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Processo n.º 441/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Nos autos de expropriação litigiosa n.º 2203/91 instaurados no Tribunal Judicial da Comarca de Almada em que é expropriante a Câmara Municipal de Almada e expropriados M... e outros, os árbitros oportunamente nomeados fixaram, por unanimidade, em 29 591 300$00 a quantia indemnizatória a pagar aos expropriados. Não conformados com esta decisão arbitral, dela recorreram os expropriados, tendo em 21 de Setembro de 1992 sido proferida decisão que condenou a entidade expropriante a pagar aos expropriados a quantia de 458 382 775$00, a título de indemnização, e ainda a quantia que se vier a liquidar, com base nos índices de variação dos preços no consumidor entre 26 de Março de 1992 e a data em que os expropriados puderem receber a indemnização referida. Quer a Câmara Municipal de Almada quer M... e outros interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, os quais foram admitidos, com efeito meramente devolutivo, tendo os expropriados instaurado a execução provisória da referida decisão condenatória. Nesta foi, em dado momento, proferido despacho que, indeferindo a concessão de um prazo de sessenta dias requerida pela expropriante, ordenou a notificação desta para proceder ao depósito da quantia exequenda em vinte dias, 'após o que prosseguirá a execução, caso não seja realizado o pagamento'. Inconformada, interpôs a entidade expropriante recurso para a Relação de Lisboa, admitido como de agravo, e julgado procedente por decisão de 18 de Junho de 1998 que revogou, em consequência, o despacho recorrido. Recorreram os expropriados para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo nas alegações apresentado as seguintes conclusões:
'Primeira O TR Lx não estabeleceu os factos materiais da causa, a fim de o Tribunal de revista poder exercer sobre eles a sua actividade própria, motivo por que o Acórdão recorrido violou os arts. 749, 713º/2 e 659º/2 do CPC. Segunda A 2ª Instância silenciou a circunstância relevante de a CM Almada ter concordado em pagar a quantia exequenda e de não se ter oposto ou embargado a execução, o que levava inevitavelmente a que não pudesse ser conhecida a questão, motivo por que o Acórdão recorrido é nulo (art.º 668º/1/d) do CPC). Terceira A referida concordância camarária concretizou-se, até ao momento, com o efectivo pagamento parcial aos expropriados de cerca de 651.000 contos, motivo por que o Tribunal conheceu da questão de que já não podia conhecer (art.º 668º/1/d) do CPC). Quarta A sentença que em processo de expropriação fixa o montante da indemnização a pagar é sentença condenatória e tem eficácia de título executivo (Ac. Rel. Lx., de 27.3.81, Col. Juris., 1981/II-183; Ac. Rel. Coimbra, de 2.10.79, Col. Juris.,
1979/1110).' O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 17 de Novembro de 1998, negou provimento ao agravo, mantendo o Acórdão recorrido. Os expropriados apresentaram, então, novo requerimento, em que vieram 'requerer o esclarecimento de várias obscuridades e ambiguidades que o Aresto contém', sustentando ainda que 'a interpretação implícita dada pela 3ª Instância às normas dos arts. 47º/1 do CPC e 68º/1/2 do Cód. Exp. – que não colidem, antes são complementares no modo e no tempo de actuação – é inconstitucional, por ofender o princípio da igualdade constante dos arts. 8º/2 e 13º da Lei Fundamental', indeferido por decisão de 3 de Fevereiro de 1999.
2. Em 2 de Março de 1999, interpuseram os expropriados recurso para o Tribunal Constitucional, 'com base nas alíneas a), b), c), f) e g) do n.º 1 do art.º 70º da LTC', com vista à apreciação da
'inconstitucionalidade/ilegalidade das seguintes normas: - a interpretação implícita dada às normas dos arts. 47º/1 do CPC e 68º/1/2 do Cód. Exprop., que é inconstitucional por ofender o princípio da igualdade constante dos arts. 8º/2,
13º e 18º da Lei Fundamental, tornando tais normas arbitrárias e discriminatórias relativamente aos expropriados.' No Supremo Tribunal de Justiça, foi em 12 de Abril do corrente ano proferido o despacho que constitui, na parte em que não admitiu o recurso para este Tribunal, objecto da presente reclamação, cujo teor parcialmente se transcreve:
'[...] No requerimento em causa, alegaram os Recorrentes que tais
‘inconstitucionalidades’ foram suscitadas e aplicadas em diversas peças processuais. Contudo, e verificados os autos, constata-se que os ora Recorrentes, somente suscitaram essas pretensas ‘inconstitucionalidades’, no requerimento de fls. 154 a 157, em que solicitaram o ‘esclarecimento de várias obscuridades e ambiguidades, do Acórdão referido e proferido em 17 de Novembro de 1998’. Como já expressou, porém, tal requerimento de fls. 154 a 157, veio a ser indeferido, na aludida conferência de 3.2.99. Não constituindo, assim e portanto, complemento e parte integrante do dito Acórdão, de 17.11.98, emitido de fls. 135 a 144. E tal, de acordo com o que determina o n.º 2, parte final, do artigo 670º, do C.P.C. ‘a contrário’. Nesse sentido, com efeito, o Despacho R.P, de 4.1.74, assim como a R.T. 92º, 47º e 48º, e no prisma de se encontrar vedada a hipótese de recurso autónomo. Consequentemente, as ‘inconstitucionalidades’ só então suscitadas, não foram, em si mesmas, objecto de recurso para este S.T.J.. E como, aliás, e também, não foram objecto de qualquer decisão, até então e antes, proferida nos autos. Acresce que tem sido entendimento pacífico ser pressuposto do recurso para o Tribunal Constitucional, que certa e determinada norma jurídica tenha sido arguida de inconstitucional pelo Recorrente no decurso e durante o processo. Nesse significado e alcance, e entre outros o Acórdão n.º 169/92 do Tribunal Constitucional de 6.Maio.92. Ora, nos autos, esse pressuposto não se verifica, dado que não ocorreu a arguição atempada da inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica. E outrossim, não ocorreu também, a declaração de inconstitucionalidade, de qualquer norma jurídica, pelo Tribunal. E como, já, se frisou compulsou-se os autos de forma exaustiva. Neste contexto, torna-se, pois, evidente que o recurso, em causa, e interposto a fls. 172 e 173, não assenta em pressuposto que legitime a sua admissão. E tal, independentemente até das considerações expandidas pela Agravada, de fls.
175 e 176, no prisma de os Agravantes, somente, pretenderem com essa via a prolação de nova decisão, depois já de esgotados os meios processuais normais. E de através dela, se violar, o dever de probidade expresso no art.º 264º, do C.P.C.. Assim como se ter entendido, também e já na conferência de fls. 162 a 164, que inexiste, a final, a pretendida inconstitucionalidade, e implicitamente.' Segundo os reclamantes,
'Os arestos de 17.11.98 e de 3.2.99 constituem decisões surpresa, na medida em que a interpretação dos arts. 47º/1 do CPC e 68º/1/2 do CE é inconstitucional por ofender o princípio fundamental da igualdade entre os intervenientes processuais cíveis e expropriativos.' Foi dada vista do processo ao Ministério Público, tendo-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pronunciado no sentido da improcedência da reclamação. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. Os recursos de constitucionalidade que se pretendeu interpor vinham intentados ao abrigo do disposto nas alíneas a), b), c) f) e g), do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Cumpre, todavia, desde já, notar que não se afigura que possam ser admitidos os recursos interpostos ao abrigo nas referidas alíneas a), c), f) e g). Da consulta da decisão recorrida resulta, na verdade, que não foi nela recusada, sequer implicitamente, a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade. Nem nela se recusou a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Da leitura da decisão recorrida retira--se igualmente que não foi nela aplicada qualquer norma constante de diploma regional, ou norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo, com fundamento em violação de lei com valor reforçado ou estatuto de uma região autónoma. Nem finalmente, se aplicou na decisão recorrida qualquer norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional – citada alínea g) –, sendo certo aliás que os recorrentes não identificam as decisões onde tal julgamento teria ocorrido. Bem andou, pois, o despacho reclamado, ao não admitir os recursos interpostos ao abrigo das citadas alíneas do artigo 70º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
4. Resta, pois, o recurso interposto ao abrigo da alínea b) desta norma. Quanto a este, resulta da leitura dos autos a falta de um dos pressupostos específicos desta espécie de recurso: a suscitação de forma clara e perceptível de uma questão de constitucionalidade ou ilegalidade normativa durante o processo (cfr. os Acórdãos n.ºs 269/94 e 367/94, publicados, respectivamente, nos Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994 e 7 de Setembro de 1994). Como se decidiu no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão',
'antes de esgotado o 'poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver também o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). Assim, 'porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade.' Esta orientação, como também se salientou no Acórdão n.º 352/94, 'sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final. Não é este, porém, manifestamente, o caso dos autos, não procedendo a alegação dos recorrentes de que 'ocorre o fenómeno da surpresa'.
É que, no caso presente, discutiu-se logo no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa o problema da eficácia e exequibilidade da sentença, ainda não transitada em julgado, em relação à existência da obrigação de depósito da quantia indemnizatória devida pela entidade expropriante aos expropriados. Estes, porém, não suscitaram nesse momento a questão de constitucionalidade atinente ao pressuposto do deferimento do pedido de execução de sentença consistente na fixação definitiva, por decisão transitada em julgado, do montante da indemnização. Apenas depois do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em requerimento de aclaração deste, os recorrentes vieram invocar – de forma, aliás, pouco clara –, a inconstitucionalidade da 'interpretação implícita dada às normas dos arts. 47º/1 do CPC e 68º/1/2 do Cód. Exp.', enquanto tal interpretação 'significava que os expropriados nunca podiam executar uma sentença de 1ª Instância, pendente de recurso, com efeito meramente devolutivo, ficando os expropriados em pior situação processual que qualquer outra parte cível'. Ora, ainda que as alegações do recurso dos recorrentes para o Supremo Tribunal de Justiça – momento idóneo para suscitar a questão – se referissem no respectivo ponto 7º ao Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Março de 1981 – Acórdão para o qual remeteu o Supremo Tribunal de Justiça para sustentar a interpretação que deu à ora impugnada (pois de conteúdo idêntico à que consta do artigo 68º do Código das Expropriações de 1991) norma do artigo 100º, n.ºs 1 e 2 do Código das Expropriações de 1976 (segundo a qual 'ao Juiz só cumpre ordenar a notificação do expropriante para operar o depósito da quantia devida na C.G.D. quando suceder a dita fixação') –, não sustentaram os recorrentes qualquer inconstitucionalidade, sendo certo que dispunham já de todos os elementos para isso. Este Tribunal tem, aliás, repetidamente afirmado o ónus de os recorrentes considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas impugnadas, actuando de forma correspondente (ver, por todos, o Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 1992). No caso presente, porém, o requerimento de interposição do recurso para Relação de Lisboa não refere, nem o artigo 47º, n.º 1 do Código de Processo Civil ou o artigo 68º, n.ºs 1 e 2, do Código das Expropriações, nem qualquer inconstitucionalidade, apesar de os recorrentes disporem de todos os elementos para suscitar a questão de constitucionalidade, cabendo-lhes, como bem salientou em vista dos autos o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções Tribunal, 'o ónus de, em termos expressos e inteligíveis, confrontar o Tribunal com a questão da pretendida inconstitucionalidade de normas obviamente convocáveis para a dirimição do litígio.' Ainda, portanto, que os restantes requisitos para o presente recurso estivessem verificados, não se poderia dele conhecer, por falta de suscitação durante o processo da inconstitucionalidade alegada. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação, condenando-se a recorrente em custas no montante de 15 UCs. Lisboa, 14 de Julho de 1999 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida