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Acórdão 495/99ACTA
Aos quinze de Setembro de mil novecentos e noventa nove, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, achando-se presentes o Exmº. Conselheiro Presidente José Manuel Moreira Cardoso da Costa e os Ex.mos Conselheiros Messias Bento, Guilherme da Fonseca, Vítor Nunes de Almeida, José de Sousa e Brito, Paulo Mota Pinto, Alberto Manuel Tavares da Costa, José Manuel Bravo Serra, Maria dos Prazeres Beleza, Luís Nunes de Almeida e Maria Helena de Brito, foram trazidos à conferência – ao abrigo do disposto no nº 5 do artigo 12º da Lei nº
49/90, de 24 de Agosto – os presentes autos de apreciação da constitucionalidade e legalidade de referendo local.
Após debate e votação, foi, pelo Ex.mo Presidente, ditado o seguinte ACÓRDÃO Nº 495/99
I. Relatório.
1. O presidente da assembleia de freguesia de Louredo, do município de Santa Maria da Feira, veio requerer, nos termos do artigo 11º da Lei nº
49/90, de 24 de Agosto, a apreciação da constitucionalidade e da legalidade de um referendo a submeter aos cidadãos eleitores da mesma freguesia tendo como objecto 'o local em que deverá ser colocado o cruzeiro que por virtude do arranjo do Largo de Vila Seca tem de ser necessariamente retirado do local onde se encontrava'.
Juntou o original da respectiva proposta, bem como cópia da acta (em minuta) da sessão da referida assembleia, realizada em 25 de Agosto do ano corrente, tendo como primeiro ponto da ordem de trabalhos a apreciação da mesma proposta.
II. Fundamentos.
2. Infere-se do registo, constante da respectiva acta, do número de membros da assembleia de freguesia de Louredo presentes e faltosos à mencionada sessão de 25 de Agosto, que o número total de membros dessa assembleia é de nove, dos quais, na mesma sessão, se verificou a presença de oito.
Entretanto, verifica-se que a proposta de referendo foi apresentada pela junta de freguesia, se apresenta subscrita pelos seus três membros e datada de 15 de Agosto último, e contém as perguntas a submeter aos cidadãos eleitores. Por sua vez, segundo a referida acta da sessão da assembleia de freguesia, de 25 de Agosto, a proposta em causa veio a ser aí aprovada por sete votos a favor, com uma abstenção.
Eis quanto basta para concluir que foram devidamente cumpridos os requisitos 'procedimentais', exigidos para a realização do referendo em apreço, estabelecidos nos artigos 6º, nº 2, 8º, alínea a), 9º e 10º da Lei nº 49/90 – lei essa que, editada embora para regular as antes designadas 'consultas locais', se há-de efectivamente continuar a considerar em geral aplicável (como este Tribunal sublinhou, por exemplo, no seu Acórdão nº 391/98, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Novembro de 1998) aos agora denominados
'referendos' locais.
3. Não obstante o que vem de ser dito, o requerimento do presidente da assembleia de freguesia de Louredo não pode ser admitido, atenta a forma e o conteúdo das perguntas que integrariam o referendo em causa – as quais conduzem
à sua ilegalidade (e inconstitucionalidade). Com efeito, tais perguntas, em número de três, acham-se assim formuladas:
1 – Concorda que as obras sejam efectuadas tal como constam do projecto aprovado pela Junta e Assembleia de Freguesia, ficando o cruzeiro no local onde já se encontra implantado?
2 – Pretende que o cruzeiro seja colocado dentro da rotunda?
3 – Pretende que o cruzeiro seja colocado no largo, junto à Escola de Vila Seca, de forma que possa ser contornado? Ora, desde logo poderá pôr-se a questão de saber se estas perguntas, mas, em particular a primeira, se acham formuladas com a necessária 'objectividade, precisão e clareza' – exigência que a Constituição logo faz expressamente para os referendos nacionais (artigo 115º, nº 6), mas não pode deixar de ser também
óbvio requisito da viabilidade de um referendo local, implicitamente posto pelo artigo 7º, nº 1, da Lei 49/90.
É que, na verdade, nessa primeira pergunta fala-se de 'obras', de um 'projecto aprovado pela Junta e pela Assembleia de Freguesia' e de um 'cruzeiro', mas não se explicita que se trata das obras, e respectivo projecto, a realizar no Largo de Vila Seca, nem do cruzeiro existente nesse largo. A pergunta postula, por conseguinte, a 'integração' do seu sentido, nesses termos, pelos cidadãos eleitores, e pressupõe, assim, que existe um conhecimento público da situação, generalizado a todos esses eleitores, pelo que tal integração não oferecerá a estes qualquer dificuldade. Simplesmente, ainda que – no quadro, como é o caso, de uma pequena sociedade local – possa aceitar-se a exactidão desse pressuposto (ou desses pressupostos), seria ilegítimo partir dele, e levá-lo em conta, para ter como 'clara' e
'precisa' (sobretudo isso) uma pergunta que, nos seus termos, em boa verdade o não é.
4. Independentemente, porém, do que fica referido, o facto é que as perguntas formuladas, versando todas sobre a mesma questão, e colocando os eleitores perante três alternativas de resposta, não possibilitam, por isso mesmo, que o referendo em causa venha a ter uma resposta concludente ou 'inequívoca', em termos de 'sim' ou de 'não', como exige o citado artigo 7º, nº 1, da Lei nº
49/90, e se reflecte no artigo 28º desta mesma lei – e isso basta para acarretar a manifesta ilegalidade de tal referendo. Esta hipótese da 'formulação simultânea, concorrente e não subsidiária' de mais do que uma pergunta referendária – as quais, consequentemente, não permitem 'uma resposta conclusiva' – já foi considerada por este Tribunal no seu Acórdão nº
360/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 19º, p. 697 e ss.; v., também, Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 1992), a propósito de uma situação 'estruturalmente' idêntica (no que agora importa) à que se encontra sub judice: a de uma (então) consulta directa aos cidadãos eleitores do município de Torres Vedras, aprovada pela respectiva assembleia municipal, em que se pretendia que aqueles se pronunciassem justamente sobre três possíveis datas para o respectivo feriado municipal. Nesse aresto, depois de pôr em relevo que, oferecidas assim essas alternativas, a pergunta correspondente a cada uma delas haveria de ser seguida, no boletim de voto, de um 'Sim' e de um 'Não', como se dispõe no citado artigo 28º da Lei nº
49/90, o Tribunal ponderou, em termos que integralmente se transcrevem: Ora, é bom ver que, formuladas assim, tais perguntas não permitiriam necessariamente o apuramento de um resultado concludente, ou seja, o apuramento da vontade maioritária do universo de cidadãos eleitores consultados (basta pensar que o maior número de respostas positivas recebido por uma pergunta, podia ser igual ou inferior à soma das respostas positivas recebidas pelas outras; e que, nesse caso, ficaria por apurar se, em face de um tal resultado, a maioria dos eleitores não se pronunciaria, afinal, por outra solução). A inconcludência de uma votação efectuada em semelhantes circunstâncias é, de resto, classicamente conhecida, como paradoxo de Condorcet (ou também paradoxo de Borda), já que a sua demonstração em termos matemáticos remonta a esses escritores setecentistas, em especial ao primeiro (Cfr. Condorcet, 'Essai sur l'application de l'analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix', esp. pp. 60 e segs., no vol. Sur les élections, ed. Fayard, 1996 – e tb. em Mathématique et société, Coll. Savoir, 1974, pp. 183 e segs.; sobre o ponto, v. Pierre Favre, 'La décision de majorité', Cahiers de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, nº 205, pp. 33 e segs.). Dir-se-á que na hipótese acabada de figurar sempre se teria apurado uma
'maioria' de votos a favor de uma das alternativas submetidas à consulta - só que uma simples maioria 'relativa'. Mas justamente isso é que, não é só insuficiente, como é incompatível com a natureza e a lógica de um 'referendo' com carácter vinculativo, tal como é concebida pela nossa lei (cfr. artigo 5º da Lei nº 49/90) a consulta local aqui em causa (no tocante ao referendo nacional, cfr., semelhantemente, o artigo 118º [ hoje, artigo 115º] , nº 1, da Constituição) - lógica essa que é necessariamente dilemática, bipolar, ou binária, ou seja: que pressupõe uma definição maioritariamente unívoca da vontade popular, num ou noutro dos sentidos possíveis de resposta à questão cuja resolução é devolvida directamente aos cidadãos. Não é senão esta lógica da deliberação referendária que justamente encontra expressão no artigo 7º, nº 1, da Lei nº 49/90 - quando aí se fala de 'perguntas
[...] que permitam uma resposta inequívoca pela simples afirmativa ou negativa'; e que se espelha ainda, depois, no modo, já atrás referido, como no artigo 28º na mesma lei se manda elaborar os boletins de voto. Por outro lado, é claro que não poderá invocar-se contra ela o facto de ser legalmente admissível submeter aos cidadãos eleitores, em cada consulta, até três perguntas (como resulta do disposto no artigo 9º, nº 1, ainda da Lei nº 49/90): evidentemente que há-de tratar-se de perguntas não concorrentes e permitindo um conjunto unívoco de respostas ou uma resposta global unívoca, nos termos antes vistos. De resto, não deixa a doutrina de sublinhar a natureza e a lógica, que ficam apontadas, do referendo deliberativo e de pôr em relevo, precisamente, as consequências que daí decorrem no tocante à admissibilidade das perguntas em que irá consubstanciar-se e à sua formulação. Vale a pena citar o que a este último respeito, e considerando o referendo deliberativo igualmente previsto no direito italiano, escreve, expressivamente, Giulio Salerno: 'outra característica própria da 'pergunta', e consequentemente do quesito referendário, é a formulação em termos dilemáticos e alternativos, de modo a não consentir respostas ulteriores ou diferenciadas a respeito da aceitação de uma solução e da correspondente rejeição da solução oposta'; e, mais adiante: 'a eventualidade de a escolha não ser dilemática ou bipolar, mas ter mais de duas saídas concorrentes e alternativas, é incompatível com a configuração do instituto referendário acolhida no nosso ordenamento: o referendum apresenta-se, em todas as suas formas, como expressão directa da vontade popular que se manifesta através do critério maioritário entendido como prevalência duma escolha em confronto com a escolha oposta' (em Enciclopedia del Diritto, v. 'Referendum', vol. XXXIX, p. 224). Pois bem: as considerações que acabam de transcrever-se são inteiramente transponíveis para o referendo local que assembleia de freguesia de Louredo pretende convocar. Eis assim quanto logo basta para concluir pela ilegalidade (e inconstitucionalidade) do mesmo referendo.
III. Decisão.
5. Nos termos expostos, e ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 3 do artigo
12º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, o Tribunal Constitucional decide não admitir o requerimento de apreciação da constitucionalidade e da legalidade do referendo local que a assembleia de freguesia de Louredo, do município de Santa Maria da Feira, na sua sessão 25 de Agosto do ano corrente, deliberou realizar. Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa