitalar) em comparação com a natureza venial da 
 pretensa falta de colaboração procedimental do interessado.
 
  
 
                         3. O precedente acórdão optou, porém, por alterar o 
 objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, que deixou de ser o 
 critério normativo efectivamente julgado inconstitucional nas três anteriores 
 decisões do Tribunal, para passar a ser o critério normativo que se entendeu ser 
 o correspondente à mais correcta interpretação das normas legais em causa.
 
                         Mas, mesmo assim – e para além de, salvo o devido 
 respeito pela posição que logrou vencimento, considerar ilegítima essa alteração 
 do objecto do pedido –, não acompanhei a decisão de não inconstitucionalidade, 
 remetendo para as considerações a este respeito tecidas nas restantes 
 declarações de voto de vencido, que demonstram proficientemente a insubsistência 
 de tal decisão.
 
                         Mário José de Araújo Torres
 
  
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Divergi do entendimento que fez maioria, pois considero que a norma do n.º 3 do 
 artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 198/85, de 29 de Julho, quando interpretada no 
 sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o 
 utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de 
 utente no prazo de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos 
 encargos com os cuidados de saúde é atentatória do princípio da 
 proporcionalidade, logo na medida em que a solução não se mostra indispensável 
 ou necessária à prossecução do fim tido em vista.
 Na verdade, é minha opinião que o regime em apreciação não corresponde ao meio 
 mais suave ou menos gravoso, ao alcance do legislador, para atingir o resultado 
 pretendido de implementação de um sistema uniforme de identificação dos 
 beneficiários, através da apresentação do cartão de utente. Mesmo que se 
 considere a promoção e generalização do uso deste como o objectivo final da 
 mudança legislativa operada como o Decreto-Lei n.º 52/2000, e não apenas uma 
 medida intercalar, dirigida, em último termo, à simplificação e facilitação dos 
 procedimentos administrativos, ele poderia ser alcançado por uma via diversa da 
 legalmente prescrita, com uma sensivelmente menor afectação desvantajosa do 
 direito à prestação de cuidados de saúde, nas condições, constitucionalmente 
 devidas, de tendencial gratuitidade.
 Contrariamente ao afirmado no acórdão, para negar a lesão do princípio da 
 proporcionalidade, tal não redundaria na opção por um qualquer outro meio de 
 identificação, representando “a própria inviabilização do mecanismo de controlo 
 e acesso aos serviços de saúde que o legislador quis legitimamente instituir, 
 transformando um meio de identificação que se pretendeu de uso obrigatório num 
 meio de identificação puramente facultativo”. Nada disso se passaria, pois o que 
 está em causa não é a obrigatoriedade de apresentação do cartão, que seria 
 mantida incólume, mas a garantia de cognoscibilidade, pelo utente, do 
 cumprimento desse ónus, como condição de isenção do pagamento do serviço. E essa 
 garantia poderia ser perfeitamente assegurada, com idêntica (senão mesmo 
 superior, como veremos) eficácia na realização daquele fim. 
 De facto, o que está previsto na norma em causa é uma interpelação para 
 cumprimento, no sentido técnico-jurídico próprio do direito das obrigações, de 
 comunicação do credor ao devedor que tem por efeito tornar exigível uma 
 obrigação pura. Nada obriga a entidade interpelante a comunicar ao utente de que 
 goza da faculdade alternativa de, no prazo de 10 dias, apresentar o cartão ou 
 fazer prova da sua requisição, para, desta forma, ficar exonerado do referido 
 pagamento. Nessa medida, a exigência de pagamento é percebida, na óptica do 
 destinatário, mais como um facto consumado, uma cobrança de dívida já 
 definitivamente consolidada na esfera do credor. Só muito indirecta e 
 longinquamente se pode ver nessa exigência, em si, sem mais, sem a obrigação da 
 entidade hospitalar levar ao conhecimento do interessado a possibilidade de não 
 cumprir, através da satisfação do ónus probatório da titularidade (ou 
 requisição) do cartão de identificação de utente, um incentivo ao uso deste.
 Por outras palavras: o procedimento é dirigido a obter o pagamento, deixando 
 oculto aquilo que, na óptica das finalidades do diploma, deveria constituir o 
 objecto principal da comunicação: a interpelação para exibir o cartão ou fazer 
 prova da sua requisição, sob pena de, não o fazendo, ficar sujeito ao pagamento 
 do serviço. 
 Refere o preâmbulo do diploma que as consequências associadas à não apresentação 
 do cartão “assentam no pressuposto que o utente não é beneficiário do Serviço 
 Nacional de Saúde”. Estranhamente, dada a universalidade do direito à utilização 
 tendencialmente gratuita do Serviço Nacional de Saúde (artigo 64.º, n.º 2, 
 alínea a) da CRP). “Levar a sério” esta prescrição constitucional implicaria a 
 pressuposição inversa, com a previsão de abertura de um procedimento próprio, de 
 carácter principal, com o sentido precípuo de conceder ao utente uma segunda 
 oportunidade de comprovar, pelo meio previsto (o que não comprometeria o 
 objectivo do diploma), que está inscrito ou já requereu a inscrição.
 O acórdão esgrime argumentativamente com o regime geral do acto administrativo, 
 o qual, no entender dos seus subscritores, acautelaria suficientemente a 
 cognoscibilidade do ónus.
 Em vão o faz, pois, se de acto administrativo se quer aqui falar, ele só pode 
 ser o acto determinativo do pagamento. Ora, este integra o conteúdo da 
 comunicação, pelo que não se detecta, neste plano, qualquer vício. A 
 explicitação cuja omissão está em causa tem outro objecto, diz respeito ao 
 regime legal que abre a hipótese inversa de não cobrança de qualquer quantia. 
 Não se vê, assim, como é que dos requisitos gerais de notificação dos actos 
 administrativos se possa retirar a conclusão de que a falta de menção ao ónus 
 
 “acarreta a inviabilidade da cobrança”. 
 Nem se diga, como se lê no acórdão, que, a haver défice de comunicação, essa é 
 uma questão “atinente à própria actividade administrativa, que se não reflecte 
 no juízo de constitucionalidade que incide sobre a norma, em si mesma 
 considerada”.
 O ponto é justamente esse, mas a valoração que me suscita é a oposta à 
 perfilhada. Sem prejuízo de práticas administrativas particularmente diligentes 
 e sensíveis aos justos interesses dos administrados poderem, ocasionalmente, 
 colmatar lacunas de previsão legislativa, é à lei que cabe, em matéria de 
 direitos fundamentais, adoptar conformações que os ponham ao abrigo de perdas de 
 efectividade injustificadas. Só dessa forma se respeita a garantia 
 constitucional.
 Ora, no caso em análise, deparamos com o condicionamento do exercício de um 
 direito fundamental, através da imposição de um ónus procedimental, a cujo 
 incumprimento se liga, sem mais, a pura e simples inibição do seu exercício. 
 No regime estipulado, o não cumprimento da exigência de identificação por 
 cartão, tem, na verdade, uma consequência extremamente gravosa, consistente na 
 perda da faculdade de exercício do direito à utilização tendencialmente gratuita 
 do serviço a que a cobrança se refere. Outras soluções, mesmo dentro do domínio 
 das sanções pecuniárias, seriam conjecturáveis, em termos de se evitar a 
 variabilidade da perda patrimonial infligida (dependente, que ela fica, do preço 
 do serviço em questão), em consequência de uma mesma falta.
 Mas, querendo associar-se a essa falta a obrigação de pagamento, tal só seria 
 admissível, por parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, com um regime 
 de tal modo configurado que deixasse seguro que a omissão do utente, a 
 verificar-se, só poderia ser atribuída a um qualificado desleixo ou incúria na 
 gestão dos interesses próprios, cabendo no âmbito da sua auto-responsabilidade. 
 Tal não acontece no regime em apreciação, pois dele decorre que apenas a não 
 exibição do cartão (para a obrigatoriedade da qual, em momento algum, o utente é 
 individualmente alertado), sem mais condições, legitima a cobrança do preço do 
 serviço. Para além de não garantir a cognoscibilidade do ónus, o regime do 
 artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 52/2000 não permite relevar qualquer 
 circunstância justificativa ou desculpabilizadora que, em concreto, tenha sido 
 causal do incumprimento.
 A mais disso, o prazo peremptório estabelecido - os dez dias seguintes à 
 interpelação para pagamento - é curto (o que só potencia, diga-se de passagem, a 
 eficácia obstativa de circunstâncias justificadamente impeditivas do 
 cumprimento). Tão curto que acaba por ser muito inferior ao previsto para 
 pagamento – 30 dias a contar da interpelação, segundo prescreve o artigo 2.º do 
 Decreto-lei n.º 218/99, de 15 de Junho. Quer dizer: ainda se encontra a correr o 
 prazo dentro do qual o débito pode ser satisfeito, sem mora, mas o (pretenso) 
 devedor já se encontra inibido - pasme-se! - de vir provar que nada deve, mesmo 
 que disponha do único meio de prova admitido: o cartão de utente ou documento 
 certificativo da sua requisição. Não se descortina qual o interesse que 
 justifica esta disparidade de termos finais, verdadeiramente aberrante em face 
 dos padrões comuns – e, note-se, é pelo regime comum que é disciplinada e pelos 
 tribunais comuns dirimida (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, na 
 interpretação dominante) a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços 
 integrados no Serviço Nacional de Saúde, salva a aplicação do artigo 70.º do 
 Código de Procedimento Administrativo, para que expressamente remete o artigo 
 
 2.º daquele diploma. 
 Dispensável, pela existência de soluções alternativas menos intrusivas na esfera 
 protegida do direito à saúde, sem sobrecargas da actividade administrativa e sem 
 perda de eficácia para o fim intencionado, o regime em causa mostra-se, a meu 
 aviso, claramente excedente dos limites da proporcionalidade, mesmo por um 
 critério de evidência apertado, como aqui se requer, tendo em conta a maior 
 liberdade de conformação de que deve gozar o legislador em sede organizatória ou 
 procedimental. Em vez de adoptar os resguardos e as precauções condicionantes 
 que a garantia de efectividade do direito à utilização tendencialmente gratuita 
 do Serviço Nacional de Saúde exige, a normação estabelecida propicia a 
 inviabilização do exercício desse direito, sem benefícios associados.
 Justificava-se, pois, um juízo de inconstitucionalidade. Nesse sentido votei.
 
  
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 
  
 
              
 DECLARAÇÃO  DE  VOTO
 
  
 
  
 O Ministério Público propôs a declaração com força obrigatória geral da 
 inconstitucionalidade que havia sido já declarada no Acórdão n.º 67/07 e nas 
 decisões sumárias n.º 557/07 e 274/78, deste Tribunal, e que incidia sobre a 
 norma constante do artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 52/2000, de 7 de 
 Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados 
 apenas pelo facto do utente não ter cumprido o ónus de demonstração da 
 titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias subsequentes à 
 interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.
 Apesar da equivocidade da formulação desta interpretação, da leitura da 
 fundamentação do Acórdão n.º 67/07, à qual as decisões sumárias n.º 557/07 e 
 
 274/78 aderiram, resulta que a mesma se reporta ao entendimento de que o utente 
 está obrigado ao pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados, 
 mesmo que não tenha sido notificado que deveria demonstrar a titularidade do 
 cartão de utente no prazo de 10 dias após ter sido avisado para pagar aqueles 
 encargos, não sendo permitida a valoração de uma eventual ausência de culpa do 
 utente no incumprimento desse dever.
 Foi este o sentido da interpretação que foi declarada inconstitucional em três 
 casos e, necessariamente, foi esse o sentido da interpretação cuja 
 inconstitucionalidade com força obrigatória geral foi requerida pelo Ministério 
 Público.
 
 É à irrelevância daquelas situações (falta de notificação para apresentar o 
 cartão de utente e impossibilidade de demonstração de ausência de culpa no 
 incumprimento desse dever de apresentação) que deve ser atribuído o significado 
 do termo “apenas” quando na formulação da interpretação cuja 
 inconstitucionalidade com força obrigatória geral se requereu se refere que 
 
 “apenas pelo facto do utente não ter cumprido o ónus de demonstração da 
 titularidade do cartão do utente, no prazo de 10 dias subsequentes à 
 interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados” o 
 utente fica obrigado a esse pagamento.
 Não está, pois, aqui em questão a constitucionalidade da obrigatoriedade do 
 utente pagar esses serviços por não ter demonstrado que era titular do cartão do 
 utente num determinado prazo, mas sim a constitucionalidade dessa 
 obrigatoriedade se manter, mesmo que o utente não tenha sido notificado para 
 apresentar aquele cartão, não sendo permitida a valoração de uma eventual 
 ausência de culpa do utente no incumprimento desse dever.
 Neste entendimento da interpretação normativa em questão, que não foi assumido 
 no presente acórdão, ressalta com evidência que estamos perante uma restrição 
 desproporcionada à garantia de um direito à saúde através de um Sistema Nacional 
 de Saúde tendencialmente gratuito (artigo 64.º da C.R.P.), uma vez que, para 
 promover a utilização do cartão de utente, se obriga a pagar o custo real dos 
 cuidados de saúde a quem não cumpriu um ónus de que não lhe foi dado 
 conhecimento, nem se lhe permitiu justificar o incumprimento.
 Há uma manifesta desproporção entre a importância dos fins visados com a medida 
 restritiva de um direito social fundamental e a severidade da restrição que 
 resulta dos meios utilizados para alcançar aqueles fins.
 Por isso votei favoravelmente à declaração de inconstitucionalidade com força 
 obrigatória geral requerida, reportada à interpretação normativa com o alcance 
 acima indicado. 
 
  
 
   João Cura Mariano                    
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
             
 
             Votámos vencido, por não podermos acompanhar a aplicação feita no 
 acórdão do princípio da proporcionalidade.
 
             Subscrevemos o Acórdão n.º 67/2007 e continuamos a entender que o 
 essencial da sua fundamentação é cientificamente consistente.
 
             Referimo-nos ao princípio da proporcionalidade, em sentido restrito, 
 ou de justa medida. Na verdade, o legislador não tem o mesmo grau de 
 discricionariedade constitutiva em todas as medidas que toma. Esse âmbito é mais 
 ou menos lato consoante a natureza dos direitos fundamentais que são afectados e 
 o tipo de medidas que interferem com os bens ou direitos fundamentais.
 
             Ora, não vemos que o legislador, para obrigar os utentes do Serviço 
 Nacional de Saúde a obterem um cartão, cuja função é apenas – no que se diverge 
 desde logo dos fins considerados no Acórdão –, a de obrigar as pessoas a ficarem 
 agregadas a determinado Centro de Saúde local, para o efeito da organização da 
 prestação dos serviços de saúde primários, vir constitucionalmente a sancionar o 
 utente com o pagamento dos serviços prestados a outro nível, como são os 
 hospitalares. A medida tem uma natureza e função essencialmente procedimental ou 
 organizacional, atingindo os seus efeitos apenas dentro do leque dos interesses 
 directos do Estado.
 
             É que não pode desconhecer-se que o sistema que garante o custeio 
 dos encargos hospitalares com os seus utentes não está minimamente associado ao 
 cartão de utente, mas aos regimes dos subsistemas de saúde – Segurança Social, 
 ADSE, ADMG, Serviços Sociais do Ministério da Justiça e outros, como o 
 financiamento directo do Estado, sendo de tais serviços que os hospitais 
 reclamam, em caso de prestação de cuidados de saúde não cobertos por 
 responsabilidade privada, o pagamento do valor desses cuidados.
 
             Se demonstrada está a titularidade de beneficiário de um desses 
 regimes, cuja prova o cartão de utente não garante, dificilmente se pode 
 entender que o Estado, para alcançar algumas vantagens num plano organizacional 
 completamente diferente, atinja o utente com um ónus de tanta gravidade: o 
 pagamento dos serviços hospitalares prestados apenas pelo facto de o utente não 
 ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo 
 de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os 
 cuidados de saúde.
 
             E o excesso é tanto mais evidente quando se considere três 
 circunstâncias: a primeira, é a de que o utente não é notificado sequer da 
 existência desse ónus legal ou seja, de que, caso não demonstre a titularidade 
 do cartão de utente no prazo estabelecido, terá de suportar os custos dos 
 serviços de saúde prestados nos hospitais; a segunda, é a de que, sendo o 
 emitente do cartão de utente o próprio Estado, não se visiona que “os 
 fundamentos materiais que justificam o Simplex”, não estejam presentes na 
 demonstração da qualidade de utente, pois para tanto bastaria que o Estado 
 organizasse os seus serviços em regime de comunicabilidade de dados; a última, é 
 a de que, estando demonstrada a titularidade de um subsistema de saúde 
 garantidor desses encargos, a quando do internamento, deixa a exigência do 
 pagamento com base num mero dever procedimental funcionalizado para outros fins 
 de poder acobertar-se no princípio do Estado de direito democráticos e da 
 Justiça material que o suporta.
 
   Benjamim Rodrigues
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 Dissenti da presente decisão pelas razões constantes do acórdão nº 67/2007, que 
 subscrevi, e que entendo manterem a sua validade. Na verdade, continuo a pensar 
 que viola o princípio da proporcionalidade a solução legal que faculta à 
 Administração exigir de um cidadão o pagamento integral dos cuidados de saúde 
 prestados como consequência automática do incumprimento de um ónus procedimental 
 
 – a demonstração da titularidade do cartão de utente do Serviço Nacional de 
 Saúde no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos 
 encargos com os cuidados de saúde recebidos. Tendo em conta o carácter universal 
 e tendencialmente gratuito daquele serviço, a exigibilidade do pagamento 
 integral do custo dos cuidados de saúde recebidos como consequência da não 
 satisfação daquele ónus, quando a Administração não notificou do referido ónus o 
 destinatário dos serviços prestados e das consequências que estavam ligadas ao 
 seu incumprimento, tendo-se limitado a dirigir-lhe, sem mais, uma interpelação 
 para pagamento dos encargos com a prestação daqueles cuidados de saúde, 
 afigura-se-me constituir uma exigência manifestamente desproporcionada, 
 sobretudo quando a Administração tinha na sua posse os elementos necessários 
 para documentar a condição de beneficiário do Serviço Nacional de Saúde do 
 destinatário dos cuidados de saúde, e a aplicação da consequência cominada é 
 indiferente à circunstância de o particular poder não ter, sem culpa sua, 
 recebido a interpelação. Nas circunstâncias descritas, que foram aquelas em que 
 teve lugar a recusa de aplicação, no processo em que foi tirado o acórdão nº 
 
 67/2007, da dimensão normativa considerada, o fim prosseguido pela norma 
 apresenta-se vazio de sentido quando a Administração exige ao beneficiário a 
 prova de factos de que tem efectivo conhecimento e quando restringe tal prova a 
 um único meio. E o carácter eventualmente pouco gravoso do comportamento exigido 
 ao beneficiário dos cuidados médicos prestados não retira às consequências do 
 incumprimento do ónus instituído pelo preceito o carácter desproporcionado, 
 maxime quando daquelas consequências não é dado conhecimento àquele e quando 
 existe prova da não recepção, sem culpa do seu destinatário, da interpelação 
 para pagamento.
 Termos em que, face à dimensão normativa recortada no pedido de generalização, 
 reiteraria o juízo de inconstitucionalidade formulada no acórdão nº 67/2007.
 
    Rui Manuel Moura Ramos