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Processo n.º 314/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. P... intentou contra o Banco P..., S.A, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção declarativa de contrato individual de trabalho, com processo sumário, pedindo que fosse declarado ilícito o despedimento do Autor e o Réu condenado a reintegrá-lo na empresa, na respectiva categoria e posto de trabalho, sem perda de quaisquer direitos ou regalias, nomeadamente carreira profissional e antiguidade, e/ou a indemnizá-lo, conforme viesse a optar, nos termos previstos na cláusula 126º da Acordo Colectivo de Trabalho em vigor para o sector bancário, bem como a pagar ao Autor todas as prestações vencidas e vincendas, desde o despedimento até à sentença final, tudo acrescido dos juros compensatórios calculados à taxa legal. Por sentença de 15 de Julho de 1997, foi julgada improcedente, por não provada, a acção, e, em consequência, foi o Réu e ora reclamado Banco P..., S.A, absolvido do pedido. Inconformado, interpôs P.... recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por decisão de 28 de Outubro de 1998, acordou em negar provimento ao recurso de apelação, confirmando consequentemente a sentença recorrida, podendo ler-se na respectiva fundamentação:
'[...] I – Da aplicação da Lei da Amnistia (Lei 23/91 de 4/7): Nos termos do art.º 1º - ii) da Lei n.º 23/91 de 4/7, ‘desde que praticados até
25 de Abril de 1991, inclusivé, são amnistiadas as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada’. O Banco Recorrido foi transformado de Empresa Pública, em sociedade anónima, com efeitos a 16-10-90, nos termos do D.L. 321-A/90 de 15 de Outubro (cfr. art.º
17º).
É óbvio, pois, que, quando os factos dos autos ocorreram, (23-08 e 30-9-90), o Banco R. era uma Empresa Pública. Porém, à data da entrada em vigor da Lei da amnistia, (Lei 23/91 de 4/7), o Banco R. já era uma empresa mista (com capitais públicos e privados). Na sentença recorrida considerou-se, aliás na esteira da jurisprudência do STJ, que a Lei da amnistia não tem aplicação quanto às empresas cujo capital social não fosse exclusivamente público, à data da sua entrada em vigor. Defende o Apelante, apoiado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a amnistia não se aplica apenas às infracções cometidas em empresas que eram públicas ou sociedades de capitais públicos à data da amnistia, abrangendo ainda as infracções cometidas em empresas que, na data da respectiva prática, tinham essa natureza, mesmo que posteriormente perdida, sob forma de frontal violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República. Ora, perfilhando embora a tese defendida pelo A., a verdade é que a Lei da amnistia (Lei 23/91) de 4/7, não tem aplicação ‘in casu’.
É que dos factos provados resulta que o recorrente se apropriou indevidamente, no dia 23-08-90, da importância de 280.000$00 e, no dia 30-08-90, da importância de 501.000$00. Tais comportamentos do A. integram a prática do crime de peculato, p. e p. pelo art.º 424º - 1, do C. Penal de 1982. E, como vimos a Lei da amnistia exclui as infracções disciplinares ‘quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente Lei’, o que é o caso. Portanto, as infracções disciplinares cometidas pelo A. não se encontram amnistiadas pela Lei 23/91 de 4/7.
[...]' Após lhe ter sido indeferido, por despacho proferido no Supremo Tribunal de Justiça em 26 de Junho de 1997, o recurso interposto a fls. 714 e segs. dos autos, com fundamento em que 'o Acórdão da Relação é irrecorrível uma vez que a causa não tem valor superior à alçada daquele Tribunal', pretendeu P..., ora reclamante, em 22 de Março do corrente ano, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 1º, n.º 1, alínea ii), da Lei 23/91, de
4 de Julho, 'com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida'. Em 26 de Março, o Conselheiro-Relator nesse Supremo Tribunal proferiu o seguinte despacho:
'Pretende o Recorrente P... interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do meu despacho de fls. 756 e 757, que entendeu não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista, por a decisão impugnada ser irrecorrível. O referido despacho, precisamente porque de acórdão não se trata não pode ser atacado por via de recurso para o Tribunal Constitucional. Apenas podia ser modificável pela ‘conferência’ e se esta mantivesse a decisão do relator então sim poderia a parte prejudicada recorrer para o Tribunal Constitucional. Por isso, não admito o recurso.'
3. Deste despacho veio interposta a presente reclamação. Em vista do processo, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pronunciou-se pela improcedência da reclamação.
4. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir II. Fundamentos
5. O recurso que o ora reclamante intentou interpor foi fundado no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que prevê o recurso de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Constituem requisitos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n. º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, das normas constitucionalmente impugnadas, a impugnação da sua constitucionalidade durante o processo, e o esgotamento dos recursos ordinários. Alega o reclamante que, contrariamente ao que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, não pretendeu recorrer do despacho a fls. 756 e 757 dos autos 'que decidiu a irrecorribilidade do Acórdão da Relação por a causa não ter valor superior à respectiva alçada', mas sim do próprio Acórdão da Relação para o Tribunal Constitucional. Ora, mostra-se incontroversa a inadmissibilidade de recurso ordinário desta decisão, uma vez que à presente acção foi atribuído o valor de 500.001$00, valor inicialmente atribuído pelo ora reclamante e fixado depois pela decisão proferida pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa. O valor da causa é, pois, inferior ao da alçada do tribunal de que se pretendeu recorrer, pelo que, nos termos da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 74º, n.º 4 do Código de Processo do Trabalho, e 678º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não poderia haver lugar a recurso da Ré para o Supremo Tribunal de Justiça. Afigura-se, pois, insubsistente o motivo invocado no despacho recorrido para a liminar rejeição do recurso de constitucionalidade interposto, já que este recurso vem reportado ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, e não ao despacho que considerou inadmissível a interposição de recurso de tal decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tornando-se clara a verificação do último dos requisitos supra mencionados, a saber, o esgotamento dos recursos ordinários.
6. Diga-se, todavia, que, fosse qual fosse o sentido da decisão deste Tribunal sobre a norma do artigo 1º, n.º 1, alínea ii), da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho
(Lei da Amnistia), sempre se manteria a decisão do Acórdão recorrido, razão pela qual a presente reclamação tem que ser indeferida. Na verdade, o ora reclamante suscitou, durante o processo – e, de forma mais sintetizada, na conclusão 1ª das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa –, a questão de constitucionalidade da norma do artigo 1º, n.º 1, alínea ii), da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, aduzindo, entre o mais, que
'[...] d) A amnistia não se aplica apenas às infracções cometidas em empresas que eram públicas ou sociedades de capitais públicos à data da amnistia, abrangendo ainda as infracções cometidas em empresas que, na data da respectiva prática, tinham essa natureza, mesmo que posteriormente perdida, sob pena de frontal violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República'. Razão pela qual se deveria 'considerar amnistiado o comportamento do Recorrente em apreço nos autos, com as legais consequências'. Acontece, porém, que a razão de decidir do julgado no Tribunal da Relação de Lisboa – e que conduziu à decisão de não provimento do recurso de apelação – foi outra. Baseou-se ela na consideração de que a referida Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, não tem aplicação in casu, pelos seguintes fundamentos:
'É que dos factos provados resulta que o recorrente se apropriou indevidamente, no dia 23-08-90, da importância de 280.000$00 e, no dia 30-08-90, da importância de 501.000$00. Tais comportamentos do A. integram a prática do crime de peculato, p. e p. pelo art.º 424º - 1, do C. Penal de 1982. E, como vimos a Lei da amnistia exclui as infracções disciplinares ‘quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente Lei’, o que é o caso. Portanto, as infracções disciplinares cometidas pelo A. não se encontram amnistiadas pela Lei 23/91 de 4/7.' Tal significa, pois, que a Relação, 'perfilhando embora a tese defendida pelo A.', negou provimento ao recurso interposto pelo ora reclamante fundamentando-se em que as infracções disciplinares não se encontravam amnistiadas pela Lei n.º
23/91, de 4 de Julho, por constituirem ilícitos criminais não abrangidos por ela. Foi por esta razão que não aplicou a amnistia prevista na dita Lei n.º
23/91, de 4 de Julho. Ora, para o recurso de constitucionalidade só poderia interessar o juízo positivo ou negativo em matéria de constitucionalidade normativa, efectuado pelo tribunal a quo, que funcione como ratio decidendi da decisão recorrida. Este recurso, como tem sido repetidamente acentuado pela jurisprudência constitucional (assim, por exemplo, nas hipóteses versadas nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 577/95 e 1089/96, inéditos), desempenha, na verdade, uma função instrumental, no sentido de só deverem ser conhecidas as questões de constitucionalidade quando o seu julgamento possa influir na decisão a proferir no processo principal. Se, como é o presente caso, a consideração relevante do Acórdão recorrido é a que referimos, a questão de constitucionalidade suscitada afigura-se como pura questão académica, pois a decisão recorrida sempre subsistiria qualquer que fosse a solução que se lhe desse. Verifica-se, em suma, que a decisão recorrida não teve como ratio decidendi a norma impugnada, na interpretação invocada pelo ora reclamante aquando da suscitação da questão de constitucionalidade – e integralmente recebida no requerimento de interposição do recurso –, não se verificando por isso um dos pressupostos essenciais à admissibilidade do recurso de constitucionalidade. E que, ainda que este Tribunal se pronunciasse sobre o objecto do recurso – nos precisos termos postos pelo reclamante –, sempre careceria tal julgamento de utilidade instrumental, pois que, fosse qual fosse o sentido da decisão esta seria, face ao seu objecto, insusceptível de alterar o julgamento da matéria de fundo. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 14 de Julho de 1999 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida