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Proc. nº 535/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A..., identificado nos autos, foi condenado, no Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, por sentença de 2 de Abril de 1998, como autor de um crime de violação de ordem de expulsão, previsto e punido pelo artigo 90º, nº 1, do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 1.200$00, o que perfaz a quantia global de 84.000$00, e, no caso do não pagamento voluntário ou coercivo, na pena de prisão subsidiária de 46
(quarenta e seis) dias. No entanto, na mesma decisão não se ordenou a sua expulsão de Portugal, por se julgar inconstitucional a norma do nº 2 daquele artigo 90º, 'enquanto aplicada a cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores de nacionalidade portuguesa com eles residentes no território nacional, como é o caso [...], por violação das disposições conjugadas dos artigos 33º, nº 1, e 36º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa'.
O respectivo magistrado do Ministério Público atravessou requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, de acordo com o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Recebido o recurso, alegaram oportunamente a entidade recorrente e o arguido. A primeira, defendendo a procedência do recurso, conclui do seguinte modo:
'1º Ao decretar a sanção acessória de expulsão de estrangeiros, deve o tribunal realizar um juízo de adequação e proporcionalidade, não podendo privilegiar, em termos absolutos, as razões de ordem e segurança pública, subjacentes a tal medida, devendo ter também em consideração os efeitos reflexos do decretamento dessa sanção acessória no direitos dos filhos menores do arguido, de nacionalidade portuguesa, cuja subsistência dependa, de forma essencial, do exercício efectivo do poder paternal pelo progenitor sujeito a tal medida.
2º Não pode inferir-se da norma constante do nº 6 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa que qualquer cidadão estrangeiro - mesmo que não seja titular do direito de entrada ou permanência em território português - que tenha um filho menor, de nacionalidade portuguesa, a residir em território português e de cujo poder paternal não esteja inibido, adquire automatica e necessariamente um direito, absoluto, irrestrito e definitivo de entrada e permanência em Portugal, para ficar colocado em condições de exercer o poder paternal relativamente ao menor.
3º A norma que constava do artigo 90º, nº 2, do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março (correspondente à que consta do artigo 125º, nº 2, do Decreto-Lei nº
244/98, de 8 de Agosto) ao estabelecer que, em caso de condenação pelo crime de violação de ordem de expulsão, o tribunal decretará acessoriamente a expulsão do estrangeiro que haja entrado e permanecido irregularmente em território nacional, visa assegurar o respeito por medida de expulsão anteriormente decretada, não violando nenhum preceito ou princípio da Lei Fundamental.
4º Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
O recorrido, por sua vez, concluíu assim, no sentido da improcedência:
'1º Ao não aplicar a sanção acessória de expulsão do recorrido, considerando inconstitucional a norma do artº 90º - nº 2 do DL 59/93 de 03/03 enquanto aplicável a cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores de nacionalidade portuguesa com eles residentes em território nacional por violação das disposições conjugadas dos artigos 33º - nº 1 e 36º - nº 6 da CRP usou o Tribunal de um adequado juízo de proporcionalidade.
2º Considerando de interesse preponderante o direito da filha menor do recorrido cuja subsistência é fundamentalmente garantida pelo exercício do poder paternal.
3º Na medida em que o recorrido trabalha para promover o sustento da filha, é bom pai, tem bom carácter e não tem antecedentes criminais.
4º Tendo, aliás, e pelo período de um ano, obtido Autorização de Residência Extraordinária emitida pela G.T.A.D..
5º O respeito pela medida de expulsão anteriormente decretada, por imperativos da Justiça e atendendo à interpretação das normas constitucionais referidas no
1º destas conclusões, deve decair perante o direito de protecção da família, na medida em que não existem, no caso, quaisquer necessidades sociais imperiosas que determinem o contrário.'
II
1. - A norma que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, na medida em que a sentença recorrida recusou aplicá-la, é a do nº 2 do artigo
90º do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, diploma que veio estabelecer novo regime de entrada, permanência, saída e expulsão de estrangeiros do território nacional, e que dispõe assim naquele preceito:
'1- Constitui crime punível com prisão até 2 anos ou multa até 100 dias a entrada em território nacional de estrangeiros durante o período por que a mesma lhe foi vedada.
2- Em caso de condenação, o Tribunal decretará acessoriamente a expulsão do estrangeiro.'
O Decreto-Lei nº 59/93, foi expressamente revogado pelo Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto [cfr. alínea a) do artigo 162º deste último diploma), mas o preceito deste novo texto correspondente àquele artigo 90º - ou seja, o artigo
125º - mantém na integra a redacção inicial.
2.1. - A medida de expulsão a ser decretada acessoriamente, em caso de condenação, pode implicar perda de direitos profissionais, civis e políticos que o estrangeiro porventura goze.
Como tal, quer se trate de pena acessória quer de efeito penal da condenação - questão que desinteressa abordar na economia do acórdão dada a existência de identidade de razões que esbatem os problemas e as dúvidas subjacentes (cfr., v.g., Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral II – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 157 e ss. e 177 e ss.) -, o disposto no artigo 30º, nº 4, da CR, segundo o qual 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos', princípio recolhido fielmente pelo legislador ordinário, no nº 1 do artigo 65º do Código Penal, impede o funcionamento de uma aplicação automática, meramente ope legis.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido, a este respeito, concludente, podendo citar-se, entre tantos outros, os acórdãos nºs. 16/84,
310/85, 75/86, 94/86, 249/92, 434/93, 288/94 e 41/95 publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Maio de 1984, 11 de Abril de 1986, 12 e 18 de Junho de 1986, 27 de Outubro de 1992, 19 de Janeiro de 1994, 17 de Junho de 1994 e 27 de Abril de 1995, respectivamente, nº 224/90, publicado no mesmo Diário, I Série, de 8 de Agosto de 1990, e, mais recentemente, o acórdão nº 327/99, ainda inédito.
Surpreende-se na norma constitucional, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, uma teleologia intrínseca que visa retirar às penas efeitos estigmatizantes, inviabilizadores da readaptação social do delinquente, impedindo que, de forma mecânica, se decrete a morte civil, profissional ou política do cidadão, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág.
198).
A motivação humanística que está na base do programa da norma constitucional - para seguir outro aresto do Tribunal - pretende impedir que 'em resultado de quaisquer condenações penais, se produzisse automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos, e pretende-se que assim fosse, porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo em todo inafastáveis de uma lei fundamental como a CRP, que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana (cfr., em particular, o artigo 1º) - acórdão nº 284/89, publicado no Diário da República, II Série, Suplemento, de 22 de Junho de 1989. Como mais se escreveu noutro aresto, o princípio constitucional vertido no artigo 30º, nº 4, proíbe que a privação de direitos seja uma simples consequência - por via directa da lei - da condenação por infracções de qualquer tipo' (acórdão nº 282/86, no citado Diário, I Série, de
11 de Novembro de 1986).
Esta orientação jurisprudencial e doutrinária foi também acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça que, por exemplo, no seu acórdão de uniformização de jurisprudência nº 14/96 - publicado no Diário da República, I Série-A, de 27 de Novembro de 1996 - segue uma linha semelhante no que toca à proibição da aplicação automática. Aí se ponderou que a proibição dos efeitos decorrentes dessa aplicação, seja na sequência da imposição de uma certa pena, seja na de condenação por certos crimes, não obstando a que a lei os preveja 'como conteúdo possível da condenação por determinado crime ou simples consequência, também possível, de uma pena', parte da premissa de que 'a sua ocorrência em cada caso concreto tenha como pressuposto a apreciação judicial de que, in casu, se mostram adequados e justificados pelas circunstâncias do crime'.
2.2. - No caso sub judice, a inegável similitude não se confunde com uma identidade de situações.
É que todo o peso argumentativo desenvolvido nos lugares citados pressupõe a perda de direitos - civis, profissionais ou políticos - do agente, restando questionar se o problema se pode colocar em termos semelhantes relativamente a quem não é titular que nenhum desses direitos.
A esta luz deve, igualmente, ser enquadrada a tese defendida pelo Ministério Público, nas suas alegações, onde se sustenta que a norma 'desaplicada', mais do que sancionar acessoriamente o crime de violação da ordem de expulsão definitiva, tem por fim assegurar a execução específica da medida de expulsão decretada. Seria, nesta óptica, absurdo e injustificável utilizar a mesma medida quanto ao cidadão estrangeiro expulso que cumpre escrupulosamente a injunção que lhe foi imposta, abstendo-se de entrar no território nacional durante o período fixado e ao cidadão estrangeiro que violou essa ordem, entrou clandestinamente em território português e adquiriu supervenientemente situação familiar que, consoante a interpretação da decisão recorrida, obsta absolutamente à sua expulsão.
Se é certo que o direito à fixação em qualquer parte do território nacional é um direito civil - Código Civil, artigos 82º e seguintes - constitucionalmente consagrado - nº 1 do artigo 44º da CR - mesmo para os estrangeiros que se encontrem ou residem em Portugal - nos termos do artigo 15º da Lei Fundamental
-, não menos exacto é que, na situação concreta, a interpretação da decisão recorrida coloca o estrangeiro em situação impeditiva da sua expulsão.
Dir-se-á, então, que o direito ou garantia do filho menor não ser separado do pai não depende do direito irrestrito deste último de entrar livremente e permanecer no território nacional com base na relação de parentesco, situação de facto por si criada.
Importa afrontar este problema, sendo certo que este Tribunal já entendeu que a expulsão de estrangeiro do território nacional, aqui permanecendo em situação irregular, não o privou do direito de permanecer em Portugal após o cumprimento da pena de prisão em que foi condenado, pela simples razão de que o indivíduo em causa não é titular de quaisquer direitos constitucionalmente tutelados (cfr. o acórdão nº 442/93, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Janeiro de 1994).
Outro enfoque do problema se impõe.
3.1. - Nos termos do nº 6 do artigo 36º da CR, os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumprem os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial. E, por sua vez, de acordo com o nº 1 do artigo 67º da Lei Fundamental, a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. Ao que acresce que o artigo 33º não admite a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional.
O juízo de inconstitucionalidade que está na origem do presente recurso parte da conjugação destes preceitos, no reconhecimento da suma importância que o nosso ordenamento jurídico concede à família e à sua protecção, 'pretendendo-se que se lhe facultem todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros, porque é dela que depende o desenvolvimento harmonioso de todo o ser humano, sendo aí que se desenvolve a sua personalidade, relacionamento social e afectivo e sua consciência individual e colectiva e forma de ver o mundo', cabendo aos pais um papel primordial e insubstituível na educação e acompanhamento dos filhos.
E, após se citar o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), sublinha-se a ideia ínsita na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, nos limites dos interesses que a sociedade democrática deve acautelar, privilegia a protecção do direito à vida familiar, mencionando-se seguidamente o acórdão nº 181/97 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Abril de 1997) para se concluir pela inconstitucionalidade da norma impugnada, enquanto aplicável a cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores de nacionalidade portuguesa com eles residentes em território nacional, pese embora, como sucede no concreto caso, o estrangeiro tenha entrado irregularmente em Portugal. Pode dizer-se que subjaz ao juízo decisório em apreço uma ponderação dos interesses em confronto, de ordem pública e de natureza social, por um lado, como sejam a segurança nacional ou pública, o bem estar económico do País, a defesa da ordem e a prevenção de infracções penais, a protecção da saúde e da moral, e por outro lado, a protecção dos direitos e liberdades de terceiros, para utilizar a terminologia do próprio artigo 8º da CEDH.
3.2. - A garantia constitucional que consiste em os filhos não poderem, em princípio, ser separados dos pais, não constitui apenas um direito subjectivo dos próprios pais em não serem separados dos filhos - como se ponderou no acórdão nº 181/97 - mas também um direito subjectivo dos filhos a não serem separados dos respectivos pais. As restrições, quando ocorrerem, apenas são possíveis mediante decisão judicial, nos casos expressamente previstos por lei e verificados os pressupostos expressamente previstos na Constituição: 'quando se torne necessário salvaguardar os direitos dos menores por os pais não cumprirem os seus deveres para como eles'.
Reconhece-se, por conseguinte, a natureza primordial e insubstituível da intervenção dos pais na tarefa de educação e acompanhamento dos filhos, só se justificando a separação ou afastamento de uns e outros em casos extremos, de irresponsabilidade ou negligência.
É assim que o direito à convivência, para autores como Gomes Canotilho e Vital Moreira, se assume como a manifestação mais relevante da unidade da família, constitucionalmente consagrada, como tal se entendendo 'o direito dos membros do agregado familiar a viverem juntos' (cfr. ob. cit., pág. 351).
No mesmo sentido se desenvolve a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - que a decisão recorrida invoca - inclusivamente nas situações extremas em que o estrangeiro, sem direito a permanecer no país de que não possui nacionalidade, se vê na impossibilidade de se juntar à sua família ou de a sua família se reunir a ele (cfr., Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2ª ed., Coimbra, 1999, págs. 180 e segs.).
4. - No concreto caso, está fundamentalmente em causa o vector constitucional relativo ao nº 6 do artigo 36º - sem prejuízo, no entanto, da sua necessária articulação com a protecção devida ao núcleo familiar, independentemente dos problemas que o respectivo âmbito proporciona (recentemente sopesados, em parte, no acórdão deste Tribunal nº 690/98, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Março de 1999).
A esta luz, é incontroversa a proximidade com a situação contemplada no acórdão nº 181/97: aí, a expulsão da mãe, estrangeira, ao abrigo do nº 1 do artigo 34º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, implicava a expatriação dos respectivos filhos menores - ainda que cidadãos portugueses - se se pretendesse evitar a separação do agregado familiar. Como então se escreveu, essa norma, tal como está concebida, envolve uma de duas consequências: ou a separação entre pais e filhos ou a expulsão - embora indirecta ou consequencial - dos filhos, a fim de poderem acompanhar o progenitor expulso.
Nesta perspectiva, as razões de interesse e ordem pública que fundamentam a medida de expulsão deverão ser ponderadas em articulação com o interesse na conservação da unidade familiar, dado nem uns nem outro deverem ser tomados absolutamente. E o balanceamento que dos dois se fizer pode ditar a 'inexecução específica' da medida judicialmente decretada.
III
Em face do exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 90º do Decreto-Lei nº
59/93, de 3 de Março, enquanto aplicável a cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores de nacionalidade portuguesa, com eles residentes em território nacional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 33º, nº 1, e 36º, nº 6, da Constituição da República; b) consequentemente, negar provimento ao recurso. Lisboa, 14 de Julho de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Luís Nunes de Almeida