Imprimir acórdão
Processo nº222/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. J..., com os sinais identificadores dos autos, veio, 'nos termos e ao abrigo do disposto no artº 76º, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, (...) RECLAMAR para o mesmo Tribunal', do despacho proferido no âmbito do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Janeiro de 1999, que indeferiu o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, invocando em resumo, o seguinte:
- aquele recurso de constitucionalidade 'teve como principal fundamento o considerar-se que a interpretação feita no douto Acórdão de fls., pelo qual se revogou a decisão proferida pelo Mert. Juiz de Instrução e ordenou fosse tal decisão substituída por outra que pronunciasse o ora recorrente, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência constante do art. 32º, nº 2, da Constituição'.
- essa arguição de inconstitucionalidade 'foi feita pelo ora reclamante logo que tomou conhecimento de tal Acórdão, em requerimento autónomo de arguição de nulidade, e não poderia tal questão ter sido levantada em momento anterior pela simples e evidente razão de que só nessa altura se passou a conhecer tal interpretação'.
- 'Assim, a questão da inconstitucionalidade foi levantada logo que conhecida a interpretação que torna inconstitucional o normativo do art. 380º do Cód. Proc. Penal, se tal interpretação for mantida'.
- acresce que 'o requerimento de interposição de recurso já contém todas as razões de facto e de direito que servem de fundamento ao recurso, e a única peça processual em que tal questão foi levantada foi o requerimento em que se arguiu a nulidade do douto Acórdão de fls'.
2. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a
'presente reclamação carece, em absoluto, de fundamento já que a única questão de inconstitucionalidade normativa suscitada - e apenas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade - e reportada à norma constante do artº 380º do CPP é, além do mais, manifestamente infundada, já que obviamente nada na Constituição impõe que - sob a capa formal de 'correcção' de uma decisão jurisdicional - se proceda à alteração radical do decidido, transmutando em não pronúncia o despacho de pronúncia anteriormente proferido. Nenhuma censura merecendo, deste modo, o despacho que rejeitou o recurso de constitucionalidade interposto, impõe-se naturalmente a improcedência da presente reclamação, manifestamente destituída de qualquer fundamento sério'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir. Da certidão que acompanha a presente reclamação pode só respigar-se o seguinte:
3.1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Secção Criminal), de 29 de Abril de 1998, foi dado provimento a um recurso interposto pela assistente e ordenada a revogação da decisão instrutória que não havia pronunciado o arguido e ora reclamante pela prática do crime de violação, seguindo-se, por consequência, o arquivamento dos autos (nesse acórdão ordenou-se, porque provido o recurso, a substituição daquela decisão instrutória por outra que pronunciasse o arguido). Definido no acórdão o objecto de tal recurso - 'decidir se no decurso do processo se enumeram indícios suficientes para que, sem (...) se pronuncie o arguido pela prática de um crime de violação de que terá sido vítima a assistente, é o que se nos pede', - foi dada uma solução favorável à pretensão da assistente por se entender e demonstrar 'existirem suficientes indícios' da prática de crime de violação, havendo que 'submeter o arguido a julgamento', mesmo que 'se corra o risco de uma absolvição'.
3.2. Veio então o arguido requerer, 'nos termos do art. 380º do Código de Processo Penal, a correcção' daquele acórdão, baseando-se 'numa razão de forma e numa razão de fundo', com o seguinte discurso:
'1º Na parte em que directamente se ocupa da matéria dos recursos, o Código de Processo Penal não fala em correcção do decidido. Com efeito,
2º Directa ou literalmente, o art. 380º desse diploma legal refere-se apenas a sentenças e não também a acórdão de tribunais superiores. Todavia,
3º A interpretação desse artigo não pode deixar de ser uma interpretação conforme à Constituição. E, por isso,
4º Se a Constituição da República impõe, no nº 1 do seu artº 32º , que o processo criminal 'assegura todas as garantias de defesa', não pode uma norma como a do art. 380º do Código de Processo Penal deixar de ser interpretada no sentido de que também em sede de recursos cabe requerer a correcção do decidido.
5º Sempre que isso seja necessário. E é-o nos presentes autos.
6º O que resulta do Acórdão é que o facto de ter havido insistência da Assistente no sentido de alegar que tinha sido vítima de um crime, associado ao facto de o crime cuja perpetação alega ser o de violação, cria uma dúvida bastante para, ao menos, justificar um julgamento.
7º
(...)
8º O que assim se verifica no Acórdão, salvo o devido respeito, é uma confusão entre dúvida e indício.
9º
(...)
10º
(...)
11º O regime processual penal das duas figuras é, por isso, completamente distinto.
12º O regime dos indícios, quando graduados como suficientes, é a pronúncia.
13º E o regime das dúvidas, por imposição constitucional, é o do arquivamento dos autos. Ignorá-lo é desrespeitar o nº 2 do art. 32º da Constituição, por isso que é no princípio jurídico fundamental da presunção de inocência que se funda a máxima in dúbio pro reo'.
3.3. Por acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Dezembro de
19998, foi indeferido aquele requerimento, por se entender nada haver que corrigir. Lê-se no acórdão:
'Veladamente, pretende o arguido alteração do decidido no acórdão de modo a que, em vez de ser pronunciado, seja antes mantida a não pronúncia.
É óbvio que o expediente utilizado não consente tal pretensão:- atente-se na al. b), do nº 1 do citado art. 380º CPP. Limitou-se o requerente a respigar do acórdão alguns enxertos, a fazer a respectiva montagem e a retirar daí as referências que bem (ou mal) entendeu. Não pactuamos com tal litigância'
3.4. De seguida, veio o recorrente apresentar recurso desse acórdão para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto no art. 280º, nº 1, alínea b) da Constituição, e no art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Setembro
(com a redacção da Lei orgânica nº 85/89, de 7 de Setembro)', porquanto 'a interpretação aí perfilhada de algumas normas jurídicas não é conforme aos nºs 1 e 2 do art. 32º da Constituição, lugares em que se sintetizam princípios e preceitos constitucionais para os quais, nos termos da Constituição e da lei, se chamou expressamente a atenção durante o processo'.
3.5. Tal requerimento foi indeferido no despacho reclamado do Relator do processo, na base essencial das seguintes considerações:
'falta de legitimidade:- não suscitou a questão nos termos consignados e exigidos no artº 72º, nº 2; não observância do disposto no art. 75º-A:- não indicou (nem podia indicar porque não existe) a peça processual em que suscitou a questão; manifestamente infundado:- o tribunal não aplicou qualquer norma inconstitucional, nem dela fez qualquer interpretação que não fosse a mais consentânea com o espírito e sentido da Lei'
4. Podem descortinar-se, seguindo um critério benevolente para o reclamante
(referiu-se só a 'algumas normas jurídicas', mas sem aí identificar) dois pontos autónomos que ele inclui no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade: a) a pretensa censura jurídico-constitucional dirigida à norma do artigo 380º do Código de Processo Penal; b) a pretensa censura jurídico-constitucional dirigida ao acórdão recorrido
(proferido na sequência do pedido de correcção com fundamento naquele artigo
380º), porque, segundo invoca, 'o que o recorrente obteve foi, por um lado, a total ausência de resposta relativamente à questão jurídica que suscitou, definiu e fundamentou - a do confronto entre os conceitos de indício e de dúvida' (e o que o recorrente pretendeu discutir com tal pedido foi o benefício do 'arquivamento dos autos', por aplicação do que apelida 'regime das dúvidas',
à luz do nº 2 do artigo 32º da Constituição). Ora, quanto a este último ponto, está fora de qualquer dúvida que, para além da dificuldade ou até impossibilidade de saber a que normas jurídicas o reclamante quer referir-se, pois não vêm identificadas, a arguição por ele assumida não é uma arguição de inconstitucionalidade normativa, mas tão-só uma censura à posição tomada pelo acórdão recorrido, 'por total ausência de resposta relativamente à questão jurídica que suscitou'. Passando agora ao primeiro ponto, e aceitando que o reclamante só teve oportunidade de arguir a (in)constitucionalidade do artigo 380º do Código de Processo Penal ou da sua interpretação (des)conforme à Lei Fundamental no requerimento em que pediu a correcção do primeiro acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, é patente que o recurso de constitucionalidade não tem qualquer ponta de fundamento. Na verdade, e como diz o Ministério Público, no seu Parecer, 'obviamente nada na Constituição impõe que - sob a capa formal de 'correcção' de uma decisão jurisdicional - se proceda à alteração radical do decidido, transmutando em não pronúncia o despacho de pronúncia anteriormente proferido'. Ora, o que o reclamante quer sustentar é que há vício de inconstitucionalidade se for interpretado e aplicado o questionado artigo 380º - tal como teria sido no acórdão recorrido - no sentido de não permitir 'a correcção do decidido', mas isso, mesmo sendo assim, não afronta decisivamente nenhuma norma ou princípio constitucional, pois tal mecanismo processual tem estritamente em vista a correcção da sentença quanto a 'erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial ' (sublinhado nosso). Daí a absoluta falta de razão na interposição do recurso de constitucionalidade neste ponto. Com o que não merece censura o despacho reclamado, quando apela à consideração de recurso manifestamente infundado.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se o reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 16 de Junho de 1999- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida