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Processo n.º 390/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Por decisão do juiz do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa de 11 de Janeiro de 1999 foi indeferida a modificação da execução de pena para a modalidade de obrigação de permanência na habitação requerida por M..., condenada a sete anos e dez meses de prisão e internada na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital S. João de Deus, em Caxias, à ordem do processo n.º 27029, da 2ª secção da 1ª Vara Criminal de Lisboa. Tendo a reclusa interposto recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, em cuja motivação suscitou a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 36/96, de 29 de Agosto, foi em 20 de Abril de 1999 proferido Acórdão que lhe negou provimento, pois que 'por não se encontrar, segundo o parecer médico junto aos autos, na fase terminal da doença grave e irreversível de que efectivamente sofre', não poderia a ora recorrente beneficiar da pretendida modificação da execução da pena. Considerou-se ainda, quanto à questão de constitucionalidade suscitada, que
'[...] não entendemos a arguição, na motivação de recurso, da inconstitucionalidade da norma do artigo 1º da citada Lei n.º 36/96 e que resultaria de o conceito de ‘fase terminal’ não estar definido na lei («não se sabe onde começa e onde acaba», no dizer da Recorrente), pois que a Constituição não proíbe a utilização, pelo legislador, de conceitos indeterminados.' Acrescentando-se de seguida:
'Ponto é que deles não resultem soluções arbitrárias, violadoras do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º do diploma fundamental. Mas a medicina é, razoavelmente, capaz de precisar quando é que, naquele tipo de doenças, certa patologia atingiu o estado que tem como epílogo necessário a morte. E, por isso, o conceito nada tem de arbitrário.' Interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), com vista à apreciação da constitucionalidade da
'norma contida no n.º 1 da Lei n.º 36/96, de 29 de Agosto, interpretada no sentido de não abranger o recurso interposto', 'face à não delimitação do conteúdo do conceito de ‘fase terminal’', foi a recorrente convidada a indicar os elementos exigidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da referida Lei n.º 28/82, convite ao qual respondeu através de requerimento a fls. 51 e segs. dos autos, o qual rematou defendendo que
'[...] consideram-se violados os artigos 1º, 13º, 18º e 25º da Constituição da República pela não determinação do conteúdo do conceito ‘fase terminal’, previsto na citada Lei, que, in casu, obriga a sujeição da arguida/recorrente a tratamento que viola a dignidade da pessoa humana, à violação do princípio da universalidade e da igualdade, não salvaguardando os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, violando a integridade moral e física da arguida
– não olvidando tratar-se de um tratamento degradante e desumano.' Em alegações produzidas junto deste Tribunal Constitucional concluiu a recorrente:
'A recorrente padece de doença grave e irreversível com depressão e ideação suicida e risco da própria vida. Faz 80 anos em 30/10/99. Porém, o seu estado de saúde não foi considerado em ‘fase terminal’ pelo Venerando Tribunal da Relação. Não se opõem exigências de prevenção ou de ordem e paz social. A recorrente está a ser submetida a tratamento degradante e desumano, de desproporcionado sofrimento que em nada dignifica o Estado de Direito, o que constitui notória violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigos 1º, 13º, 18º, 25º e 72º da Lei Fundamental). A lei não fixa o conteúdo dos conceitos ‘fase terminal’. Trata-se de um conceito indeterminado. ‘Estes têm de ser entendidos sempre na perspectiva dos princípios, valores e interesses constitucionalmente relevantes
(vd. Constituição e Inconstitucionalidade, Manual de Direito Constitucional, Jorge Miranda, tomo II, pág. 259). Do disposto no artigo 72º da Lei Fundamental, infere-se uma protecção constitucional especial à 3ª idade. A interpretação do conceito indeterminado em crise neste caso concreto não poderá assim deixar de atentar nesta consideração. Tendo em conta que a esperança média de vida em Portugal oscila entre 65 a 75 anos, atentas as doenças das quais a recorrente padece, só se poderá entender que está a terminar a sua vida. O seu estado de saúde, aliado à idade, deve ser considerado em fase terminal. A recorrente pode morrer a qualquer momento. O diagnóstico clínico da recorrente transluz que a sua morte é, ou pode ser, eminente. O Tribunal Constitucional deverá reformar a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade, ou mandar aplicar a eventual interpretação para a norma ao caso sub júdice. Nestes termos, deve tal interpretação ser julgada inconstitucional, ou seja, não pode este dispositivo ser susceptível de uma interpretação literal, implicando a violação de princípios constitucionais consagrados na Lei Fundamental, nomeadamente – a dignidade da pessoa humana e especial protecção da velhice.' Nas suas contra-alegações, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal sustentou, em conclusão:
'1º Não traduz violação de qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental a circunstância de o legislador, mesmo no domínio penal, se servir de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, a preencher, concretizar e densificar pelo
órgão jurisdicional competente para apreciar as questões suscitadas.
2º A margem de indeterminação subjacente ao conceito legal de ‘fase terminal’ de doença grave e irreversível, usada pelo artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 36/96, de
29 de Agosto, não é sequer superior à de inúmeros conceitos usados pelo legislador penal ao definir o âmbito de aplicação de inúmeros institutos próprios do direito e processo penal, pelo que inexiste risco sério de preenchimento ‘arbitrário’ de tal previsão.
3º Termos em que improcede manifestamente o presente recurso.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
2. O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade do artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 36/96, de 29 de Agosto, com o seguinte teor:
'Artigo 1º
(Condenados em pena de prisão afectados por doença grave e irreversível em fase terminal)
1. Os cidadãos condenados em pena de prisão que padeçam de doença grave e irreversível em fase terminal podem beneficiar de modificação da execução da pena quando a tal se não oponham exigências de prevenção ou de ordem e paz social.
(...)' Saliente-se, antes de mais, que não cabe a este Tribunal 'sindicar da correcção da concreta valoração da matéria de facto feita pelo tribunal ‘a quo’, em termos de subsunção de tais factos ao referido conceito legal de ‘fase terminal’', circunscrevendo-se o objecto do recurso à '’indeterminação’ do conceito ‘fase terminal’, constante do preceito legal a que vem reportado o presente recurso de fiscalização concreta' – conforme referiu o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal.
3. Para além disto, há que reconhecer que a aferição do conteúdo da norma impugnada à luz dos invocados artigos 1º, 13º, 18º, 25º e 72º da Constituição da República Portuguesa não é apta a permitir, em caso algum, a cindibilidade da norma, por forma a obter o resultado pretendido: a sua aplicação à recorrente. De facto, quanto à invocada 'notória violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana' – princípio com consagração constitucional no artigo
1º da Constituição da República –, reconhece-se desde logo a sua improcedência. Tal princípio em nada é lesado pelo tipo de requisitos legalmente estabelecidos para se admitir a modificação da execução de uma pena de prisão, em particular pela referência a doença 'em fase terminal'. Antes se pode dizer que a previsão de modificação da execução da pena em tais circunstâncias visa justamente tutelar a dignidade da pessoa humana, inscrita como valor em que se baseia a República Portuguesa logo no pórtico da Constituição. E que a utilização de um conceito amplo para exprimir a irreversibilidade e fatalidade da patologia – sem restrição a um tipo especial de doença e com remissão da determinação do conceito para critérios técnico-científicos – se determina justamente pela tutela dessa dignidade, com salvaguarda do princípio da igualdade.
É o que logo resulta das próprias finalidades que determinaram a iniciativa legislativa que levou à Lei n.º 39/96 (desencadeada designadamente pela experiência dos reclusos com SIDA), e que se encontram expressas na própria exposição de motivos da proposta de lei (Proposta de Lei n.º 35/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, II série-A, de 15 de Maio de 1996) que deu origem a este diploma:
'(...) A especificidade e gravidade dos problemas suscitados pela SIDA, em particular no meio prisional, justificam intervenção ao nível legislativo, em conformidade com as Recomendações R 1080 (1988), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, e R(93) 6, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de modo a reforçar e a tornar mais céleres e eficientes os mecanismos de resposta e as condições de tratamento, humanidade e dignidade dos estabelecimentos prisionais e, quanto aos doentes em estado terminal – relativamente aos quais perde sentido a realização das finalidades de execução da pena de prisão –, a permitir uma saída do meio prisional, de modo a possibilitar o direito a uma morte digna, porventura no seio da família. Porém, as soluções a ponderar deverão considerar os problemas de saúde no seu conjunto, globalmente.
É, de facto, bem verdade que, ao lado da SIDA, e préexistentes relativamente a ela, existem nos estabelecimentos prisionais portugueses outras doenças graves e irreversíveis – como a hepatite, o cancro, a leucemia – cujos pacientes reclusos devem ter idêntico tratamento jurídico-penal. Ora se, por um lado, parece claro que a restrição da consagração legal da saída do meio prisional aos doentes com SIDA não deixaria de assumir tratamento de favor relativamente aos reclusos afectados por esses outros tipos de doença de idêntica gravidade – o que seria de duvidosa constitucionalidade por violação do princípio da igualdade –, por outro, parece aconselhável aproveitar a oportunidade para analisar as questões legais da saúde nas prisões no seu conjunto, de modo a articular-se a saída do meio prisional, enquanto medida excepcional, com soluções que prevejam e garantam o direito à saúde nas prisões, reforcem a prevenção e o controlo da doença e, simultaneamente, garantam a validade das finalidades da execução da pena de prisão relativamente aos doentes afectados com doenças graves e irreversíveis. A contemplação dos doentes com SIDA/HIV exige, por conseguinte, uma intervenção inovadora, consagrando um princípio geral de aplicação a todos os casos de doença grave. Parece dever optar-se pela solução que melhor possibilita a harmonização das antinomias do sistema, estabelecendo-se uma regra geral de verificação judicial, caso a caso, em conformidade com as regras de prova no processo penal, que considere as exigências de prevenção e de ordem e paz social, por um lado, e, por outro, a situação pessoal do recluso e a sua subsunção ao conceito de doença grave e irreversível em fase terminal, a determinar com base em critérios de natureza técnicocientífica, presentes, se necessário, por via de adequados meios de prova pericial.' (itálicos aditados) Bem se vê, pois, que, no momento da apreciação da situação do recluso (e não no momento anterior de imposição da pena), a garantia de dignidade da pessoa humana apenas poderia ter sido violada pela insuficiência, ou, eventualmente, limitação dos pressupostos fixados para modificação da execução da pena. Todavia, não só a preocupação com tal solução restritiva foi expressamente contemplada pelo legislador, como tal interpretação está fora de causa no presente processo, onde se impugna antes a indeterminação do conceito 'fase terminal'. Aliás, que da aplicação do conceito 'fase terminal' ao caso concreto da recorrente resulte uma situação que, no seu entender, fere uma tal garantia da dignidade da pessoa humana, é questão de que este Tribunal não pode conhecer, enquanto não se recorte uma particular dimensão interpretativa tida como aplicada no caso concreto, e como constitucionalmente desconforme. Como se sabe, os poderes do Tribunal Constitucional limitam-se em sede de recurso de constitucionalidade ao controlo da constitucionalidade de normas. Da mesma forma, a violação do princípio da igualdade invocada (artigo 13º da Constituição) só em face da situação concreta da recorrente pode ser enquadrada, ou em face de um qualquer sentido normativo que se entendesse como discriminatório. É que – não se recortando tal sentido como o aplicado no caso concreto e impugnado – há que reconhecer que no plano legislativo em face do sentido do conceito 'fase terminal', só por si, não há discriminação alguma: a situação dos portadores de doença grave e irreversível em fase terminal não é idêntica à dos portadores de idêntica doença grave e irreversível que se encontre ainda em fase não terminal – e, em verdade, a requerente também não o alega, defendendo antes que a sua situação concreta devia ter sido assimilada à de doença grave e irreversível em fase terminal, e que este conceito é inconstitucional por indeterminado. Só que, como já referido, aquele juízo de aplicação da norma às circunstâncias concretas da recorrente escapa à sindicância deste Tribunal. A alegação de violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, enquanto reportada à aplicação da norma em questão à situação concreta da recorrente só pode, pois, entender-se (como refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal), porque 'a recorrente não tem na devida conta a distinção entre o que seria pertinente alegar num
(inexistente) recurso de amparo e o que tem sentido sustentar num recurso que visa exclusivamente a fiscalização da constitucionalidade normativa'
4. Igualmente infundada se apresenta a invocação de violação do disposto no artigo 18º da Constituição. Na verdade, para além do que já se disse sobre as finalidades da norma em causa, a legislação em causa não se apresenta como restritiva de direitos, antes permitindo a modificação da execução de penas privativas de liberdade – e, acrescente-se, em face do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 36/96, sempre com consentimento, real ou presumido, do beneficiário. E tal regulação, aliás, tem carácter geral e abstracto, e observa a forma exigida pelo artigo 18º. A invocação do artigo 25º da Constituição para pôr em causa uma norma que, justamente como alegado pela recorrente, se prende 'essencialmente com razões humanitárias', apresenta-se igualmente como infundada. Esse artigo consagra a inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas, bem como a proibição da tortura, de tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanas.
É evidente, na verdade, que da utilização do conceito 'fase terminal' no artigo
1º, n.º 1, da Lei n.º 39/96 não resulta qualquer possibilidade de tortura, ou de inflição de tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanas. Antes, como se disse, a norma em causa – incluindo a amplitude do conceito utilizado – foi determinada por preocupações justamente de tutela da dignidade humana dos reclusos. Nem se vê, pois, como tal norma possa considerar-se violadora da integridade moral e física das pessoas. Finalmente, também o invocado artigo 72º da Constituição (sobre a protecção da terceira idade) não permite concluir por qualquer inconstitucionalidade de uma solução normativa que concedeu relevância à fase terminal da vida por razão de doença grave e irreversível, sem a estender à fase terminal da vida por razão de idade. Na verdade, não pode dizer-se que da consagração do direito social à protecção da terceira idade (designadamente, do direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social) resulte a obrigação de estender uma norma determinada por razões de tutela de reclusos que, por razões de enfermidade irreversível, se encontrem próximos de um desfecho fatal, a todas as pessoas idosas – ou mesmo apenas a pessoas com uma certa idade avançada –, que não padeçam de doença irreversível e terminal. Sendo a hipótese normativa determinada para situações de doença – e qualquer opção geral e abstracta, determinada por opções de política criminal (a qual, aliás, recorde-se, residiu na atenção para a situação dos reclusos com SIDA, que constitui a occasio da presente lei), implica uma definição dos sujeitos abrangidos e excluídos da possibilidade de modificação da pena –, não se pode, aliás, dizer que a exclusão da possibilidade de modificação da pena de um recluso idoso, mesmo que se encontre próximo da (ou até que já tenha ultrapassado a) esperança de vida média do cidadão português, deixe de ter um fundamento razoável, relevante quer para o princípio da igualdade – a diferença entre cidadãos de idade avançada e doentes em fase terminal afigura-se evidente, uma vez que aqueles não são vítimas de qualquer patologia –, quer para a tutela da dignidade da pessoa humana – em vista, justamente, da desfecho fatal próximo da enfermidade. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 39/96, 29 de Agosto, e, em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta.
Lisboa, 5 de Agosto de 1999 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa