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Processo n.º 33/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. M... instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Mafra acção especial de despejo, com processo sumário, contra J... e mulher, L..., pedindo que se declarasse denunciado o contrato de arrendamento, 'para o fim do prazo actualmente em curso, ou para o da renovação em curso à data da sentença', condenando-se os Réus 'a entregar nessa data à A. a fracção, incluindo a mobília objecto do contrato, e livre e devoluta de quaisquer outros bens ou pessoas' e, a título subsidiário, 'que seja considerado resolvido o identificado contrato de arrendamento', nos termos do artigo 64º, n.º 1, alínea i), do Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro (Regime do Arrendamento Urbano). Regularmente citados, os Réus contestaram alegando, entre o mais, que, 'quanto ao eventual direito à resolução do contrato com fundamento em falta de residência permanente dos Réus no locado (...), terá caducado o direito à propositura da acção respectiva, uma vez ter decorrido mais de um ano sobre a data em que a Autora teve conhecimento do facto que lhe serve de fundamento',
'sendo certo também que àquela data – 5 de Março de 1985 – era aplicável à matéria em causa o preceituado no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 1984, publicado no DR I Série, n.º 152 de 3 de Julho de 1984'. Foi, em 3 de Março de 1998, proferida sentença que, havendo por improcedente a excepção de caducidade invocada na contestação, julgou procedente e provado o pedido subsidiário formulado pela Autora, declarando resolvido o referido contrato de arrendamento e condenado os Réus a entregarem o locado livre e devoluto de pessoas e bens, à excepção da mobília objecto do contrato'.
2. Inconformados com esta decisão, interpuseram J... e mulher, L..., recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, no que para o presente recurso releva, que '(...) o que parece certo é que a interpretação que o M.º Juiz ‘a quo’ faz (aliás com um brilhantismo invulgar) das normas aplicadas – a saber, artigo 65º, n.º 2 do R.A.U. e norma transitória do Dec.-Lei que o aprovou
(artigo 3º do Dec.-Lei 321-B/90 de 15/10), é uma interpretação desconforme à Constituição da República Portuguesa'. Por Acórdão de 12 de Novembro de 1998, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento à apelação, confirmando a sentença recorrida, remetendo para os fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 486/97, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Outubro de 1997.
3. Novamente inconformados, interpuseram os apelantes, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), o presente recurso de constitucionalidade, em ordem à apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 65º, n.º 2 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e 3º, n.º 3 do respectivo Decreto Preambular. Neste Tribunal, os recorrentes concluíram as suas alegações do seguinte modo:
'1ª A decisão recorrida é o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a decisão de 1ª instância do Tribunal Judicial da Comarca de Mafra, ambas decisões tiradas nos autos amplamente identificados.
2ª De acordo com a lei processual do Tribunal Constitucional, a decisão em crise e de que se recorre é a do Tribunal da Relação de Lisboa.
3ª Decisão que está a interpretar as disposições que constituem fundamento do recurso desconformemente à Constituição.
4ª O Acórdão recorrido delimitou, para fins da sua própria tomada de decisão, a questão material controvertida de modo a considerar que a situação de facto subjacente à questão jurídica era a de estar provado que a autora, ora recorrida, tinha conhecimento, desde Março de 1985, da falta de residência permanente no locado por parte dos réus.
5ª Afirma, a mesma decisão, que a sua opinião se baseia na convicção que ‘a lei aplicável à excepção de caducidade do direito de accionar é a vigente à data da propositura da acção’.
6ª E isto porque «só quando a acção é proposta é que nasce o direito do réu a excepcionar a caducidade do direito do autor a propo-la»
7ª Por outro lado, depois de aqui partir, vai, a decisão recorrida, sustentando o seu raciocínio discursivo, nomeadamente com a conclusão que ‘os recorrentes não são titulares de qualquer direito adquirido – nem sequer de uma mera expectativa
– a não mais serem despejados pelo facto de a apelada senhoria não ter proposto a acção no ano subsequente ao do conhecimento do facto-fundamento’.
8ª Salvo melhor opinião, a fundamentação (e as conclusões) do Acórdão ora recorrido
, está impregnado de vários vícios.
9ª O Tribunal a quo pressupôs que o recurso se fundamentava na inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 65º, n.º 2, do RAU e 3º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 32l-B/90, e não na interpretação desconforme à Constituição das mesmas disposições.
10ª Assim sendo, e em primeiro, não pode nenhum Tribunal, seja de que instância for, julgar as opções do legislador e se têm ou não adequado suporte material.
11ª Ao expender considerações dessas está, até, a Decisão recorrida a imiscuir-se em Função do Estado para cuja apreciação não tem poderes nem competências.
12ª Nesta matéria, cabe apenas aos Tribunais – e, em última instância, ao Tribunal Constitucional – verificar se essa legislação contende com o preceituado na Constituição da República e não comentar se a nova legislação tem ou não adequado suporte material.
13ª O que aqui se cura é se, as jurisdições de 1ª e 2ª instância, interpretaram o novo normativo conforme à Constituição ou não.
14ª Sucede que, em segundo, para a decisão recorrida, a razão dos recorrentes ou da recorrida tem de aferir-se no momento da propositura da acção, pois será, nesse exacto momento, que nascerá o direito do(s) réu(s) à caducidade da mesma.
15ª Não resistimos a uma exclamação dado que, por um lado, essa interpretação subverte todo o ordenamento jurídico e a relação direito substantivo/direito adjectivo, e, por outro, a fundamentação desta conclusão não é coerente.
16ª Se assim é para o Acórdão recorrido, significa que, nascendo o direito à excepção por caducidade da acção no momento da respectiva propositura, então o nascimento daquele é consequência do facto instantâneo corporizado nesta.
17ª Não pode, em coerência, a Decisão recorrida fazer apelo ao n.º 2 do artigo 12º do Código Civil para se fundamentar, dado a previsão dessa norma se dirigir, exactamente, para relações jurídicas que se constituíram antes da entrada em vigor da nova lei.
18ª Como é dos manuais, uma relação jurídica supõe um complexo de direitos e obrigações entre, pelo menos, dois sujeitos de direito, e não estando nós nesse domínio (na óptica da decisão recorrida) como se justifica aplicar uma norma cuja previsão implica um complexo de direitos e obrigações?...
19ª A interpretação feita pelo Tribunal a quo redunda em que
20ªNas acções intentadas depois da entrada em vigor da nova lei do arrendamento, a procedência da acção depende de a mesma ter sido intentada até um ano depois de ter cessado o facto, quando esse prazo já tenha decorrido sob a pendência da lei nova;
21ª
Às acções pendentes à data da entrada em vigor da nova lei do arrendamento, a procedência da acção depende de a mesma ter sido intentada até um ano depois de o senhorio ter conhecimento do facto;
22ª
Às acções intentadas depois da entrada em vigor da nova lei do arrendamento, a procedência da acção depende de a mesma ter sido intentada até um ano depois de ter cessado o facto, quando esse prazo já tenha decorrido sob a pendência da lei antiga.
23ª
É a interpretação referida na conclusão anterior que se afigura desconforme à Constituição, bastando, para o comprovar, atentar no seu resultado prático.
24ª Diferentemente das outras hipóteses, a conclusão a que se chega pela interpretação referida em 22 é a de que os senhorios passam a ter duas oportunidades de pelo mesmo arrendamento e em relação ao mesmo inquilino invocar a mesma causa de resolução.
25ª Uma oportunidade no domínio da lei anterior (oportunidade perdida pelo não exercício do direito); e como o facto não cessou, uma segunda oportunidade, à face da nova lei, porque alterou o normativo nessa parte.
26ª Sustenta igualmente a doutrina vertida no Acórdão recorrido que o inquilino não tem previamente à propositura da acção de despejo qualquer direito.
27ª Este modo de perspectivar a ordem jurídica é completamente subversiva e autenticamente situada fora da realidade.
28ª Isto porque os direitos de natureza processual são meras projecções formais dos direitos de natureza substantiva.
29ª A senhoria, ora recorrida, não viu o seu direito de acção nascer quando interpôs a acção. Tem esse direito, porque julga, no plano substantivo, ser titular do direito de extinguir o contrato, fundamentado no eventual incumprimento dos ora recorrentes.
30ª Os réus têm o direito de contestar e têm o direito de invocar excepções dilatórias ou peremptórias, não porque ele nasceu com a propositura da acção, mas porque, face à lei vigente na altura dos factos, o comportamento da A., ora recorrida teve, para eles, o significado do não exercício de um direito, ou seja, de uma caducidade.
31ª Decorrido o prazo de um ano que a lei assinalava para o exercício do direito à extinção do contrato, não tendo esse sido exercido, contavam os R., razoavelmente, que esse fundamento já não poderia ser utilizado em Tribunal, consolidando-se, aí, quer no plano dos factos, quer na sua esfera jurídica, uma situação de certeza e de segurança jurídica que a senhoria, ao não demandá-los, como e quando o poderia ter feito, aceitava o arrendamento, apesar de os ora recorrentes terem outra morada habitual.
32ª Pelo que ficou exposto, julga-se fundamentada a asserção de que o caso em disputa tem implicações com a certeza e a segurança jurídica, valores acolhidos no sub-princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos,
ínsito no princípio mais lato do Estado de Direito, acolhido no art. 2º da Constituição República Portuguesa.
33ª Para não cansar na leitura, apenas referimos uma passagem de Acórdão do próprio Tribunal Constitucional (O Acórdão n.º 259/98/T. Constitucional) que, embora tratando outra norma do RAU, vem exactamente ao encontro daquilo que ora se alegou e agora se conclui:
‘Porque é assim, a norma (..) do RAU não pode ser ‘redimensionada’ com uma interpretação que lhe imprima um sentido de abrangência dos casos em que o arrendatário já preencheu, no domínio da lei antiga, todos os pressupostos da lei antiga que conduziam à eliminação da competência de denúncia do senhorio. Na situação jurídica do arrendatário, a consecução do tempo limite para o exercício da denúncia estava já atingida. A eliminação desta competência do senhorio era, para o mesmo arrendatário, no início de vigência do R,4U, um dado adquirido, uma mais valia de protecção de permanência no local arrendado. Ele realizou inteiramente os pressupostos da não competência de denúncia do senhorio. Na relação contratual, o direito do arrendatário a permanecer no local arrendado ancora-se no postulado da segurança jurídica que deriva do princípio do Estado de direito democrático. Esse postulado articula-se com o âmbito de protecção do direito fundamental de liberdade. É que uma normação que desse modo modifica, com surpresa, o enquadramento da autonomia justamente à medida em que lhe desestrutura as próprias competências’ (sublinhado nosso).
34ª Do modo como se demonstrou e se provou pela passagem glosada, a interpretação que o Juiz a quo faz dos artigos enunciados do Decreto-lei referido e do RAU é uma interpretação desconforme à Constituição da República Portuguesa, mais precisamente ao seu artigo 2º
35ª Existe, também, uma interpretação desconforme ao artigo 13ºda CRP – Princípio da Igualdade, pois pela interpretação de uma norma processual, provoca a decisão recorrida uma desigualdade substantiva – ao abrir duas oportunidades a alguns senhorios e, consequentemente, duas hipóteses de despejo, pelo mesmo fundamento, apenas a alguns inquilinos, sem que entre eles exista alguma desigualdade que justifique uma diferenciação de tratamento.
36ª E, finalmente, uma interpretação desconforme ao art. 20º, n.º 4, da CRP – Princípio do Processo justo e equitativo, pois ainda pela interpretação efectuada pelo acórdão recorrido, acaba-se, também, por prejudicar o princípio do due process of law ao extraírem-se regimes jurídicos substantivos diferentes em função da data da propositura da acção.' A recorrida, por sua vez, veio pugnar pelo não provimento do recurso e, portanto, pela confirmação do Acórdão recorrido.
4. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5. O presente recurso – interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – tem como objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 65º, n.º 2 do Regime do Arrendamento Urbano e da norma transitória contida no artigo 3º, n.º 3, do Decreto-Lei que o aprovou (Decreto-Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro), enquanto determinam que não tenha caducado o direito de obter a resolução do contrato de arrendamento, por intermédio de acção intentada em 1997, com fundamento em facto (falta de residência permanente no locado) conhecido pelo senhorio desde 1985. O ponto controvertido nos presentes autos é, pois, a constitucionalidade da aplicação a uma acção intentada apenas em 1997 (embora com fundamento em facto duradouro conhecido desde 1985) das normas que determinam como dies a quo do prazo de um ano de caducidade do direito de resolução do contrato de arrendamento o momento da cessação do facto continuado ou duradouro que serve de fundamento a essa caducidade, e não o do seu conhecimento pelo senhorio. A questão do momento do início da contagem de tal prazo de caducidade foi objecto de controvérsia durante largos anos na nossa ordem jurídica. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 486/97 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Outubro de 1997) resumiu-se assim a evolução do direito constituído a este respeito:
'O artigo 1094º do Código Civil dispunha que 'a acção de resolução do contrato deve ser proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade'. A jurisprudência e a doutrina dividiram-se quanto a saber se, estando em causa um facto duradouro ou continuado, o prazo de caducidade de um ano se devia contar do momento em que o senhorio teve conhecimento da respectiva violação contratual ou, antes, daquele em que tal facto cessou [Na jurisprudência, cf., inter alia, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 1972 e de 16 de Julho de 1981 (publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nºs 217 e 309, páginas 92 e seguintes, e 329 e seguintes, respectivamente) e, bem assim, o assento do mesmo Supremo, de 3 de Maio de 1984 (publicado no Diário da República, I série, de 3 de Julho de 1984). Na doutrina, cf., entre outros, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume II (2ª edição), Coimbra, páginas 563 e seguintes; PEREIRA COELHO, Arrendamento, Lições ao curso do 5º ano de Ciências Jurídicas no ano lectivo de 1986-1987 (policopiadas), Coimbra, 1987, páginas 267 e seguintes; e BAPTISTA MACHADO, 'Pressupostos da Resolução por Incumprimento' (Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Teixeira Ribeiro, Boletim da Faculdade de Direito, 1979, II, páginas 344 e seguintes) e
'Resolução do Contrato de Arrendamento Comercial' (Parecer), in Colectânea de Jurisprudência, ano IX, 1984, tomo 2, páginas 15 e seguintes]. Para pôr termo à incerteza e insegurança jurídicas causadas por uma jurisprudência desencontrada, foi apresentado na Assembleia da República um projecto de lei, com vista a dar nova redacção ao citado artigo 1094º, por forma a consagrar-se que, estando em causa um facto continuado, o prazo de caducidade se devia contar a partir da data em que ele tivesse cessado. De acordo com esse projecto, o artigo 1094º passaria a rezar assim:
1. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
2. O prazo de caducidade corre separadamente em relação a cada um dos factos; tratando-se de facto continuado, só corre a partir da data em que o facto tiver cessado. Este projecto de lei foi discutido e chegou a ser aprovado na generalidade e, parcialmente, na especialidade. Mas por aí morreu, atento o facto de, entretanto, ter sido tirado pelo Supremo Tribunal de Justiça o já citado assento de 3 de Maio de 1984 (publicado no Diário da República, I série, de 3 de Julho de 1984), que é do seguinte teor: Seja instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de arrendamento, é a partir do seu conhecimento inicial pelo senhorio que se conta o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1094º do Código Civil. Foi, entretanto, apresentado um novo projecto de lei (Projecto de lei nº 249/V), que, aprovado, veio a transformar-se na Lei nº 24/89, de 1 de Agosto, cujo artigo 1º deu nova redacção ao mencionado artigo 1094º. Este ficou assim redigido:
1. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
2. O prazo de caducidade previsto no número anterior, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado. Posteriormente, foi publicado o actual Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), a que pertence o artigo 65º, cujo nº 2 aqui está sub iudicio. Dispõe-se aí:
1. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano, a contar do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
2. O prazo de caducidade previsto no número anterior, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado. O Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (acabado de citar), na alínea a) do nº 1 do artigo 3º, revogou o mencionado artigo 1094º do Código Civil – mais propriamente, revogou os artigos 1083º a 1120º. O nº 3 do mesmo artigo 3º estabeleceu, no entanto, que 'o disposto na alínea a) do nº 1 não prejudica a disposição transitória contida no artigo 2º da Lei nº
24/89, de 1 de Agosto' – o que significa que (à semelhança do que sucedera com o nº 2 do artigo 1094º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 24/89) o disposto no nº 2 do artigo 65º do RAU não se aplica às acções que se encontrassem pendentes em juízo à data da entrada em vigor dessa Lei nº 24/89. Nessas acções, fosse instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de arrendamento, o prazo de caducidade continuou a contar-se do conhecimento inicial desse facto pelo senhorio. Do que se disse resulta que, quando a resolução do contrato de arrendamento para habitação se fundar no facto de o arrendatário não ter residência permanente no local arrendado, estando-se, como se está, em presença de uma violação contratual duradoura ou continuada (cf. PEREIRA COELHO, ob. e loc. cit.), o prazo de um ano para o senhorio propor a acção, 'sob pena de caducidade',
'conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado'. Só assim não será
(isto é, tal prazo só se contará a partir do conhecimento inicial daquele facto pelo senhorio), se a acção de resolução se achava pendente em juízo à data da entrada em vigor da Lei nº 24/89, de 1 de Agosto.' A questão de constitucionalidade controvertida no presente processo prende-se justamente com a aplicação das normas que vieram estabelecer como dies a quo para o prazo de caducidade apenas o momento de cessação do facto que serve de fundamento a acções interpostas já depois da data da entrada em vigor da Lei nº
24/89, de 1 de Agosto (portanto, não abrangidas na disposição transitória do artigo 3º, n.º 3, do R.A.U.), mas fundadas em situações de violação contratual anteriores a essa data, conhecidas pelo senhorio há mais de ano. Assim entendida, a questão de constitucionalidade não é nova, tendo já sido objecto de apreciação pelo Tribunal, no citado Acórdão n.º 486/97 (e veja-se igualmente o Acórdão n.º 299/95, publicado no Diário da República, II série, de
22 de Julho de 1995, onde foi julgada inconstitucional, por violação do disposto no nº 1 do artigo 20º da Constituição, a norma que se contém no já mencionado assento de 3 de Maio de 1984). Conforme se salientou nesse Acórdão n.º 486/97, não pode dizer-se que os arrendatários tenham adquirido o direito 'a não ser accionad[os] com fundamento na falta de residência permanente no prédio que arrendaram, com conhecimento do senhorio, subsistente à data da propositura da acção e desde data anterior à da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano: 'admitir a aquisição de um tal direito significaria aceitar a possibilidade de adquirir o direito a persistir na prática de uma violação contratual. Ora, isso não é, seguramente, consentido pelo ordenamento jurídico.' Antes pelo contrário, como se salientou também no Acórdão n.º 486/97, inconstitucionalidade existiria, sim, se – como pretende a recorrente - o senhorio ficasse impedido de propor a acção de resolução do contrato, pela tão-só circunstância de a situação de violação contratual (no caso, a falta de residência permanente) durar desde data anterior à da entrada em vigor daquele Regime Jurídico, com seu conhecimento, uma vez que, conforme este Tribunal decidiu no citado Acórdão n.º 299/95, a norma que se contém no já mencionado assento de 3 de Maio de 1984 deve ser considerada desconforme com a Constituição, por violação do disposto no nº 1 do seu artigo 20º. O Tribunal salientou então que tal assento se suporta 'no entendimento de que a não propositura da acção de resolução do arrendamento dentro daquele prazo pelo senhorio [refere-se, obviamente, ao prazo de um ano contado do conhecimento do facto violador do contrato, mesmo que se trate de facto continuado] significa da sua parte uma renúncia ao direito de accionar'. E acrescentou:
'Simplesmente a renúncia assim imputada fictivamente ao locador [...] não pode seguramente valer para aqueles que venham a verificar-se no futuro. E não pode porque uma tal solução, para além de se colocar 'em contradição com o sistema de direito português (designadamente com o princípio normativo que inspira os preceitos dos artigos 288º, 809º e 840º do Código Civil)', envolveria também privação do direito de acção, a descoberto de qualquer fundamento justificativo, colidindo com a regra da proibição da indefesa. A indefensão que resulta da interpretação adoptada no assento [...] traduz-se em violação do direito à tutela efectiva por parte do locador, sob o ponto de vista do direito de acção, violação essa que se suporta numa renúncia fictiva e antecipada do respectivo direito, acrescendo que o prazo resultante daquele entendimento se revela desproporcionado, sem razoabilidade e despojado de fundamento jurídico material, de conteúdo objectivo e constitucionalmente legítimo, como aliás veio a ser reconhecido pela Lei nº 24/89. E assim sendo há-de ter-se a norma contida no assento de 3 de Julho de 1984 como inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição.'
6. Por outro lado, também a questão da pretensa afectação do princípio da confiança e da segurança jurídica através da aplicação das normas em causa sub specie constitutionis – repete-se o n.º 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano e o artigo 3º, n.º 3, do respectivo diploma preambular – foi tratada no Acórdão n.º 486/97. Na fundamentação deste aresto salientou-se a propósito que a norma do artigo 65º, n.º 2 se aplica
'apenas para o futuro, pois que rege tão-somente para as acções de despejo propostas em momento em que, sendo a causa de pedir constituída por 'facto continuado ou duradouro', o respectivo prazo de caducidade se contava já 'a partir da data em que o facto tiver cessado' (cf. artigo 1094º, nº 2, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 24/89, de 1 de Agosto). Aplica-se, no entanto, a situações de facto que concernem a relações jurídicas não terminadas, ou seja, a situações de violação contratual (continuadas ou duradoiras) vindas de trás, que, constituindo já antes fundamento de resolução do contrato de arrendamento, só são invocadas pelo locador já no domínio desta norma. A norma aplica-se, assim, às relações jurídicas de locação 'já constituídas' que subsistiam 'à data da sua entrada em vigor', em conformidade com o que se prescreve na parte final do nº 2 do artigo 12º do Código Civil. Trata-se, por conseguinte, de uma norma retrospectiva - ou, se se preferir, de um caso de retroactividade inautêntica. Uma norma retrospectiva é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data (cf. o acórdão nº 232/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 341 e seguintes). Uma lei retrospectiva não levanta o problema da retroactividade da lei. Coloca, porém, como se anotou - e semelhantemente ao que acontece com as leis retroactivas que não sejam leis penais, nem leis restritivas de direitos liberdades e garantias - a questão da eventual violação do princípio da confiança, que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição. Mas essa violação só se verifica, se a lei atingir 'de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm que respeitar' (cf. acórdão nº 365/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 143 e seguintes), ou seja, 'a ideia de segurança, de certeza e de previsibilidade da ordem jurídica' (cf. citado acórdão nº 232/91). E tal sucede, quando os destinatários da norma sejam titulares de direitos ou de expectativas legitimamente fundadas que a lei afecte de forma 'inadmissível, onerosa ou demasiadamente onerosa'. Nos dizeres do citado acórdão nº 232/91, 'uma norma retrospectiva só deve ser havida por constitucionalmente ilegítima quando a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na qual tomou as suas decisões for violada de forma intolerável, opressiva ou demasiado acentuada. Num tal caso, com efeito, a confiança na situação jurídica preexistente haverá de prevalecer sobre a medida legislativa que veio agravar a situação do cidadão. E isso porque, tendo tal confiança, nesse caso, maior 'peso' ou 'relevo' constitucional do que o interesse público subjacente à alteração legislativa em causa, é justo que o conflito se resolva daquela maneira.' Ora, já se viu que a circunstância de os senhorios não terem proposto as acções de despejo no ano subsequente ao conhecimento do facto (continuado ou duradouro) violador do contrato, não faz nascer para os locatários qualquer direito a não mais serem despejados. E nem tão-pouco legitima qualquer expectativa nesse sentido. Essa expectativa só seria legítima, se pudesse considerar-se razoável a renúncia fictiva e antecipada, pelo senhorio, do direito de fazer cessar o contrato. Mas também se viu que não é de admitir essa renúncia fictiva e antecipada do direito de accionar o locatário, pois que ela – para além de se colocar 'em contradição com o sistema de direito português (designadamente com o princípio normativo que inspira os preceitos dos artigos 288º, 809º e 840º do Código Civil)' – traduzir-se-ia 'em violação do direito à tutela judicial por parte do locador'. E concluiu-se, pois, pela não inconstitucionalidade da norma em causa.
É justamente esta conclusão que, remetendo para os fundamentos do Acórdão que estamos a citar, cabe reiterar no presente recurso, onde está igualmente em causa a aplicação do artigo 65º, n.º 2, do R.A.U. à acção de resolução do contrato de arrendamento violado pelos recorrentes com a falta de residência permanente no locado, apesar de esta não ter sido proposta no ano subsequente ao conhecimento do facto (continuado ou duradouro) violador do contrato. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 21 de Setembro de 1999 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Fernanda Palma Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa