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Processo n.º 279/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Nos presentes autos, o relator proferiu em 9 de Junho do corrente a seguinte decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:
'I. Relatório
1. M... interpôs no Tribunal do Trabalho de Setúbal uma acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra a Santa Casa de Misericórdia de Sesimbra, pedindo a declaração de ilicitude do seu despedimento, com a consequente condenação da Ré a pagar-lhe a importância das remunerações que aquela deixou de auferir desde a data do despedimento, acrescida dos respectivos juros legais, e ainda na reintegração, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade. O Tribunal do Trabalho de Setúbal proferiu em 14 de Janeiro de 1998 sentença que julgou a acção totalmente procedente, em consequência declarando ilícito o despedimento da Autora e condenando a Ré a reintegrá-la, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, e a pagar-lhe a quantia global de 3.237.500$00. A Santa Casa de Misericórdia de Sesimbra recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação de Évora, concluindo as suas alegações de recurso do seguinte modo:
‘1ª - A relação contratual existente entre a Autora-Apelada e a Ré-Apelante, configura um CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS;
2ª - Qualificação que ambas as partes quiseram e, inequivocamente, decidiram aceitar e contratar, usando da liberdade contratual que a lei lhes confere;
3ª - O Tribunal do Trabalho é incompetente em razão da matéria para conhecer das questões dos autos;
4ª - Ao conhecer delas violou, assim, a douta sentença os art. 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e art. 67º do CPC, por erro de interpretação;
5ª - A douta sentença violou ainda, também por erro de interpretação, o disposto na alínea b) do n.º1 do art. 668º do CPC e art. 90º n.º 4 do CPT visto que aquele normativo exige a fundamentação da sentença e esta só consente a consignação dos actos em acta em certas circunstâncias e ainda assim motivando esses factos, o que não ocorreu.
6ª - A cessação do contrato dos autos foi promovida pela Autora/Apelada, em declaração inequívoca, da sua iniciativa, em 4.7.94;
7ª - Que é uma declaração receptícia irrevogável;
8ª - A qual foi aceite, com todos os seus efeitos, pela Ré-Apelante;
9ª - Pelo que a douta sentença, ao decidir em desconformidade com os elementos constantes dos próprios autos violou igualmente o disposto no art. 712º, n.º 1 al. b) do CPC;
10ª - Finalmente, ao entender-se que no nosso ordenamento jurídico e mormente num caso como o dos autos de relação EMPREGADO/ EMPREGADOR vigora o princípio da revogabilidade da declaração negocial, violou-se na sentença o Princípio da Confiança e Segurança Jurídica ínsito no Art. 2º da C.R.P.’ A Secção Social da Relação de Évora, por Acórdão de 9 de Fevereiro de 1999, concedeu parcial provimento ao recurso, tendo julgado improcedente a questão de constitucionalidade suscitada pela ora recorrente, podendo ler-se na parte final da respectiva fundamentação:
‘[...] Quanto à pretensa inconstitucionalidade – violação do princípio da confiança e segurança jurídica – art. 2º da C.R.P. – não tem razão a recorrente. Advém tal pretensão de se entender que a decisão recorrida aplicou o princípio da revogabilidade da declaração negocial. Mas esta conclusão da apelante não tem o mínimo de suporte. Em lado algum da mesma se diz que há revogabilidade da declaração negocial; o que se diz é que a recorrente aceitou a proposta de revogação da rescisão da trabalhadora, o que estava na disponibilidade da Santa Casa, como não podia deixar de ser. E assim sendo, o que pode é ter havido interpretação incorrecta da actuação da apelante ao subsumi-la nessa aceitação. De qualquer modo, essa posição não põe em causa o princípio da confiança e segurança jurídica, dado haver sempre a necessidade de aceitação e acordo do outro contraente.’
2. É deste Acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, pela Santa Casa de Misericórdia de Sesimbra ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), ‘em ordem à apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 230º, n.º 1 do Código Civil, por violação do estatuído no art.º 2º da Constituição, na interpretação e aplicação dela feita pelo referido acórdão’. II. Fundamentos
3. Impõe-se começar por abordar a questão dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, nomeadamente a questão de saber se o Acórdão recorrido aplicou, como ratio decidendi, a norma com o sentido inconstitucional que lhe foi assacado pela recorrente. Na verdade, constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade
é questionada pela recorrente; a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo; e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso cabiam. Ora, o requisito de que a norma impugnada tenha sido aplicada pelo tribunal a quo como ratio decidendi não pode considerar-se verificado no caso sub iudicio. Esta exigência, de que a norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no processo. Sendo a referência
à norma questionada mero obiter dictum, ou existindo na decisão recorrida outro fundamento, por si só, bastante para essa decisão, a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se reflectirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional. No caso presente, é isso mesmo que se verifica, não se tendo o tribunal a quo baseado, como fundamento decisivo, numa interpretação do artigo 230º, n.º 1 do Código Civil, como consagrando o princípio da revogabilidade da proposta de rescisão de contrato operada pelo trabalhador. O Tribunal da Relação de Évora afastou, aliás, de forma expressa essa questão de constitucionalidade, considerando-a improcedente, afastando igualmente a aplicação da norma com essa dimensão interpretativa e referindo que existia outro fundamento para a decisão. Tem, pois, de concluir-se que a Relação não aplicou a norma do artigo 230º, n.º
1 do Código Civil, com o sentido inconstitucional apontado pelo recorrente. Disse antes que, ‘no caso presente, a trabalhadora, ao apresentar atestados médicos propôs à recorrente a revogação da sua rescisão; o que ela aceitou inequivocamente, ao aceitar o trabalho depois de 4/7/94 e até 31/7/94’, concluindo depois:
‘[...] Assim, a questão não é de irrevogabilidade da proposta de contrato, pois esta já tinha chegado ao conhecimento do destinatário (a recorrente), o que está previsto no artigo 230º, n.º 1 do Código Civil. O que houve, por parte da recorrente, foi a revogação da declaração rescisória da trabalhadora, ao aceitar o trabalho depois desta declaração, revogação operada expressamente nas duas cartas provenientes da Santa Casa.’ Está, pois, patente no Acórdão recorrido outro fundamento bastante para a decisão proferida, para além da norma do artigo 230º, n.º 1 do Código Civil, na interpretação questionada pela recorrente, a qual verdadeiramente não constituiu sua ratio decidendi. E, por esta razão, não podem considerar-se verificados os requisitos do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. Faltando o pressuposto da aplicação pelo Acórdão recorrido, como sua ratio decidendi, da norma impugnada, com o sentido inconstitucional invocado pela recorrente, não pode o Tribunal conhecer do presente recurso, razão pela qual é de proferir decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 13-
-A/98, de 26 de Fevereiro. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decido, nos termos do artigo 78º-A, n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional (na redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), não tomar conhecimento do recurso.'
2. A Santa Casa de Misericórdia de Sesimbra, notificada da decisão sumária, vem dela reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional), com os seguintes fundamentos:
'1. Na douta decisão de que ora se reclama concluiu-se que não era de tomar conhecimento do recurso, com fundamento na falta do pressuposto da aplicação pelo Acórdão recorrido, como sua ratio decidendi, da norma impugnada, i. é., da norma contida no artigo 230º, n.º 1 do Código Civil.
2. Ora – salvo devido respeito – no presente recurso verifica-se esse pressuposto, visto que o Tribunal recorrido (Relação de Évora) se baseou como fundamento decisivo numa interpretação dessa norma.
3. Com efeito, no Acórdão recorrido, considerou-se provado que a Empregada, ora Recorrida, rescindiu o contrato que a ligava à Recorrente no dia 04.07.94, facto que chegou ao conhecimento desta nesse próprio dia, concluindo-se que a declaração rescisória do contrato se tornou eficaz, nessa mesma data de
04.07.94, atento o disposto no art.º 224º, n.º 1 do Código Civil.
4. Deste modo, na indicada data de 04.07.94, cessou definitivamente o contrato que ligou ao Recorrente e a Recorrida e que constituiu causa de pedir na acção que esta instaurou àquela.
5. Entendeu-se, porém, no Acórdão recorrido que, não obstante essa cessação já ter ocorrido, ainda assim era permitido à Empregada, aqui Recorrida, manter em vigor esse contrato, mediante a revogação da proposta que havia dado causa
àquela cessação e inutilizando, assim, os efeitos desta já produzidos.
6. Flui, assim, do que vem de expor-se que o Tribunal Recorrido, ainda que tendo escrito o contrário, aplicou, efectivamente, o princípio da revogabilidade da declaração negocial.
7. Escreveu-se no Acórdão recorrido que a Recorrente aceitou a proposta de revogação da rescisão da trabalhadora, mas tal, em boa verdade, não ocorreu. Com efeito, ficou provado, face à atitude desta após 04.07.94, a Recorrente lhe comunicou que estranhou a apresentação do atestado médico que fez nos serviços no dia 06.07.94, tendo em conta que a atitude que tomou em 04.07.94 foi interpretada no sentido de fazer cessar o contrato que a ligava a esta Santa Casa a partir daquela data. Ora, esta posição é incompatível com a aceitação, por parte da Recorrente, de qualquer proposta de revogação da rescisão provinda da trabalhadora.
8. Ou seja, e em conclusão, só por ter interpretado a norma do n.º 1 do artigo
230º do Código Civil no sentido de que esta consente a revogação da proposta de contrato, mesmo após esta ter produzido definitivamente todos os seus efeitos, foi possível ao Tribunal recorrido decidir como decidiu que o contrato que ligou Recorrente e Recorrida entre si, afinal não cessou naquela data de 04.07.94.
9. Fazendo, porém, essa interpretação daquela norma, violou o Acórdão recorrido os princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos no art.º 2º da C.R.P.'
3. M..., em resposta à reclamação deste modo deduzida, defendeu a sua improcedência, louvando-se 'nos termos e fundamentos invocados na douta decisão reclamada, nomeadamente o de que a norma do art.º 230º, n.º 1 do Código Civil não constituiu a ‘ratio decidendi’ das decisões proferidas pelo Tribunal do Trabalho de Setúbal e pelo Tribunal da Relação de Évora.' Cumpre decidir. II. Fundamentos
4. A decisão sob reclamação foi tomada ao abrigo do disposto no artigo 78º-A n.º
1 da Lei n.º. 28/82 que confere ao relator poderes para a proferir 'se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso'. Interposto recurso com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artigo 230º, n.º 1 do Código Civil, entendeu-se nessa decisão que a ratio decidendi do Acórdão impugnado não fora aquela norma. Segundo este aresto 'indiscutivelmente que a recorrente [ora reclamante] aceitou tornar ineficaz a declaração rescisória da trabalhadora, fosse porque tivesse dúvidas sobre ela, ou fosse por outra razão qualquer', sendo que 'tal era-lhe permitido face ao princípio geral da liberdade contratual e da faculdade da sua modificação por acordo – artigos 405º, n.º 1 e 406º, n.º 1 do Código Civil'. A ora reclamante insiste em que o Acórdão recorrido aplicou a norma do artigo
230º, n.º 1 do Código Civil, e que não ocorreu o facto da aceitação, por sua parte, de qualquer proposta de revogação da rescisão provinda da trabalhadora. Todavia, o certo é que a decisão recorrida deu este facto por assente – sendo impertinente nesta sede a reapreciação dessa conclusão – subsumindo-o nas normas dos a rtigos 405º, n.º 1 e 406º, n.º 1 do Código Civil e decidindo em conformidade. Na verdade, afirma-se:
'Perante esta actuação da trabalhadora, a R. o que deveria ter feito era comunicar-lhe que tal actuação era irrelevante, pois o contrato já tinha terminado por iniciativa daquela e que nenhuma justificação tinha que apresentar para as suas ausências ao serviço, pois as mesmas deviam-se ao facto de ter feito cessar o contrato.' A decisão recorrida não atribuiu, pois, como bem se vê, relevância à norma do artigo 230º, n.º 1 do Código Civil, por considerar provado que a ora reclamante aceitou a revogação posteriormente feita pela trabalhadora da rescisão por esta levada a cabo – reconhecendo inclusivé a 1ª instância que, se a reclamante tivesse adoptado o comportamento descrito supra (qualificável jurídico-civilmente como um protesto), o enquadramento e as decisões legais teriam sido outras. Não tem, pois, razão a reclamante quando afirma que 'o Tribunal Recorrido, ainda que tendo escrito o contrário, aplicou, efectivamente, o princípio da revogabilidade da declaração negocial'. Antes na fundamentação da decisão recorrida se conclui precisa e expressamente o contrário (como a reclamante reconhece) – ou seja, 'que o que houve, por parte da recorrente, foi a revogação da declaração rescisória da trabalhadora, ao aceitar o trabalho depois desta declaração, revogação operada expressamente nas duas cartas provenientes da Santa Casa'. Ou seja: concedeu-se relevo, não à revogação unilateral de uma proposta de contrato (extintivo), mas sim a factos que se entendeu (à falta da correspondente protestatio) revelarem por parte da ora reclamante uma aceitação da revogação de tal rescisão. Ora, sendo pressuposto de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, a efectiva aplicação – como razão de decidir – da norma cuja inconstitucionalidade se suscita (no caso, o artigo 230º, n.º 1, do Código Civil, na interpretação questionada), e não tendo esta norma sido aplicada na decisão recorrida, mantêm-se inteiramente válidos os fundamentos da decisão sumária sob reclamação. E, por conseguinte, não pode a presente reclamação ser atendida. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide desatender a presente reclamação e confirmar a decisão de não conhecimento do recurso. Lisboa, 21 de Setembro de 1999 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa