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Procº nº 460/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora veio promover o cumprimento do pedido de extradição do cidadão alemão N..., que, por sentença transitada em julgado proferida pelo Tribunal de Dortmund, foi condenado, pela autoria de três crimes de homicídio, sendo um na forma tentada, e de um crime de 'provocação de explosão', na pena de prisão perpétua, correndo ainda contra o mesmo procedimento criminal pela indiciária prática de crimes de roubo 'à mão armada', como 'membro de bando formado para cometer continuamente roubos à mão armada', crimes 'de aquisição, detenção, uso, porte, cedência e venda de armas proibidas, incluindo armas de guerra', crimes de 'provocação de explosão', um crime de homicídio na forma tentada, dois crimes de homicídio qualificado e um crime de roubo com arma de fogo.
Tal pedido foi formulado pela República Federal da Alemanha e o prosseguimento do respectivo processo foi autorizado pelo Governo Português.
Para tanto, o Governo Português - tendo em conta que, de acordo com o que constava da Nota Verbal que acompanhou o pedido de extradição e segundo a qual 'o direito penal alemão prevê que para as penas de prisão perpétua poderá ser concedida liberdade condicional, quando estiverem cumpridos quinze anos de prisão', que 'após quinze anos em regra é concedida a liberdade condicional para a pena restante' e que 'nos casos em que a gravidade especial da culpa proibir a concessão da liberdade condicional após quinze anos, o Tribunal competente terá examinar novamente o mais tardar após dois anos, a requerimento do condenado, se poderá ser concedida a liberdade condicional para a pena restante' - julgou que, pelo Governo da República Federal da Alemanha, foi prestada garantia formal de que seria promovido, 'em conformidade com o seu direito interno e a sua prática nacional de execução de penas, todos os benefícios de execução que puderem ser concedidos a favor do extraditando'.
Por acórdão de 5 de Janeiro de 1999, o Tribunal da Relação de Évora concedeu a extradição, o que fez '[c]onsiderando o disposto nos artigos 1º, 2º, e 12º da Convenção Europeia de Extradição, 59º a 66º da Convenção de Aplicação do Acordo de Shengen e 3º e 30º do D.L. nº 43/91, de 22 de Janeiro'.
2. Do assim decidido recorreu o extraditando para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, na motivação que apresentou, dito, inter alia:-
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O sentido explícito do nosso imperativo constitucional é o de que não
é de decretar a extradição no caso em que se não mostra que seja de todo em todo impossível a aplicação ou execução de uma pena de prisão perpétua.
5º
Concordamos com o Acórdão recorrido em que A GRANDE E ÚNICA QUESTÃO é afinal a de saber se a garantia prestada pelo Estado Alemão é suficiente, e ainda aqui, se basta a mera garantia diplomática ou se se torna necessária uma garantia jurisdicional (se é que pode haver uma garantia jurisdicional), ou ainda, como se compagina uma garantia diplomática ou política com a jurisdicionalidade do seu objecto.
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Resulta assim evidente, como o próprio Tribunal recorrido reconhece, que a garantia política e diplomática só será suficiente, se o Estado requisitante se comprometer a amnistiar o crime, a indultar o extraditando ou a comutar-lhe a pena.
Não se justificando no caso concreto as possibilidades de amnistia ou indulto, em face da gravidade das infracções praticadas, só um compromisso diplomático ou político, garantindo a comutação da pena de prisão perpétua já aplicada, e bem assim da que lhe possa vir a ser aplicada, cumpre a exigência constitucional requerida pela Consciência Constituinte da Comunidade Portuguesa,
à qual importa como deixamos dito supra, O Núcleo dos Direitos Fundamentais de Personalidade, contidos na DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM.
Só assim são respeitadas as disposições pertinentes da nossa Constituição, sendo seguramente este o direito interpretativo do Tribunal Constitucional.
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È APÓS ESTA ANALISE DOS FACTOS CABE FORMULAR AS NECESSÁRIAS CONCLUSÕES:
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3.5. À Consciência Constituinte da Comunidade Portuguesa repugna a pena de prisão perpetua, por a considerar cruel desumana e degradante da Personalidade que pretende ver Universalmente reconhecida. Com efeito, o Direito Penal Português, considera eficaz a punição, no pressuposto do reconhecimento do seu destinatário. .......
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4. Importa assim ter presente o que nesta matéria pretende salvaguardar a Consciência Constituinte da Comunidade a que pertencemos e à qual repugna, não apenas a morte física como sanção, mas também a morte civil implícita numa pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade, com caracter perpétuo ou de duração indefinida.
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4.5. O sentido explícito do nosso imperativo Constitucional é o de que não é de decretar a extradição no caso em que não se mostra que seja de todo em todo impossível a aplicação ou a execução de uma pena de prisão perpetua.
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5.3. Resulta assim evidente que a garantia política e diplomática só será suficiente, se o Estado requisitante se comprometer a amnistiar o crime, a indultar o extraditando ou a comutar-lhe a pena.
5.4. Não se justificando no caso concreto as possibilidades de amnistia ou indulto em face da gravidade das infracções praticadas, só um compromisso diplomático ou político, garantindo a comutação da pena de prisão perpetua, ainda que só eventualmente aplicável, cumpre a exigência Constitucional requerida pela Consciência Constituinte da Comunidade Portuguesa, à qual importa como deixamos dito supra, o Núcleo dos DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PERSONALIDADE, contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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5.6. A garantia política por isso que é política, só cumpre a nossa exigência Constitucional, afirmando o Poder Político do Estado, no compromisso de comutação da pena aplicada, compromisso em que joga a Honra da sua Dignidade como Estado Soberano.
5.7. O que se entende necessário e suficiente em face do nosso Imperativo Constitucional e, atento o respeito devido ao Principio da Separação dos Poderes, é uma garantia política efectiva, de que a pena perpétua não será aplicada ou executada, por tal repugnar à Consciência Constituinte da Comunidade Portuguesa.
5.8. Salvo melhor entendimento, tal só parece possível com uma garantia política objectiva, clara e precisa de comutação da pena aplicada ou in casu da que vier a ser eventualmente aplicada.
5.9. Condicionalismo que não se mostra cumprido nem garantido no pedido de extradição, donde inequivocamente resulta a condicionalidade da garantia prestada.
5.10. O Acordão recorrido viola assim o disposto no n.º 5 do artigo 33 da CRP.
Por acórdão de 18 de Março de 1999, negou o Supremo Tribunal de Justiça provimento ao recurso.
Pode ler-se nesse aresto:-
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Neste Supremo Tribunal, o relator pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso.
Colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência para ser decidida esta questão.
Cumpre, pois, decidir.
2. O presente recurso versa unicamente matéria de direito, que se prende com a questão de saber se, face à Constituição Portuguesa, é ou não suficiente a garantia prestada pelo Estado Alemão quanto à não aplicação ou não execução da pena de prisão perpétua a que o recorrente está sujeito pelo procedimento criminal quanto a alguns crimes que lhe são imputados e pela condenação quanto a outros.
Ora, versando matéria de direito, as conclusões têm de indicar, sob pena de rejeição do recurso, os elementos referidos no n.º 2 do art.º 412.º do C.P.P. que sejam pertinentes.
De facto, ao processo de extradição são subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal, como se vê do art.º 3.º, n.º 2 com referência ao art.º 1.º, al. a), ambos do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, pelo que se aplicam àquele processo as normas do referido Código que regulam os recursos.
Sucede que o recorrente, no que concerne às normas jurídicas violadas
- al.ª a) do n.º 2 do art.º 412.º do C.P.P. - indicou apenas na conclusão 5.10 a violação do disposto no n.º 5 do art.º 33.º da C.R.P., não o tendo feito também, como se impunha, no texto das alegações (aliás, só ali se menciona o acórdão recorrido).
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...............................................................E a verdade é que, nas suas alegações, o recorrente não se reportou à violação do art.º 33.º, n.º 5 da C.R.P. - a este respeito, v., nomeadamente, ao acórdãos deste S.T.J.
(...).
Assim, não podia ser inserida apenas nas conclusões a indicação da norma jurídica violada; e tendo-o sido, tal é totalmente irrelevante, o que provoca a rejeição do recurso, nos termos da al.ª a) do n.º 2 do art.º 412º do C.P.P..
Por outro lado, o recorrente não indicou o sentido em que, no seu entendimento, o tribunal recorrido interpretou o art.º 33.º , n.º 5, da C.R.P. ou com que o aplicou nem o sentido em que devia ter sido aplicado.
E isto viola o disposto na al.ª b) do n.º 2 do art.º 412.º do C.P.P., pelo que o recurso ainda teria de ser rejeitado por este motivo.
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Depois destas considerações, o acórdão lavrado no Supremo Tribunal de Justiça discreteou no sentido de, para além do que acima ficou transcrito, ainda acrescerem razões que conduziriam, no seu entendimento, à rejeição do recurso.
Essas, razões prenderam-se, justamente, com a perspectiva, seguida por aquele Alto Tribunal, segundo a qual - tendo em atenção a Convenção Europeia de Extradição firmada em 1957, a reserva formulada por Portugal ao artº 1º dessa Convenção, o artº 5º do Acordo de Adesão da República Portuguesa à Convenção de Aplicação do Acordo de Shengen, a Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, incluindo um anexo com declarações, assinada em Dublin em 27 de Setembro de 1996 e, por último, o que considerou serem as garantias dadas pela República Federal da Alemanha e transmitidas pela Nota Verbal já acima aludida -
'a garantia formal prestada(...) pela R.F.A. satisfaz totalmente as exigências de ordem pública internacional do Estado Português, respeitando o disposto no art.º 33.º, n.º 5 da C.R.P. e estando de acordo com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português em matéria de extradição no
âmbito do Conselho da Europa, da União Europeia e do espaço Shengen'.
3. Desse acórdão intentou o extraditando recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'por violação do Princípio da não extradição para cumprimento de penas capitais e de prisão perpetua consagrado no nº 5 do artº 33º da CRP'.
Na sequência de convite que lhe foi dirigido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, o extraditando veio apresentar requerimento onde referiu:-
'1º
A extradição foi deferida nos termos do artº 34º nº 2 da Lei 43/91 de
22 de Janeiro.
O recorrente suscitou nas alegações para o Tribunal da Relação de
Évora e para o Supremo Tribunal de Justiça a questão da inconstitucionalidade desta norma, que estatui o diferimento da entrega do extraditando para quando o processo ou cumprimento da pena terminar, nos casos de existência em tribunais portugueses de processo penal contra a pessoa reclamada ou a circunstancia de esta se encontrar a cumprir pena privativa de liberdade por infracções diversas das que fundamentam o pedido.
É que a norma não ressalva a reserva formulada pela Republica Portuguesa à Convenção Europeia de Extradição, reserva ainda recentemente interpretada por declaração produzida, como parte contratante na Convenção estabelecida com base no artº K3 do Tratado da União Europeia relativa à extradição, entre os estados membros, aprovado em 27 de Setembro, por acto do Conselho e publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias a 23 de Outubro de 1996. Está em contradição material com o disposto no nº 5 do artº 33º da CRP.
2º
A Assembleia da República pela resolução nº 40/98, aprova para ratificação, que se verifica por Decreto do Presidente da República nº 48 de 98, ambos no D.R.. /A, 05/09/98.
A norma constante deste acto legislativo, viu a sua aplicação recusada face à interpretação dada pelas instâncias recorridas, ao sentido da adesão de Portugal aquela Convenção Internacional. Com efeito na Declaração produzida afirma-se explicitamente que Portugal ‘não concederá a extradição de pessoas reclamadas por um crime a que corresponda uma pena ou medida de segurança com carácter perpetuo’, a não ser que ‘respeitadas as disposições pertinentes da sua Constituição conforme interpretadas pelo seu Tribunal Constitucional, se considerem suficientes as garantias prestadas pelo Estado membro requerente de que aplicará, de acordo com a sua legislação e a sua pratica em matéria de execução de penas, as medidas de alteração que a pessoa reclamada possa beneficiar’.
Existem assim nos termos do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro dois fundamentos de admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, sejam os previsto nas alíneas b) e i), o que foi devidamente realçado pelo recorrente que circunscreveu ambos os recursos à questão da inconstitucionalidade.
Ambas as peças processuais não suscitam de resto outra questão senão essa'
4. Por despacho prolatado pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, não foi o recurso admitido, e daí a vertente reclamação.
Pronunciando-se sobre a mesma, o Representante do Ministério Público junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa sustentou que a reclamação deveria ser indeferida.
Cumpre decidir.
II
5. Da extensa resenha fáctica acima efectuada, ressalta, com relevo para o caso:-
a)- o acórdão desejado impugnar perante este Tribunal, em passo algum do respectivo discurso, de forma explícita ou implícita, directa ou indirecta, recusou a aplicação de qualquer norma, designadamente a ínsita no artº 2º do Decreto do Presidente da República nº 40/98, de 5 de Setembro, publicado na 1ª Série A do Diário da República de 5 de Setembro de 1998, que ratificou a Resolução da Assembleia da República nº 40/98, que aprovou, para ratificação, Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, incluindo um anexo com declarações, assinada em Dublin em 27 de Setembro de
1996; antes, e pelo contrário, foi, por entre o mais, fundado em tal acto normativo que entendeu que o recurso interposto do acórdão então sob censura, para além da ocorrência de outros motivos, que indicou, haveria de ser rejeitado;
b)- tal aresto, identicamente, quer de forma explícita ou implícita, directa ou indirecta, não fundou a sua decisão na norma do nº 2 do artº 34º do Decreto-Lei nº 43/91;
c)- após ter sido tirado o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5 de Janeiro de 1999, o ora reclamante, como facilmente deflui da transcrição acima feita, não arguiu a norma por último indicada, ou a uma sua qualquer forma de interpretação levada a cabo por esse aresto, como padecendo de qualquer vício de contrariedade com a Constituição, antes imputando um tal vício à própria decisão que, ao tempo, impugnava.
d)- o acórdão produzido no Supremo Tribunal de Justiça só discorreu sobre a «matéria de fundo» após ter concluído que, por razões processuais, o recurso então em apreço deveria ter sido rejeitado.
6. Neste circunstancionalismo, de concluir é, inequivocamente, que o recurso estribado na alínea i) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 não podia ter cabimento no caso sub specie.
De outro lado, mesmo que se admitisse - o que só por mera hipótese de raciocínio se concebe - que o acórdão desejado recorrer, na parte em que se debruçou sobre a «matéria de fundo», e ainda que indirectamente, não teria deixado de fazer aplicação da norma do nº 2 do citado 34º (o que, como vimos, não sucedeu, aditando-se agora que, de igual sorte, aquele preceito não constituiu suporte normativo do decidido pelo Tribunal da Relação de Évora), o que é certo é que, mesmo que o Tribunal Constitucional se viesse a pronunciar no sentido da inconstitucionalidade de tal norma, um tal juízo não teria repercussão útil sobre o feito em causa; e isso, precisamente, porque, não admitindo o acórdão de 18 de Março de 1999 qualquer recurso para outro órgão de administração de justiça da ordem dos tribunais judiciais, continuando a verificar-se os obstáculos de ordem processual descortinados pelo Supremo Tribunal de Justiça, sempre a decisão de rejeição do recurso se haveria de manter, uma vez que também não foi suscitada a inconstitucionalidade da norma processual aplicada.
Ora, tendo os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade um carácter instrumental de sorte a os juízos neles formulados se poderem repercutir utilmente nas causas de onde os mesmos emergiram, torna-se nítido que, in casu, um eventual juízo de incompatibilidade com a Lei Fundamental quanto à norma do nº 2 do artº 34º do Decreto-Lei nº 43/91 nenhum reflexo poderia ter na decisão constante do aresto prolatado no Supremo e que o reclamante pretendia impugnar pelo Tribunal Constitucional.
III
Em face do que se deixa dito, indefere-se a reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em
10 unidades de conta. Lisboa, 14 de Julho de 1999 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida